quarta-feira, 12 de março de 2014

As contas do Primeiro Ministro mostram quem tem razão

De acordo com o Jornal de Negócios, Passos Coelho apresentou hoje assim os seus argumentos contra quem defende a necessidade de uma reestruturação da dívida: “Se nós conseguirmos exibir nos próximos anos um excedente primário em torno de 1,8%; se juntarmos um nível de inflação não superior a 1%, e um crescimento anual em torno de 1,5% ou 2%, temos possibilidade de exibir o resultado que pretendemos: sustentabilidade da dívida pública com redução da dívida”

Refazendo as contas que já apresentei aqui e aqui, quis perceber melhor o que o Primeiro Ministro tem em mente. Para tal, parti dos dados previstos na 10ª avaliação do Memorando para 2014. Para fazer estas contas é também necessário um dado que Passos Coelho omitiu: o valor das taxas de juro. Para ser bondoso, assumi que a taxa de juro média iria manter-se idêntica à actual (o que só será possível com uma descida ainda mais acentuada dos juros de mercado - que estavam há pouco nos 4,5% para a dívida a 10 anos - ou com um programa cautelar, ou com um segundo resgate, ou com uma renegociação da dívida...). Os resultados são os que se vêm na tabela abaixo e nas notas que se seguem.





Ou seja:

1. Com as hipóteses apresentadas, a dívida pública estaria, de facto, em trajectória descendente. Mas o seu ritmo de descida seria menos de três vezes inferior ao previsto no Tratado Orçamental. Por outras palavras, o governo está a reconhecer que o Tratado que ratificou não é para cumprir. É bom saber.

2. O cenário orçamental que Passos Coelho tem em mente é ainda mais inaudito do que aquele que aqui referi. Em 17 anos só por seis vezes algum dos 28 Estados Membros da União Europeia (Alemanha em 2000 e 2008, Bélgica em 1996, Luxemburgo em 2008, Finlândia em 2003 e Suécia em 1996) tiveram saldos orçamentais tão elevados num contexto de crescimento tão modesto e de inflação tão baixa, como aquele que o Primeiro Ministro apresenta. Se a isto juntarmos a taxa de crescimento de consumo interno prevista para Portugal para os próximos anos (1,4% ao ano), o leque de ocorrências reduz-se a três (Alemanha e Luxemburgo em 2008, Suécia em 1996). A julgar por estes números, a probabilidade de isto acontecer num ano em Portugal é de 0,6%. A probabilidade de se verificar o que Passos Coelho assume como hipótese para Portugal durante mais de uma década é praticamente nula.

3. O cenário atrás apresentado pode, ainda assim, revelar-se demasiado optimista. Portugal creceu a uma taxa média anual de 1% entre 2000 e 2008. Hoje temos uma economia muito mais endividada (e, tal como o FMI reconhece, a dívida privada é um problema ainda mais grave do que a dívida pública) e sem perspectivas de crescimento do mercado interno (o que será agravado com a continuação da austeridade). Soa, pois, pouco credível a hipótese de que cresceremos a uma média de 1,5% ao ano durante duas décadas, nas condições actuais. Também é pouco credível que o país possa financiar-se com taxas de juro médias ao nível das actuais (a não ser, claro está, com uma forte renegociação da dívida...). Finalmente, é de esperar que a dívida pública venha aumentar por via de reclassificação estatítica, o que torna ainda mais improvável o cenário de sustentabilidade. Em resumo, o cenário apresentado pelo Primeiro Ministro é não apenas inaudito no que respeita à política orçamental, mas também marcadamente optimista do ponto de vista macroeconómico.

4. Face ao acima descrito, a obstinação em pagar a dívida nos termos actualmente previstos (de juros, prazos e montantes) conduziria o país para uma experiência radical de destruição do Estado e dos serviços públicos, e de desestabilização das relações sociais. É contra este aventureirismo que 70 pessoas, com ideias muito diferentes sobre muitas coisas, aceitaram pôr o seu nome num manifesto. Os directores dos jornais económicos estão com dificuldade em compreendê-lo (ver aqui e aqui). Mas isto diz mais sobre os próprios do que sobre as razões do manifesto.

13 comentários:

Pedro Santos disse...

Ler a crónica de Nicolau Santos de hoje no Expresso: http://expresso.sapo.pt/maria-luis-e-passos-versus-cavaco-em-quem-acredita=f860413

Lobo disse...

A mentira tem perna curta e na medida em que vão tentando encobri-la a bola de neve vai rolando e crescendo. E o povo aguenta... ai aguenta... aguenta. Até quando, não sei. Sei que sou a favor da proposta dos 70.

Anónimo disse...

Onde está "virtualmente nula" devia estar "praticamente nula". Virtually, em inglês, é praticamente em português.

Ricardo Paes Mamede disse...

Tem toda a razão, anónimo. Vou rectificar, obrigado.

Pedro disse...

Caro Ricardo, uma pergunta:

Este estudo engloba as prováveis idas ao mercado em busca de mais dinheiro, logo mais dívida, nos anos em causa?

Saraiva disse...

A dívida pública portuguesa é pagável, ao contrário do que se diz na comunicação social generalista.

Veja-se, a título de exemplo:
http://economicofinanceiro.blogspot.pt/2013/02/a-restruturacao-da-nossa-divida-publica.html

Não DESINFORMEM a opinião pública por favor!!

Unknown disse...

Pessoalmente não acredito que uma renegociação dos prazos / taxas da divida pública a tornem «pagável» num cenário macro-económico realista. Assim sendo considero uma distopia todos os cenários de reestruturação que não passem por um perdão parcial de divida nunca inferior a 30%. Se os nosso credores não no-lo permitirem, das duas uma ou saímos do Euro, assumindo os custos que daí advierem, ou suspendemos unilateralmente o serviço da dívida. Senão o fizermos nós como pré condição para negociações, acabará por acontecer mesmo contra nossa vontade.

Por isto para mim qualquer renegociação / reestruturação sem perdão parcial, não passarão nunca de placebos.

É que os títulos de divida eterna emitidos pelo Salazar com prazo de pagamento no ano 9999, não são susceptíveis de ter compradores sem serem forçados a isso, a não ser que o estado passe a pagar os subsidios de natal e de férias aos Fps, em titulos de divida pública a vencerem-se aos 65 anos, destes...

Ricardo Paes Mamede disse...

Pedro,
as 'idas ao mercado' fazem-se por neecssidades de financiamento. E estas últimas estão consideradas na simulação.

Nuno Serra disse...

Caro Saraiva,
Assim de repente só me ocorre um comentário ao post que referencia: fez-me lembrar as declarações do ministro Nuno Crato há uns meses atrás - «os portugueses precisavam "trabalhar um ano sem comer" para pagar a dívida».

Pedro Ramalho Carlos disse...

Caro Ricardo,

Duas questões:
- Porque razão é na sua opinião uma taxa média sobre o stock da dívida de 3.4% optimista? Em especial num cenário que tem excedentes primários consistentes durante mais de 5 anos seguidos? Não fará sentido baixar significativamente a taxa de juro média sobre o stock de dívida pelo menos a partir do ano 6?

- Será mesmo uma impossibilidade nacional ter défices globais (e não primário) próximo de zero - na faixa -0.5% a +0.5%, como tendem a fazer as empresas e famílias? É que no cenário que traça o défice global médio das contas públicas continua a ser 1.6% do PIB- ou seja: considerando que o Estado representa 40% do PIB, continuaríamos para todo o sempre a ter o Estado a gastar 4% acima das receitas... Não faria sentido apontar o ponto médio para oum excedente global de 0.5% e usar o défice para ajudar - excepcionalmente - em contraciclo?

Respeitosamente.

Ricardo Paes Mamede disse...

Caro Pedro Ramalho Carlos,

Não sou eu quem considera esses valores optmistas, são todas as instituições nacionais e internacionais (FMI, OCDE, CE, Banco de Portugal).

Em geral, as simulações para a trajectória da dívida assumem juros médios de 4%, mesmo num cenário de redução gradual da dívida. Isto porque pressupõem que as taxas de juro na zona euro estão anormalmente baixas e que o prémio de risco associado aos países periféricos não voltará a ser tão baixo como no period pré-crise.

O mesmo se aplica ao défice orçamental global: em geral, todas as instituições assumem que o peso dos juros pagos no PIB continuará a ser superior ao saldo primário, o que implica défice orçamental.

Em condições normais, não há motivo para um Estado ter défice nulo. Como saberá, o motivo pelo qual se fixou como valores de referência na UE 3% para o défice e 60% para a dívida foi o facto de se assumir que esses valores assegurariam a sustentabilidade da dívida pública (assumindo níveis historicamente razoáveis de taxas de juro e de crescimento económico).

Em condições normais, um saldo orçamental nulo implicaria a completa anulação da dívida a prazo, para a qual não existe qualquer racionalidade económica (nem ao nível do Estado, nem das empresas ou das famílias). Nas condições actuais, um saldo orçamental nulo seria uma completa irracionalidade - em termos económicos, sociais e politicos.

Tonibler disse...

Baixam-se os salários. Afinal, o problema está no estado, não no país. Qual é o problema? Também se pode encerrar o estado
E já agora para quê gastar tanta celula de Excel e tanta metalinguagem gasta num problema que é basicamente tão fechado como um orçamento municipal? Se os juros sobem, baixa-se os custos. Não há aqui nenhum problema económico, é um mero problema de gestão da causa pública. A não ser que esteja a ser visto pelos beneficiários da despesa, claro.

Pedro Ramalho Carlos disse...

Obrigado pelo esclarecimento Ricardo.

Eu percebo que as projecções de médio prazo usem essas taxas, mas para projeções de longo prazo - pelo menos nalgum dos cenários mais optimistas - parecer-me-ia que a trajectória dos juros médios deveria levar em consideração o efeito "risco reduzido" que excedentes consistentes indiciam - e usar proxies de países com esse perfil (Ch ou JP?). Obviamente que com o nosso histórico dos últimos 40 anos ninguém do lado dos credores o vai aceitar à priori numa projeção... Estou a pensar do lado do devedor.
De qq forma não encontrei nenhuma projecção oficial do BdP, IGCP, OCDE, FMI, a longo prazo. Tenho de procurar melhor...

Em relação ao saldo orçamental nulo - penso que a principal justificação é mesmo o excesso de dívida (e correspondentes juros) que me levam a pensar que pelo menos durante uns anos seria benéfico não subir a despesa em linha com o crescimento do PIB, e dessa forma ganhar a folga necessária para voltar mais rapidamente para níveis menos "arriscados". Por outro lado, os 3% de défice e 60% de dívida de Maastricht eram limites máximos, pontuais, e não médios... E numa perspectiva prudente a alavanca contra-cíclica "keynesiana" conseguiria encaixar no limite se o ponto de partida fosse o equilíbrio. Ou seja, usava-se a capacidade de endividamento apenas em situações de pré-recessão e em modo estímulo.

Mas, isto é bonito no Excel, mas na prática a camada "política" distorce as decisões racionais...

Mais uma vez Obrigado Ricardo.