quinta-feira, 27 de março de 2014

Areia para os olhos

Através da miserável campanha recentemente lançada, a Carris e o Metro de Lisboa decidiram desafiar os seus passageiros a converter-se em empreendedores da bufaria (uma bela forma, aliás, de celebrar os 40 anos do 25 de Abril), incentivando-os a vigiar e denunciar situações de não validação de títulos de transporte. «Abra os olhos e combata a fraude» foi o mote escolhido para a abjecta campanha e os incentivos para que os utentes a ela adiram - na useira e vezeira lógica de colocar cidadãos contra cidadãos - reflectem a tentativa de estabelecer uma relação causal entre a ocorrência de fraudes e a supressão de carreiras e carruagens, o aumento do tempo de espera ou a degradação dos próprios serviços de transporte.

Sim, é verdade, a qualidade e a acessibilidade dos serviços degradou-se significativamente nos últimos anos: entre 2010 e 2012 verificou-se uma redução substancial da oferta no número de carruagens (-23%) e de lugares (-22%), que causou o ensardinhamento de passageiros em hora de ponta. Sim, é verdade que as ocorrências de atrasos, por exemplo com duração igual ou superior a 10 minutos, se tornaram bastante mais frequentes (+67%) e os tarifários registaram agravamentos brutais, com o aumento em 55% do passe urbano mensal (de 19 para 29 euros), ou com o custo do bilhete de uma viagem a passar dos 80 cêntimos de 2010 para 1,25 euros em 2012. E sim, entre 2011 e 2012 registou-se uma quebra inaudita no número de passageiros, passando-se de cerca de 179 para 154 milhões (-14%).

A administração do Metropolitano de Lisboa tratou aliás de explicar esta diminuição histórica do número de passageiros, apontando o dedo ao impacto da «crise económica (...) na redução da mobilidade na área urbana» e «ao aumento da fraude constatado nas acções de fiscalização desenvolvidas ao longo do ano», sublinhando porém, estranhamente, que esse «aumento percepcionado da fraude ainda não se encontra reflectido na taxa de fraude utilizada para o ano de 2012», que assim «permanece em 5,5%, tal como em 2011» (como refere o Relatório e Contas de 2012). Ora, o que justamente os dados do próprio Metropolitano de Lisboa nos dizem é que as situações de fraude não só não aumentaram como a tendência que se verifica nos últimos anos é de diminuição (ver gráfico). O que confirma, de resto, a percepção dominante (já que as coisas se colocam ao nível do «percepcionado») de quem viaja quotidianamente no Metro de Lisboa: as fraudes continuam a ser manifestamente pontuais e episódicas, não sendo hoje mais frequentes do que eram «antes da crise».

Com efeito, se exceptuarmos os anos de 2006 a 2009 (com valores a rondar os cerca de 4,5%), é justamente em 2011 e 2012 que as taxas de fraude atingem os valores mais baixos verificados desde 2001 (ano que registou um valor próximo de 7%). Não é portanto aqui que, seguramente, se encontram as causas (e os riscos) dos problemas de sustentabilidade económica e financeira do Metropolitano de Lisboa, que a empresa procura justificar com o aumento das situações de não validação de títulos de transporte. Essas causas estão já bem identificadas (vejam-se, a este respeito, as conclusões a que chega o Relatório Preliminar do Grupo Técnico da IAC) e às mesmas acresce o efeito contraproducente da política de aumento de tarifas, redução de recursos humanos e de deliberada degradação dos serviços, responsável por quebras significativas, nos últimos anos, ao nível dos resultados operacionais e dos resultados líquidos da empresa. É esse efeito que a campanha em curso pretende precisamente camuflar, pelo que tudo o mais não passa, de facto, de um simples e perverso atirar de areia para os olhos.

12 comentários:

Unknown disse...

Excelente post! Também já tinha reparado nessa campanha e, apesar de acrescentar muito, nem era preciso mostrar qualquer dado para mostrar como é ridícula. A ideia é em si nojenta, mesmo que a taxa de fraude tivesse de facto aumentado.

Dias disse...

Esta ideia da “bufaria cidadã” revela a ideologia que está por trás. É óbvio que a fraude não se erradica com mais bufaria, o civismo não nasce por acaso. Sem condições de vida minimamente decentes para os cidadãos e utentes, isto irá de mal a pior…

Luís Lavoura disse...

É sempre assim: um cidadão que denuncia outro é considerado probo e honesto se a atividade denunciada fôr considerada condenável, mas é apodado de "bufo" se se considera que a atividade denunciada é tolerável.
Pergunto se o Nuno Serra apodaria de "bufaria" a atividade de denunciar à polícia, por exemplo, um caso de violência doméstica grave.

Pedro Estêvão disse...

Ainda bem que não sou o único a ficar indignado com esta campanha do metro!

Embora o que me pareça odioso não seja tanto o apelo à "bufaria" mas, mais uma vez, o querer culpabilizar-se os cidadãos pela quebra de qualidade do serviço, escondendo-se que ela resulta na sua quase totalidade de decisões conscientes da empresa e do Governo.

R.B. NorTør disse...

Isto eram os guardanapos que o Oliveira e Costa usava quando a SLN se reunia para jantar na Quinta da Coelha. Tal como os Mirós tiveram de ser despachados do armazém.

José M. Sousa disse...

Que raio de comparação! Há gente sem um mínimo de decência!

Jose disse...

«na useira e vezeira lógica de colocar cidadãos contra cidadãos»

Mas há algo mais evidente do que isso na tão louvada 'luta de classes'?

E já agora a classe dos chicos-espertos é de estimar ou de lutar contar ela, ó marxistas!

Anónimo disse...

Simplesmente miserável a campanha do Metro e da Carris.!
Os autores destas ideias estupidas e pidescas são bem o retrato do país em que nos estamos a tornar por força da extrema-direita fascista corporizada nos dirigentes máximos da aliança PSD/CDS.
É imperioso e urgente correr com esta gentalha que tornou o ar irrespirável.!

Jaime Santos disse...

Concordo com o Luís Lavoura. Embora o crime de violência doméstica seja incomparável com a fraude nos transportes públicos, por outro lado, se condenamos a grande fraude (bancária, fuga fiscal, etc), também devemos condenar a pequena, sendo que o meios de combate à primeira deveriam ser proporcionalmente maiores, e será que é esse o caso? Agora, a pergunta que se deve fazer é outra: para que serve este tipo de campanhas, senão para gastar dinheiro? No sistema do Metro de Lisboa, um conjunto de câmaras, junto às portas, fará muito melhor a função de fiscalização que os utentes individuais, a não ser que estejam em preparação 'brigadas fiscais cidadãs', o que seria uma tontice, a fiscalização, como o policiamento, é para ser deixada a profissionais, Portanto, a conclusão é a do Nuno Serra: além do dinheiro gasto, o que se procura é encontrar uns quantos 'bodes respiratórios' para justificar a quebra de qualidade nos serviços...

M. disse...

A solução são transportes públicos gratuitos, assim já não há fraude. Eu votaria num partido que fizesse uma proposta clara nesse sentido, a juntar a uma defesa clara e intransigente dos sistemas universal de saúde e educação, indo buscar o dinheiro aonde ele está. E para os idiotas que começam logo a guinchar que isto é o inicio de uma ditadura ou outra banalidade do género olhem para o que aquela tartaruga da Teodora Cardoso ou lá o que é anda a propor e depois falamos de ditadura.

Anónimo disse...

Temos que abrir os olhos mas é para vermos quem são os Jacintos Capelo Rego !

Anónimo disse...


Quem vem aqui defender esta campanha da Carris e do Metro, devia era lembrar-se do que estas empresas custaram em SWAPS.