segunda-feira, 30 de junho de 2014
Dez erros na melhor das hipóteses
Assente num mau diagnóstico sobre as causas da crise, demasiado condicionado por preconceitos ideológicos e limitado pelos poucos instrumentos de política disponíveis na zona euro, o programa acabou por exigir uma factura desproporcionada a Portugal.
Rui Peres Jorge, Os 10 Erros da Troika em Portugal, 2014, p. 15.
Este livro é a continuação do trabalho jornalístico de Rui Peres Jorge no Negócios por outros meios, combinando informação e análise económicas em porções bem doseadas e revelando um conhecimento profundo dos debates académicos e políticos sobre a austeridade na Zona Euro, condição necessária para os destilar e avaliar com a clareza com que o faz. Registei as muitas concordâncias – são tantos os “erros” da troika – e também as poucas discordâncias, chamemos-lhes assim por simetria – por exemplo, uma tendência natural para valorizar elementos intelectuais e políticos mais contingentes, em detrimento dos mais estruturais, associados à natureza da Zona Euro e a um país sem soberania e sem forças capazes de a reconquistar, e para considerar aqui e ali, implicitamente, como único contrafactual uma austeridade menos excessiva na periferia no quadro de um ajustamento mais simétrico da zona. Guardo-as talvez para uma recensão.
Por agora, gostaria apenas de assinalar que Rui Peres Jorge assume a melhor das hipóteses sobre a troika: cometeu erros. Isto compreende-se e até facilita a análise a um certo nível, mas sabemos que há mais do que erros: há interesses de classe bem racionais, em termos dos meios mobilizados para os fins dados, internos e externos, ou seja, resultados bem intencionais. Pelo menos três dos dez erros identificados – protecção “excessiva” dos bancos, a lógica anti-laboral das alterações das regras do jogo laboral e a criação de um país mais desigual – são todo um modelo favorável aos grupos dominantes. Este livro também é um modelo, mas de trabalho de análise competente ao “maior programa de engenharia económica e social a que Portugal foi sujeito em décadas”.
domingo, 29 de junho de 2014
sábado, 28 de junho de 2014
Brutalmente claro
Este gráfico, retirado de uma análise de Joana Louçã, ilustra na perfeição a natureza de classe da desvalorização interna em curso e da transformação institucional regressiva associada, ambas sobredeterminadas pela nossa pertença ao euro. Sem contratação colectiva, os trabalhadores ficam muito mais expostos, aumentando o poder patronal para ditar as condições laborais e fragilizando-se os sindicatos: uma cada vez mais desigual economia sem pressão salarial é o resultado estrutural. Nós sabemos que a acção colectiva dos trabalhadores e a sua tradução institucional foram historicamente condições necessárias para a construção do Estado social, fazendo de resto parte do seu sistema: os países capitalistas com mais trabalhadores abrangidos por negociação colectiva mais centralizada tendem a ser os mais igualitários. A desvalorização interna implica demolir tudo o que desmercadoriza, tudo o que impede que a força de trabalho seja encarada como se de uma mercadoria se tratasse, e não é por acaso que um dos alvos principais da troika e do seu governo foi sempre a contratação colectiva existente. Não se enganaram. Assim, fica brutalmente claro: quem ganha e quem perde neste arranjo com escala europeia.
sexta-feira, 27 de junho de 2014
Leituras
«O responsável máximo da fundação do Pingo Doce, um think tank inteligente do neoliberalismo, declarou, ao jornal i, que os juízes do Tribunal Constitucional tinham mentalidade de funcionários públicos. (...) Para certa gente, servir a população é um crime. Todos os serviços públicos e o Estado social são vistos como privilégios de madraços e coisas que em última instância estão a impedir algum negócio chorudo de um amigo privado. No fundo o Sr. Garoupa tem alguma razão: neste país há duas atitudes mais pronunciadas, uma espécie de ideal de tipo weberiano, que resumiriam as atitudes em disputa: por um lado, temos a maioria da população, que tem "mentalidade de funcionário público", por outro lado, temos os governantes, as fundações, que justificam o nosso sistema, e as elites económicas, que têm mentalidade de banqueiro. (...) Mentalidade de banqueiro é aquela que acha natural que os lucros da especulação sejam para os accionistas e os prejuízos dessa nobre actividade sejam pagos pelo contribuinte. Foi o que funcionou até agora. Nós pagamos os BPN, os BCP, as parcerias público-privadas e os swaps especulativos com os nossos ordenados, impostos e reformas. (...) Aqui em Portugal quem denuncia a pouca-vergonha pode acabar na cadeia, aqueles que na realidade enforcam o país e roubam a sua população ainda ganham medalhas de comendadores.»
Nuno Ramos de Almeida, Portugal enforcado
«De orçamento em orçamento, Passos (...) fez por ignorar a jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC). Todos os chumbos foram os esperados e, no que não foram, a causa de algum espanto foi os acórdãos pecarem por defeito na penalização do executivo. A mensagem infantil e derrotada à partida – um alemão explicaria bem isto ao Governo – de que o TC inviabiliza a ação de quem governa foi acolhida com a inteligência que sobra ao povo e que falta ao Governo: é este último e não o TC que inviabiliza uma governação nos limites da legalidade. Mais: é o Governo que quer movimentar-se fora da lei. Assente em declarações terroristas como a da necessidade de “escrutinar melhor os juízes” que, imagine-se, não cumpriram com as expetativas de quem os escolheu, provavelmente assente numa lógica de avença, a verdade da mensagem é só uma: aconteça o que acontecer, a política do Governo será sempre cortar salários e pensões. (...) Por isso, quando agora o Governo pede a Cavaco para suscitar a fiscalização preventiva de diplomas para se saber das orientações do TC apelidadas de “políticas”, o Governo assume que não quer governar de acordo com a CRP, fingindo que não sabe (...) e envolve, naturalmente com acordo prévio, o PR. Fica então aquele órgão de soberania sediado em Belém destinado a requerer a fiscalização preventiva de diplomas, não por ter a convicção de que os mesmos sejam inconstitucionais, mas para colaborar com o Governo na sua convicção de que o peso do incumprimento, o peso da violação do direito e da separação de poderes, deve ser colocado no TC.»
Isabel Moreira, O presidente que veicula a confissão governamental
«Cavaco Silva recebeu na quarta-feira o seu homólogo alemão, Joachim Gauck, para lhe dizer que o país aprendeu "a lição". Ao dominador alemão, que nos veio lembrar do "favor" feito ao país, responde o dominado, com obediência masoquista: "Aprendemos a lição". (...) É o orgulho do governante colonizado que, confundindo humildade com humilhação, volta ao discurso dos pobres mas honrados, ou, na verdade, honrados porque pobres. (...) Vale a pena recapitular o que terá sido a década anterior à crise, a da tal "lição", [durante a qual] (...) a dívida pública portuguesa em percentagem do PIB foi inferior à alemã e muito inferior à média europeia. Os salários, esses sempre foram inferiores a qualquer média (...). Benefícios sociais em percentagem do PIB? Em 2000 eram 18%. Na zona euro? 25%. E na Alemanha? 28%. (...) As despesas em educação, na década de 2000, permaneceram estáveis, as da saúde aumentaram um ponto percentual no PIB - um dos ritmos de crescimento mais baixos da Europa. O tão propalado Estado gordo que serviu de justificação à austeridade era, feitas as contas, um Estado de dimensões pequenas, porventura até demasiado pequenas para o atraso do país em qualificações, serviços públicos e investimento no setor produtivo. (...) A crise que vivemos tem, portanto, outras raízes. Dizem os registos mais recentes que, em 2008, se deu a maior hecatombe financeira de que há memória desde 1929. Sabe-se também, de fonte segura, que a culpa se deveu à especulação que surfou livremente a desregulamentação que os moralistas de hoje advogaram no passado. (...) Então para quê tanto moralismo, senhor Presidente?! Para quê, então, esta visão do empobrecimento de um país e de um povo como expiação coletiva de uma suposta "culpa" social?»
Mariana Mortágua, Lições há muitas, professor Cavaco
quinta-feira, 26 de junho de 2014
As esquerdas e o PS pós-directas
No centenário da Grande Guerra, é importante lembrar que, em Setembro de 1914, o governo alemão dispunha de um documento estratégico sobre os objectivos da guerra de que constava o seguinte ponto: "Uma grande união económica da
Europa Central, sem cabeça constitucional comum, sob a aparente igualdade dos seus membros, mas de facto sob direcção alemã" (ver Jean-Pierre Chevènement, 1914-2014, L'Europe sortie de L'histoire?, Fayard; p. 103). Para além do debate sobre a natureza do pangermanismo e do nazismo - há
quem sustente que o nazismo rompe com o nacionalismo alemão (Jacques Sapir, 18 juin, RussEurope) - este documento recorda-nos que, desde a
unificação conduzida pela Prússia, diferentes forças sociais e movimentos ideológicos convergiram para que a Alemanha adoptasse muito cedo uma estratégia de afirmação económica e política, na Europa e no mundo.
Com as negociações que conduziram à reunificação no século xx, o pensamento económico dominante na Alemanha (ordoliberalismo) hegemonizou a construção jurídica e económica da UEM ao ponto de "o aluno dócil se ter transformado no tutor da Europa" (Ulrich Beck). Lembremos John Adams, o segundo presidente dos EUA: "Há duas maneiras de conquistar e subjugar uma nação. Uma é pela espada, a outra é pela dívida" (citado por Chevènement, p. 247). Hoje, através de um mercantilismo agressivo, apoiado por mercados financeiros em roda livre, a Alemanha procura conquistar um lugar cimeiro na economia política internacional do século xxi. Omitindo que financiou, através dos seus bancos, a dívida externa das periferias para escoar os seus produtos, submarinos incluídos, a Alemanha procura agora "moldar" a zona euro através do Tratado Orçamental, a que acrescentará pacotes financeiros específicos destinados a comprar a anuência dos partidos sociais-liberais.
Para sabermos como enfrentar esta crise, devemos ter presente que a Alemanha não vai pôr em causa o seu modelo económico. E não vai aceitar uma UE federalizante, se isso significar a responsabilidade por transferências financeiras avultadas, de natureza permanente, sem montante definido à partida (8%-12% do PIB alemão durante muitos anos; contas de Jacques Sapir). Nem vai aceitar que o BCE, ou qualquer agência europeia no seu lugar, assuma as dívidas impagáveis da periferia. Isso seria pedir à Alemanha que, de um dia para o outro, abandonasse os princípios da sua "economia social de mercado", "uma visão antiga, institucionalmente enraizada e que recua à sua experiência de industrialização tardia" (Christopher Allen, "The Underdevelopment of Keynesianism in the Federal Republic of Germany", p. 289). Por isso, como afirma um economista alemão, "é literalmente impossível para a mentalidade alemã admitir que a própria Alemanha possa de facto ser parte do problema do euro" (Jörg Bibow, "Are German Savers Being Expropriated").
Colocada a crise nesta perspectiva, o que se pode esperar da disputa pela liderança do Partido Socialista?Aparentemente, trata-se de escolher o candidato mais capaz de vencer as próximas eleições e participar numa (imaginada) coligação das periferias que, chegada a hora, imponha uma reestruturação honrada das dívidas e uma interpretação suave do Tratado Orçamental. Qualquer que seja a escolha dos socialistas, há algo que as esquerdas têm obrigação de ter presente quando tiverem de se relacionar com o PS pós-directas: confrontada com exigências que põem em causa a sua estratégia, a Alemanha não hesitará. Tratando-se da sua forma de ver o mundo, e do seu lugar nele, a sua escolha está feita e não releva da racionalidade económico-financeira. As esquerdas têm obrigação de saber que a Alemanha não prescinde da sua autonomia estratégica, com o euro nas suas condições, ou então sem o euro. Alimentar a ilusão de uma reforma progressista da UE só pode conduzir ao desastre nos partidos políticos que a protagonizarem.
(O meu artigo no jornal i)
Com as negociações que conduziram à reunificação no século xx, o pensamento económico dominante na Alemanha (ordoliberalismo) hegemonizou a construção jurídica e económica da UEM ao ponto de "o aluno dócil se ter transformado no tutor da Europa" (Ulrich Beck). Lembremos John Adams, o segundo presidente dos EUA: "Há duas maneiras de conquistar e subjugar uma nação. Uma é pela espada, a outra é pela dívida" (citado por Chevènement, p. 247). Hoje, através de um mercantilismo agressivo, apoiado por mercados financeiros em roda livre, a Alemanha procura conquistar um lugar cimeiro na economia política internacional do século xxi. Omitindo que financiou, através dos seus bancos, a dívida externa das periferias para escoar os seus produtos, submarinos incluídos, a Alemanha procura agora "moldar" a zona euro através do Tratado Orçamental, a que acrescentará pacotes financeiros específicos destinados a comprar a anuência dos partidos sociais-liberais.
Para sabermos como enfrentar esta crise, devemos ter presente que a Alemanha não vai pôr em causa o seu modelo económico. E não vai aceitar uma UE federalizante, se isso significar a responsabilidade por transferências financeiras avultadas, de natureza permanente, sem montante definido à partida (8%-12% do PIB alemão durante muitos anos; contas de Jacques Sapir). Nem vai aceitar que o BCE, ou qualquer agência europeia no seu lugar, assuma as dívidas impagáveis da periferia. Isso seria pedir à Alemanha que, de um dia para o outro, abandonasse os princípios da sua "economia social de mercado", "uma visão antiga, institucionalmente enraizada e que recua à sua experiência de industrialização tardia" (Christopher Allen, "The Underdevelopment of Keynesianism in the Federal Republic of Germany", p. 289). Por isso, como afirma um economista alemão, "é literalmente impossível para a mentalidade alemã admitir que a própria Alemanha possa de facto ser parte do problema do euro" (Jörg Bibow, "Are German Savers Being Expropriated").
Colocada a crise nesta perspectiva, o que se pode esperar da disputa pela liderança do Partido Socialista?Aparentemente, trata-se de escolher o candidato mais capaz de vencer as próximas eleições e participar numa (imaginada) coligação das periferias que, chegada a hora, imponha uma reestruturação honrada das dívidas e uma interpretação suave do Tratado Orçamental. Qualquer que seja a escolha dos socialistas, há algo que as esquerdas têm obrigação de ter presente quando tiverem de se relacionar com o PS pós-directas: confrontada com exigências que põem em causa a sua estratégia, a Alemanha não hesitará. Tratando-se da sua forma de ver o mundo, e do seu lugar nele, a sua escolha está feita e não releva da racionalidade económico-financeira. As esquerdas têm obrigação de saber que a Alemanha não prescinde da sua autonomia estratégica, com o euro nas suas condições, ou então sem o euro. Alimentar a ilusão de uma reforma progressista da UE só pode conduzir ao desastre nos partidos políticos que a protagonizarem.
(O meu artigo no jornal i)
quarta-feira, 25 de junho de 2014
Amanhã: Grécia - Portugal
Em mais um debate organizado pelo Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal (IDEFF), da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Com intervenções de Nicholas Georgakopoulos (Universidade do Indiana), Francisco Louçã (ISEG), Ricardo Paes Mamede (ISCTE) e André Freire (ISCTE). Em análise comparativa, as medidas económicas adoptadas na Grécia e em Portugal e o balanço sobre os seus impactos.
É a partir das 10h00 no Auditório da FDUL e estamos todos convidados.
terça-feira, 24 de junho de 2014
Um país a desfalecer
De modo mais ou menos dissimulado, tem-se assistido a um conjunto de tentativas de branquear a relação entre a austeridade e o abismo demográfico em que o pais mergulhou, nos últimos anos. Maria Cavaco Silva, por exemplo, quando instada a comentar o aumento da emigração, na recente visita dos inquilinos de Belém à China, colocou de lado a subtileza e defendeu que «a emigração sempre existiu, mesmo sem crise», situando esta sentença na romântica visão da «abertura ao mundo como um mundo de oportunidades» (como quem diz, portanto, que «pimenta no rabo do outro para mim é refresco»).
Mas mesmo alguém mais informado e responsável, como Joaquim Azevedo, nomeado pelo governo para presidir à comissão multidisciplinar que entregará, em breve, um conjunto de propostas tendentes a promover a natalidade, não resistiu à tentação de apresentar o abismo demográfico como um fenómeno alheio às políticas seguidas desde 2011. Para o catedrático da Universidade Católica Portuguesa, «o problema da queda demográfica não é consequência da crise, é um fenómeno que tem trinta anos», mesmo que reconheça, logo a seguir, que «não ter emprego, ou ter um emprego precário ou mal remunerado, ou não haver incentivos, incluindo na questão da educação nos três primeiros anos, são questões muitíssimo importantes». A entrevista dada por Joaquim Azevedo ao Público, no início de Abril, merece de resto ser lida na íntegra, pois é muito esclarecedora quanto à capacidade de relativizar (e portanto branquear) os impactos do ajustamento (e do «ir além da troika»), nas dinâmicas demográficas mais recentes.
A evolução dos números é contudo muito clara, demasiado clara. É a partir de 2010 que se regista uma situação demográfica absolutamente inédita na sociedade portuguesa, com os saldos natural e migratório a entrarem, em simultâneo, no negativo, arrastando consigo, para baixo e em ritmo acelerado, os saldos demográficos. Mais: é a partir de 2010 que o saldo natural (diferença entre nascimentos e óbitos) conhece quebras sem paralelo histórico (uma média de -15 mil por ano entre 2011 e 2013, que contrastam com os cerca de -3 mil entre 2008 e 2010 e, mais ainda, com os valores positivos, em média anual, registados entre 1991 e 2007). E se é verdade que o saldo migratório (diferença entre imigrantes e emigrantes) estava já em redução progressiva antes do início do ajustamento (mantendo-se contudo em valores positivos), o ritmo da sua retracção agudiza-se de modo muito significativo a partir de 2010, para o que contribui o incremento exponencial da emigração e o aumento da saída de imigrantes do nosso país. É de facto preciso uma enorme ginástica intelectual para considerar que existe uma espécie de continuidade entre os cerca de -33 mil residentes por ano, em média, registados entre 2011 e 2013, e os saldos positivos obtidos, também em média anual, entre 2008 e 2010 (cerca de +9 mil residentes) e entre 1991 e 2007 (cerca de +27 mil residentes por ano).
É de prever, aliás, que esta ilusória cortina de fumo, que procura mascarar - e dissolver num quadro temporal mais amplo - os brutais impactos demográficos da austeridade (como se a variação recente destes indicadores não fosse mais do que a continuação regular de dinâmicas previamente estabelecidas), possa ter correspondência num conjunto igualmente ilusório de soluções para enfrentar o problema. Isto é, em soluções como as que a referida comissão multidisciplinar tem vindo a sugerir e que, sendo importantes (como a flexibilização dos horários das creches, o aumento do trabalho em part-time, ou os incentivos fiscais, entre outras, no mesmo plano), estão muito longe de ir ao fundo da questão: os salários e os rendimentos das famílias, o emprego e a estabilidade do emprego, o acesso a serviços públicos e a níveis minimamente razoáveis de bem-estar, a par da crucial questão da confiança, em Portugal e no futuro. Ou seja, tudo o que a gloriosa «transformação estrutural» do país, empreendida com denodado afinco pelo governo de Passos Coelho e Paulo Portas (a coberto do memorando da troika), tem vindo, deliberadamente, a esboroar.
domingo, 22 de junho de 2014
Agregar para que fique tudo na mesma?
“hoje as pessoas querem discutir, é preciso dar outra activação à cidadania.” “a questão é a de saber como o PS consegue colocar-se como a força capaz de agregar.”
“em termos de governação não poderemos romper com o que está, o António [Costa] tem noção e tem demonstrado na sua actuação que sabe e defende a continuidade.”
As frases acima são, segundo o Público, de Porfírio Silva, militante do PS que está a trabalhar na moção de António Costa para as primárias daquele partido.
Parece que há quem acredite que o problema de Portugal é a falta de discussão. A mim parece que o país está confrontado com outro tipo de problemas: uma dívida externa exorbitante, um desemprego de longa duração sem solução à vista, um dos maiores níveis de desigualdade do mundo civilizado, a sujeição a regras orçamentais definidas a nível europeu que agravam os problemas referidos, uma estrutura produtiva que tem revelado dificuldade em singrar num contexto de uma moeda forte, a determinação das lideranças europeias em excluir soluções para a crise europeia que não passem pela imposição de um modelo económico e social na periferia da zona euro assente nos baixos salários e no desmantelamento da protecção social e dos serviços públicos.
Precisamos de discutir e juntar forças, certamente. Andamos muitos a trabalhar nisso há algum tempo. Mas não para que fique tudo na mesma.
“em termos de governação não poderemos romper com o que está, o António [Costa] tem noção e tem demonstrado na sua actuação que sabe e defende a continuidade.”
As frases acima são, segundo o Público, de Porfírio Silva, militante do PS que está a trabalhar na moção de António Costa para as primárias daquele partido.
Parece que há quem acredite que o problema de Portugal é a falta de discussão. A mim parece que o país está confrontado com outro tipo de problemas: uma dívida externa exorbitante, um desemprego de longa duração sem solução à vista, um dos maiores níveis de desigualdade do mundo civilizado, a sujeição a regras orçamentais definidas a nível europeu que agravam os problemas referidos, uma estrutura produtiva que tem revelado dificuldade em singrar num contexto de uma moeda forte, a determinação das lideranças europeias em excluir soluções para a crise europeia que não passem pela imposição de um modelo económico e social na periferia da zona euro assente nos baixos salários e no desmantelamento da protecção social e dos serviços públicos.
Precisamos de discutir e juntar forças, certamente. Andamos muitos a trabalhar nisso há algum tempo. Mas não para que fique tudo na mesma.
sábado, 21 de junho de 2014
sexta-feira, 20 de junho de 2014
Dormi
“Trabalhadores de todo o mundo, ide dormir”. Uma sugestiva fórmula numa informativa recensão: o sono, ou a falta dele (cada norte-americano dormia em média oito horas por dia há uma geração atrás e agora dorme seis horas e meia), e o que é que isso nos diz sobre a cultura do “capitalismo tardio”. Esta expressão já clássica parece ganhar um novo significado no capitalismo dito 24/7, orientado para o curto prazo, com as suas tecnologias, incluindo as de comunicação e de informação, que até parecem de libertação, mas que, no quadro das relações sociais prevalecentes, podem ser sobretudo de controlo, contribuindo para erodir as fronteiras entre trabalho e descanso. No fundo, estamos perante um regime que odeia os tempos mortos ou que tem formas desumanas de os gerar, através do desemprego, por exemplo. Boa noite.
quinta-feira, 19 de junho de 2014
O outro lado
O outro lado de uma sociedade dominada pelo empresarialmente correcto é o exercício, cada vez mais sem freios e contrapesos sindicais e legais, do despotismo patronal, da busca de controlo sobre corpos e mentes, sem distinções artificiais. Aqui está um exemplo do que se esconde por detrás da porta que diz proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço, da porta que cada vez mais se fecha à igualdade democrática: “Há empresas que estão a obrigar as suas funcionárias a assinar por escrito o compromisso de que não vão engravidar nos próximos cinco anos.”
quarta-feira, 18 de junho de 2014
Amanhã, no Auditório do STEC, em Lisboa
«O Relatório "A Anatomia da Crise: Identificar os Problemas para Construir as Alternativas" do Observatório sobre Crises e Alternativas do CES-UC, expos claramente que em Portugal se assiste a uma brutal transferência de rendimentos do trabalho para os rendimentos do capital, no setor privado e no setor público.
O presente Colóquio pretende debater, desde logo com sindicalistas e quadros técnicos das organizações sindicais, as enormes implicações desta transferência ao nível dos rendimentos dos trabalhadores e das suas famílias, contribuindo fortemente para o empobrecimento dos portugueses; dos direitos no trabalho e fragilização do direito do trabalho; do enfraquecimento do Estado Social; do agravamento dos desequilíbrios nas relações de trabalho, colocando os trabalhadores em situações de maior desproteção e fragilidade de representação.
No atual contexto, acresce ainda a necessidade de uma reflexão sustentada sobre o papel da negociação coletiva, as suas potencialidades e constrangimentos, face ao processo de revisão de legislação sobre a matéria que o governo desencadeou.»
9h30-12h30
1º painel: Austeridade, reformas laborais e desvalorização do trabalho
Intervenções de Eugénio Rosa, Hermes Costa, José Castro Caldas e Pedro Ramos (moderação de Manuel Carvalho da Silva)
14h00-17h30
2º painel: O papel da negociação coletiva: potencialidades e constrangimentos
Intervenções de António Casimiro Ferreira, Jorge Leite, Maria da Paz Campos Lima e Vítor Ferreira (moderação de Elísio Estanque)
Os «velocímetros» da Pordata
Não é de hoje nem é algo que prime propriamente pela incongruência. Na página da Pordata continua a investir-se em propaganda subliminar, tendo em vista - sob a capa de uma aparente neutralidade científica - sugestionar os visitantes para a voragem e desperdício de recursos orçamentais que o Estado, esse malandro gordo, desvia da «economia real» para esturrar em serviços públicos de educação e saúde. Tecnicamente, é tudo bastante simples: fazem-se cálculos, ao segundo, da despesa anual por sector e apresenta-se uma espécie de «velocímetros», cujo ritmo de rotação facilmente capta a atenção de quem consulta a base de dados da Fundação Pingo Doce.
Por uma questão de diversificação de indicadores e de refrescamento da página, fica aqui uma sugestão: apliquem agora estes velocímetros, por exemplo, ao aumento da dívida pública, ao número de famílias que deixam de poder pagar a casa, à evolução do crédito malparado, ou ao aumento de pedidos de ajuda alimentar recebidos por instituições e cantinas sociais. É bem possível que obtenham resultados igualmente «interessantes».
terça-feira, 17 de junho de 2014
Debater sempre
Nestes anos de chumbo, o IDEFF, sob a liderança de Eduardo Paz Ferreira, tem sido talvez o principal dinamizador de debates tão oportunos quanto plurais no campo da economia política. O debate que terá lugar na próxima sexta-feira (os detalhes estão aqui) é exemplar do que acabei de dizer: o tema é a reestruturação da dívida, a partir de uma das propostas europeias, com o acrónimo PADRE (uma proposta politicamente aceitável para a reestruturação da dívida na Zona Euro...), formulada, em co-autoria, pelo economista convencional Charles Wyplosz, que estará presente; a ele juntar-se-ão Vítor Bento, João Cravinho e José Maria Castro Caldas, aqui dos Ladrões e da IAC. Nada melhor do que um debate com contraditório para avaliar a robustez das propostas, até porque sabemos bem que reestruturações há muitas, com várias escalas, e que a questão em economia política pode ser: aceitável para quem? Dito de outra forma: quem fica com o quê e porquê?
segunda-feira, 16 de junho de 2014
Um jornal para grandes transformações
O processo acelerado de eurofagia neoliberal, que no futuro deverá fazer os historiadores questionarem o uso que temos dado a palavras como «europeístas» e «eurocépticos» (quais destroem a possibilidade de um projecto europeu?), pode ter vários desfechos. Sociedades e territórios cada vez mais polarizados entre ricos e pobres, em que a liberdade é apenas apanágio das mercadorias e do capital, e em que os cidadãos são carne para canhão – talvez não em guerras no terreno militar, mas numa guerra económica sem quartel –, não pode ser uma possibilidade para quem entende que os vínculos que nos ligam uns aos outros têm de servir para a emancipação individual e colectiva de cada ser humano, de cada comunidade.
Sandra Monteiro, Eurofagia.
As eleições europeias de Maio de 2014 mostraram a rejeição crescente que as políticas aplicadas no Velho Continente inspiram. Qual foi a resposta de Bruxelas a esta condenação popular? Apressar a conclusão de um acordo negociado em segredo com Washington, o Grande Mercado Transatlântico (GMT). A resposta seria paradoxal se privatizações e comércio livre não fossem os dois credos habituais da União Europeia.
Serge Halimi, Os poderosos redesenham o mundo.
Do Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês consta um extenso dossiê, que inclui um artigo do Nuno Teles, sobre o último esforço para construir e abrir, a golpes de política pós-democrática, mercados no Atlântico, protegendo assim os interesses dos mais fortes. Nem de propósito, foram hoje revelados documentos confidenciais que indicam o que está em causa no planeado acordo de comércio entre a UE e os EUA: desregulamentação e privatização.É urgente mandar o GMT para o mesmo sítio para onde se enviou o AMI. Também já é tempo dos que ainda mantêm ilusões sobre a possibilidade de a UE vir a constituir-se como baluarte de protecção face à globalização acordarem para a realidade: a UE é o outro nome da globalização neoliberal no continente.
De resto, e em mais um excelente contributo, desta vez sobre as novas estratégias para o desmantelamento dos sistemas públicos de pensões, Maria Clara Murteira não deixa de assinalar o papel negativo da UE também neste campo. O mal chamado modelo social europeu, dado que há vários modelos, foi construído a partir dos Estados, ali onde a democracia pôde ser mais intensa. A UE, em si mesma, tem inscrita na sua matriz um forte viés neoliberal. De quanto mais evidência é que precisam? O contra-movimento, a dar-se, dar-se-á a partir de impulsos nacionais e populares, de preferência articulados, contra a utopia do grande mercado, um outro nome desta UE.
Sandra Monteiro, Eurofagia.
As eleições europeias de Maio de 2014 mostraram a rejeição crescente que as políticas aplicadas no Velho Continente inspiram. Qual foi a resposta de Bruxelas a esta condenação popular? Apressar a conclusão de um acordo negociado em segredo com Washington, o Grande Mercado Transatlântico (GMT). A resposta seria paradoxal se privatizações e comércio livre não fossem os dois credos habituais da União Europeia.
Serge Halimi, Os poderosos redesenham o mundo.
Do Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês consta um extenso dossiê, que inclui um artigo do Nuno Teles, sobre o último esforço para construir e abrir, a golpes de política pós-democrática, mercados no Atlântico, protegendo assim os interesses dos mais fortes. Nem de propósito, foram hoje revelados documentos confidenciais que indicam o que está em causa no planeado acordo de comércio entre a UE e os EUA: desregulamentação e privatização.É urgente mandar o GMT para o mesmo sítio para onde se enviou o AMI. Também já é tempo dos que ainda mantêm ilusões sobre a possibilidade de a UE vir a constituir-se como baluarte de protecção face à globalização acordarem para a realidade: a UE é o outro nome da globalização neoliberal no continente.
De resto, e em mais um excelente contributo, desta vez sobre as novas estratégias para o desmantelamento dos sistemas públicos de pensões, Maria Clara Murteira não deixa de assinalar o papel negativo da UE também neste campo. O mal chamado modelo social europeu, dado que há vários modelos, foi construído a partir dos Estados, ali onde a democracia pôde ser mais intensa. A UE, em si mesma, tem inscrita na sua matriz um forte viés neoliberal. De quanto mais evidência é que precisam? O contra-movimento, a dar-se, dar-se-á a partir de impulsos nacionais e populares, de preferência articulados, contra a utopia do grande mercado, um outro nome desta UE.
Amanhã
Índice do Livro
domingo, 15 de junho de 2014
Meter na gaveta
Numa reportagem na revista do Público de hoje, sintomaticamente intitulada “os intelectuais de direita estão a sair do armário”, o jornalista Paulo Moura consegue escrever que há uma direita intelectual que começa a desafiar a hegemonia da esquerda no campo das ideias, graças ao esforço e mérito de um punhado de intelectuais, alguns saídos da clandestinidade da blogosfera e que confrontam com “realismo” as “utopias” dessa tal esquerda dominante. Incrível, não é? Em que país vive Paulo Moura pelo menos desde os anos oitenta/noventa, já lá vão bem mais de duas décadas?
Na realidade, Paulo Moura reproduz todos os lugares comuns de que é feita a hegemonia das direitas, incluindo a ideia de que continuam a ser uma minoria a precisar de conquistar espaço para as suas ideias prudentes e sensatas. Na realidade, são a maioria e têm o monopólio do radicalismo verbal, um contraponto direitista ao esquerdismo de outros tempos, na comunicação social. E sabem-no, claro. O seu à vontade é sintomático.
Olhem para o que se passa no campo da economia, onde a hegemonia é quase total, da produção ideias à sua reprodução nos jornais ou nos debates na televisão, onde o que surpreende é aparecer alguém a dizer qualquer coisa de esquerda, qualquer coisa civilizada. Façamos aliás um exercício simples. Abramos o Expresso: por cada keynesiano moderado, como Nicolau Santos, há um Daniel Bessa, um João Duque, um João Vieira Pereira e um Pedro Guerreiro.
Pensemos agora no campo das relações internacionais, em geral, ou no da integração europeia, em particular. Aí o panorama é tão desolador como na economia: o debate vai dos neoconservadores, como Miguel Monjardino, aos liberais de “centro-esquerda”, como Teresa de Sousa ou Jorge Almeida Fernandes. Os dois últimos especializaram-se, neste caso no Público, em saudar a esquerda que adopta os termos da direita e em apodar de populistas os que não o fazem. E que dizer de Nuno Rogeiro, por exemplo? E que dizer da quase ausência de espaço para o equivalente à esquerda, por exemplo para intelectuais marxistas, nesta e noutras áreas decisivas no debate político. Será demérito?
E que dizer de uma tendência, essa sim mais recente, mas pouco falada: a aposta dos capitalistas no campo da produção de ideias, sem mediações, com os muitos milhões de Soares dos Santos a patrocinar a melhor inteligência neoliberal que o dinheiro consegue comprar, agora na figura de um Nuno Garoupa? Sempre que o capitalismo se purifica, volta, com menos desfasamentos e mediações, a verdade que temos a obrigação de conhecer com realismo: as ideias dominantes são as ideias da classe dominante.
Nisto da hegemonia, até pode haver mérito, claro, mas há sobretudo redes sociais e aparelhos ideológicos bem financiados e oleados, diga Henrique Raposo as balelas meritocráticas que disser. A verdade é que hoje chegámos aqui: a utopia é um luxo da direita e já não requer nenhuma coragem. E a alardeada disposição conservadora à Oakeshott nunca passou de uma postura só para disfarçar o que sempre foi, é e será o natural activismo das direitas, com os seus usos e abusos do Estado e de outros aparelhos. Não se deixem enganar por Paulo Moura.
Na realidade, Paulo Moura reproduz todos os lugares comuns de que é feita a hegemonia das direitas, incluindo a ideia de que continuam a ser uma minoria a precisar de conquistar espaço para as suas ideias prudentes e sensatas. Na realidade, são a maioria e têm o monopólio do radicalismo verbal, um contraponto direitista ao esquerdismo de outros tempos, na comunicação social. E sabem-no, claro. O seu à vontade é sintomático.
Olhem para o que se passa no campo da economia, onde a hegemonia é quase total, da produção ideias à sua reprodução nos jornais ou nos debates na televisão, onde o que surpreende é aparecer alguém a dizer qualquer coisa de esquerda, qualquer coisa civilizada. Façamos aliás um exercício simples. Abramos o Expresso: por cada keynesiano moderado, como Nicolau Santos, há um Daniel Bessa, um João Duque, um João Vieira Pereira e um Pedro Guerreiro.
Pensemos agora no campo das relações internacionais, em geral, ou no da integração europeia, em particular. Aí o panorama é tão desolador como na economia: o debate vai dos neoconservadores, como Miguel Monjardino, aos liberais de “centro-esquerda”, como Teresa de Sousa ou Jorge Almeida Fernandes. Os dois últimos especializaram-se, neste caso no Público, em saudar a esquerda que adopta os termos da direita e em apodar de populistas os que não o fazem. E que dizer de Nuno Rogeiro, por exemplo? E que dizer da quase ausência de espaço para o equivalente à esquerda, por exemplo para intelectuais marxistas, nesta e noutras áreas decisivas no debate político. Será demérito?
E que dizer de uma tendência, essa sim mais recente, mas pouco falada: a aposta dos capitalistas no campo da produção de ideias, sem mediações, com os muitos milhões de Soares dos Santos a patrocinar a melhor inteligência neoliberal que o dinheiro consegue comprar, agora na figura de um Nuno Garoupa? Sempre que o capitalismo se purifica, volta, com menos desfasamentos e mediações, a verdade que temos a obrigação de conhecer com realismo: as ideias dominantes são as ideias da classe dominante.
Nisto da hegemonia, até pode haver mérito, claro, mas há sobretudo redes sociais e aparelhos ideológicos bem financiados e oleados, diga Henrique Raposo as balelas meritocráticas que disser. A verdade é que hoje chegámos aqui: a utopia é um luxo da direita e já não requer nenhuma coragem. E a alardeada disposição conservadora à Oakeshott nunca passou de uma postura só para disfarçar o que sempre foi, é e será o natural activismo das direitas, com os seus usos e abusos do Estado e de outros aparelhos. Não se deixem enganar por Paulo Moura.
sábado, 14 de junho de 2014
«É fundamental falar verdade aos portugueses»
«Cumprimos as obrigações que assumimos e evitámos a bancarrota. (...) Mostrámos ao Mundo que Portugal é um país credível, que os Portugueses são um povo que cumpre a palavra dada. (...) Não podemos desperdiçar o capital de credibilidade que conquistámos à custa de tantos sacrifícios.
(...) Os Portugueses desejam que o seu País nunca mais venha a encontrar-se numa situação semelhante àquela a que chegou em maio de 2011 (... ), quando fomos obrigados a recorrer ao auxílio externo. (...) É fundamental evitarmos os erros do passado. (...) Devemos, pois, permanecer atentos e vigilantes, designadamente em matéria de disciplina das contas públicas e de controlo do endividamento externo, para não cairmos de novo numa "situação explosiva".
(...) As incertezas que pairaram sobre a nossa economia estão agora mais atenuadas. (...) Conquistámos o direito de exigir que seja atribuída maior prioridade a uma agenda europeia orientada para o crescimento económico e para a criação de emprego. (...) Não podemos esquecer as regras de disciplina orçamental a que todos os Estados-membros da Zona Euro estão sujeitos.
(...) Importa igualmente lutar para que os valores da justiça social sejam concretizados através de uma distribuição mais equitativa dos rendimentos e de políticas públicas orientadas para o combate à pobreza e à exclusão e para a promoção da mobilidade social. (...) A escola e a excelência do ensino, aliadas à dignificação da atividade docente, constituem elementos fundamentais para a construção de um Portugal mais justo. (...) Os Portugueses revêem-se e têm apreço pelo seu Serviço Nacional de Saúde e desejam que este modelo seja preservado e melhorado.
(...) Adiar por mais tempo um entendimento partidário de médio prazo sobre uma trajetória de sustentabilidade da dívida pública e sobre as reformas indispensáveis ao reforço da competitividade da economia é um risco pelo qual os Portugueses poderão vir a pagar um preço muito elevado. O tempo de diálogo que se estende agora até à discussão do próximo Orçamento do Estado será o mais indicado para que as forças políticas caminhem no sentido da concretização do direito à esperança dos Portugueses, numa perspetiva temporal mais ampla, situada para além de vicissitudes partidárias ou de calendários eleitorais.»
Cavaco Silva (Guarda, 10 de Junho de 2014)
O discurso do Presidente da República na Sessão Solene das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, que vale a pena ler na íntegra, bem pode ficar para a História como um fiel retrato dos seus mandatos presidenciais, marcados pela dissimulação, pelo situacionismo cúmplice e subserviente e pela desinformação deliberada. Tudo em nome de uma memória futura que isente Cavaco Silva de quaisquer responsabilidades directas pelo que aconteceu ao país nos anos da crise e da troika e pelo que aconteça nos tempos vindouros, assim prossiga a via da austeridade e do empobrecimento, que o presidente sempre protegeu e acarinhou.
A intervenção no passado dia 10 de Junho, a que o Jorge Bateira já fez aqui referência, num post anterior, articula as ideias centrais que têm garantido a sobrevivência da narrativa fraudulenta, e ainda dominante, sobre a génese da crise e os efeitos da intervenção externa. Segundo Cavaco, tudo se explica pela «situação a que o país chegou em Maio de 2011», fruto do descontrole deliberado das «finanças públicas e do endividamento externo». Mas felizmente nessa altura, segundo o presidente, veio o «auxílio da troika», que permitiu recuperar a «credibilidade perdida e evitar a bancarrota», encontrando-se hoje mais «atenuadas as incertezas que então pairavam sobre a economia nacional». Todo um romance, onde não entra nem a crise financeira de 2008, iniciada com a falência da Lehman Brothers, nem o fracasso da gestão do euro e da resposta europeia à crise, nem o efeito decisivo e ilusório das declarações de Mario Draghi, em Julho de 2012, de «fazer tudo o que fosse preciso para salvar o euro», e que explicam a descida, desde então, das taxas de juro das dívidas soberanas dos países periféricos.
Para o futuro, Cavaco renova o estafado apelo ao consenso, para lá das «vicissitudes partidárias e dos calendários eleitorais», que permita prosseguir «as reformas indispensáveis ao reforço da competitividade» e a «sustentabilidade da dívida pública». Sem deixar de aludir, como convém a um dissimulado, à necessidade de implementar políticas de «combate à pobreza e à exclusão», de dignificação da escola e da educação, e de «preservação e melhoria» do Sistema Nacional de Saúde. Tudo muito simples, no romance ilusório, evasivo e suicida do presidente, que ignora de forma deliberada e irresponsável as verdadeiras questões de fundo e as escolhas decisivas que estão em jogo.
Longe vai o tempo, de facto, em que Cavaco considerava haver «limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos» e ser «fundamental falar verdade aos portugueses», achando o presidente que, com «uma boa informação, cada um comporta-se e tem uma atitude coerente». Assim fosse, a começar pelo próprio.
sexta-feira, 13 de junho de 2014
Modelos de economia
Uma colossal fortuna pessoal? Uma forma de enriquecimento baseada nos ganhos do capital e sua acumulação? Práticas de exploração do trabalho humano (baixos salários, horários excessivos, precariedade nas relações laborais)? Expedientes fiscais para fugir aos impostos? Um modelo de economia que permite o desemprego massivo, a grande concentração do património individual e correspondente poder político, com risco para a democracia e para a coesão social?
Esta semana, um grupo de cristãos, de José Mattoso a Frei Bento Domingues, interrogou-se corajosa e oportunamente sobre os critérios para a atribuição do Prémio “Fé e Liberdade” a Alexandre Soares dos Santos, um capitalista de que muito temos falado no blogue. Assinalam e bem a contradicção entre “a economia que mata”, denunciada pelo Papa Francisco, e o Prémio atribuído por um instituto da Universidade Católica. Acontece que esta é há muito um dos principais centros intelectuais irradiadores deste tipo de economia, pelo que o Prémio, em linha com outros, é tão consistente quanto ideologicamente revelador.
Esta semana, um grupo de cristãos, de José Mattoso a Frei Bento Domingues, interrogou-se corajosa e oportunamente sobre os critérios para a atribuição do Prémio “Fé e Liberdade” a Alexandre Soares dos Santos, um capitalista de que muito temos falado no blogue. Assinalam e bem a contradicção entre “a economia que mata”, denunciada pelo Papa Francisco, e o Prémio atribuído por um instituto da Universidade Católica. Acontece que esta é há muito um dos principais centros intelectuais irradiadores deste tipo de economia, pelo que o Prémio, em linha com outros, é tão consistente quanto ideologicamente revelador.
quinta-feira, 12 de junho de 2014
O estado a que chegámos
No dia 10 de Junho, o Presidente da República teve um desmaio que obrigou à interrupção do seu discurso por longos minutos. A imagem do comandante supremo das Forças Armadas desfalecido, a ser retirado em braços, teve para mim um evidente simbolismo. Não pude deixar de a associar à célebre expressão usada por Salgueiro Maia na madrugada do 25 de Abril: "o estado a que chegámos".
De facto, no Dia de Camões, o dia da Pátria, o Presidente apelou a um entendimento entre PSD, CDS e PS sobre reformas políticas de fundo que garantam a sustentabilidade da dívida pública, afirmando até que esse entendimento deve ir além das "vicissitudes partidárias ou de calendários eleitorais". Ou seja, o Presidente apelou a um acordo político "de tempo longo" por forma a eliminar diferenças substantivas nas propostas dos maiores partidos da democracia portuguesa. Estes foram instados a aceitar uma política única, seja na votação do Orçamento para 2015, seja nas próximas eleições legislativas. Quarenta anos após o 25 de Abril, é este o estado a que chegou a nossa democracia.
No fundo, o Presidente está a dizer aos portugueses que, para cumprir o Tratado Orçamental, Portugal tem de esvaziar de conteúdo a sua democracia. Como agora está bem à vista, não é possível (1) viver num Estado-nação, (2) prescindir da soberania monetária e orçamental e, ao mesmo tempo, (3) manter um Estado social, de direito e democrático (ver o meu texto "O trilema", 31 Outubro 2013). O Presidente da República assume que devemos ignorar o Artigo 7º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, que condiciona o exercício dos poderes das instituições da UE ao "respeito pelos princípios fundamentais do estado democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial". De facto, a sujeição permanente do país a uma política depressiva não é compatível com estas condições que a Constituição fixou para a nossa participação na União. Não sendo jurista, arriscaria mesmo dizer que o Tratado Orçamental que a Assembleia da República ratificou é, em última instância, inconstitucional.
Os resultados das recentes eleições para o Parlamento Europeu foram expressivos, pelo menos num ponto: qualquer avanço no sentido do reforço dos poderes da Comissão Europeia está vedado. É esse o significado da dificuldade em colocar Jean-Claude Juncker, um federalista, à frente da Comissão. Mais ainda, com o sucesso eleitoral da Frente Nacional em França e do UKIP no Reino Unido, a que se junta a significativa votação no Alternativa para a Alemanha, os partidos "do arco da governação" destes países ficam sob pressão para recusar qualquer reforço da integração europeia. Pelo menos, no centro da UE há cada vez mais quem pense que "Juncker faz parte de uma facção do continente que sonha transformar a união monetária europeia numa união da dívida" (Spiegel, "Europe's Juncker Bond").
Neste contexto político, não estão à vista condições que permitam ao BCE intervir nos mercados financeiros comprando tudo o que for necessário para trazer a inflação de volta aos 2% (em todo o caso, pouco provável sem o apoio da política orçamental) e, quando a volatilidade regressar, para manter as taxas de juro da periferia nos actuais níveis. Como disse um operador financeiro, "O receio é que [o BCE] não pode, e que não realizará, o impulso tremendo que é necessário para dar plena saúde à zona euro. No entanto, [o que foi decidido] é mais do que suficiente para antagonizar a opinião pública alemã" (ver "The Telegraph", "Mario Draghi takes historic gamble").
Com a democracia esvaziada, desemprego em massa, emigração em larga escala, serviços públicos a degradarem-se, uma dívida impagável, totalmente dependentes dos mercados financeiros, é este o estado a que chegámos. Se sair do euro não é a alternativa, então qual é a alternativa?
(O meu artigo no jornal i)
Neoliberalismo reloaded
Como o Alexandre Abreu já aqui explicou, o Banco Central
Europeu acaba de anunciar mais um pacote de medidas: redução das taxas de juro
directoras, com as taxas de juro de depósitos da banca junto do BCE a entrar em
terreno negativo; um novo programa de refinanciamento de longo prazo da banca,
proibindo o uso de hipotecas como garantia por forma a não alimentar bolhas no
sector imobiliário; a promessa de Draghi de novas medidas, nomeadamente a
compra de activos à banca, se as mais recentes não resultarem.
Os efeitos desta política monetária expansionista por parte
do BCE dificilmente serão positivos no actual ambiente de austeridade, elevado
desemprego e muita capacidade produtiva “ociosa” que caracterizam a economia
europeia. Ainda assim, tirando quem acha que tudo se pode resolver na economia
europeia com mudanças de estado de alma do BCE, parece que não se pode pedir
mais à autoridade monetária. A provável estagnação económica será atribuída a
políticas nacionais mal afinadas e à pouca vontade em prosseguir as “reformas
estruturais”. O BCE parece aliás tomado de bom senso face aos radicais
(alemães) que pediam uma política mais restritiva e mais austeridade na
periferia ou aos tarados que pretendem voltar ao padrão-ouro e a um sistema
completamente privado de oferta monetária.
No entanto, estamos aqui perante o que o economista político
Philip Mirowski chama da “dupla verdade” do neoliberalismo. O exército de
intelectuais orgânicos do credo neoliberal rasgam as vestes no espaço público
contra a intervenção pública no mercado, enquanto na verdade a intervenção
pública não faz mais do que fortalecer o mercado enquanto arranjo preferencial
de afectação de recursos, favorecendo sempre que detém o capital. Assim, à
imagem do que aconteceu nos EUA no auge da crise financeira, com um monetarista
convicto como Ben Bernanke a “salvar” o sistema financeiro, o BCE consegue
injectar milhares de milhões de euros num sistema financeiro incompetente e
falido ao mesmo tempo que passa imagem de bom senso perante alguns dos seus
tradicionais críticos. O resultado deste maná financeiro é conhecido: euforia
nos mercados obrigacionistas (com as taxas de juro a cair a pique) e nos
mercados accionistas (com as acções europeias a beneficiarem de uma valorização
de 190% desde os mínimos de 2009). Isto num contexto de permanente
endividamento de toda a economia e de uma recuperação que parece mais uma
miragem. Em suma, face à crise, a acção do BCE pauta-se pela preservação dos
interesses financeiros e do funcionamento de mercado a todo custo, beneficiando
uma elite, mesmo que isso signifique violar a cartilha ideológica neoliberal
usada para agitar as “massas”. Neoliberalismo “reloaded”.
P.S. As medidas anunciadas pelo BCE não incorporam
obviamente todos os interesses da finança internacional da mesma maneira. Dados
os montantes envolvidos, a banca portuguesa não terá acesso a muito mais do que
aos fundos necessários para amortizar a sua dependência prévia do BCE. Se
acrescentarmos a dependência do negócio bancário do crédito hipotecário e a
situação financeira lastimável do sector não-financeiro, os próximos tempos
deverão ser de muita ginástica para a banca portuguesa. Pressões para uma vaga
de fusões e aquisições internacionais neste sector não me surpreenderiam.
quarta-feira, 11 de junho de 2014
Pedalada
Pedro Nuno Santos na sua crónica semanal no i: “Contestar a tese do despesismo como causa da crise não era defender José Sócrates, era defender a verdade.” Nem mais. É bem verdade que não se pode falar de despesismo público e privado como causa da crise. Por exemplo, a evolução da procura interna portuguesa foi a que esteve, até à crise internacional e na UE, mais próxima da perversa contenção registada na Alemanha e o peso da nossa dívida pública, em percentagem do PIB, também não se afastou nesse período dessa referência da prudência no discurso moralista. O nosso problema foi e é outro, como o Alexandre Abreu sublinha na sua crónica, também à quarta-feira, no Expresso: o crescimento da dívida externa num contexto de estagnação económica, sendo esta rara coexistência a máxima expressão de uma integração económica e monetária que não serviu o muito invocado e sempre disputado interesse nacional.
terça-feira, 10 de junho de 2014
Uma economia para um país
“O contributo da procura externa líquida para o crescimento homólogo da economia caiu, pela primeira vez desde a chegada da troika, para terreno negativo nos primeiros três meses deste ano. É o regresso a um padrão de crescimento considerado pouco sustentável.” Sérgio Aníbal resume bem a conjuntura e a estrutura que lhe subjaz.
Estavam à espera de transformações estruturais progressivas promovidas pela generosidade de uma intervenção externa? Pois sim, mas só se esquecerem a história das experiências de desenvolvimento, das que sempre requereram a mobilização nacional de instrumentos de política económica adequados às circunstâncias de cada país, a criação política de espaço para o desenvolvimento, quer por substituição de importações, quer por promoção de exportações.
Em Portugal, a grande obra das elites, que hoje discursam sobre nada e coisa nenhuma, foi precisamente a abdicação de espaço para o desenvolvimento, tudo servido por um pensamento económico infantil, na melhor das hipóteses, segundo o qual a integração irrestrita era uma escada para a prosperidade.
Numa estrutura criada pelo centro e pelos seus representantes na periferia as escolhas são sempre trágicas: a austeridade elimina o défice de balança corrente, graças à quebra do investimento e do consumo, destruindo a nossa capacidade económica; a atenuação da austeridade, graças à soberania residual, ajuda a recuperar a procura interna e o crescimento, mas contribui, graças à dependência que se perpetua, para que regresse o espectro do défice externo, sendo que a procura externa liquida deixa de funcionar como motor do que quer que seja, graças ao desaparecimento de exportações e à promoção de importações.
O desenvolvimento nunca passará por aqui, nem pelos termos de um debate absolutamente viciado e condicionado entre as elites do poder e de demasiadas oposições. O desenvolvimento exige que isto volte a ser um país.
Estavam à espera de transformações estruturais progressivas promovidas pela generosidade de uma intervenção externa? Pois sim, mas só se esquecerem a história das experiências de desenvolvimento, das que sempre requereram a mobilização nacional de instrumentos de política económica adequados às circunstâncias de cada país, a criação política de espaço para o desenvolvimento, quer por substituição de importações, quer por promoção de exportações.
Em Portugal, a grande obra das elites, que hoje discursam sobre nada e coisa nenhuma, foi precisamente a abdicação de espaço para o desenvolvimento, tudo servido por um pensamento económico infantil, na melhor das hipóteses, segundo o qual a integração irrestrita era uma escada para a prosperidade.
Numa estrutura criada pelo centro e pelos seus representantes na periferia as escolhas são sempre trágicas: a austeridade elimina o défice de balança corrente, graças à quebra do investimento e do consumo, destruindo a nossa capacidade económica; a atenuação da austeridade, graças à soberania residual, ajuda a recuperar a procura interna e o crescimento, mas contribui, graças à dependência que se perpetua, para que regresse o espectro do défice externo, sendo que a procura externa liquida deixa de funcionar como motor do que quer que seja, graças ao desaparecimento de exportações e à promoção de importações.
O desenvolvimento nunca passará por aqui, nem pelos termos de um debate absolutamente viciado e condicionado entre as elites do poder e de demasiadas oposições. O desenvolvimento exige que isto volte a ser um país.
segunda-feira, 9 de junho de 2014
Os portugueses estão com o Tribunal Constitucional
É a conclusão a que chega o Jornal «i», na sequência de uma sondagem realizada pela Pitagórica entre 30 de Maio e 1 de Junho. «O universo de inquiridos que se põem ao lado dos juízes do Palácio Ratton não deixa margem para dúvidas sobre o apoio que as suas decisões recolhem: mais de 70% consideram que têm feito o melhor juízo na avaliação dos vários diplomas». De facto, cerca de 36% dos inquiridos consideram as decisões do TC «razoáveis», 29% «boas» e 6% «muito boas».
E acrescenta o «i» que, «comparativamente com estes resultados, é muito pequena a franja de portugueses que discordam das avaliações de alguns ou dos oito chumbos que o TC já decretou relativamente a diplomas apresentados pelo governo de Pedro Passos Coelho. Entre "más" (13,6%) e "muito más" (8,3%), o universo de críticos não vai além dos 21,9%». O que traduz, curiosamente, um valor inferior aos já de si parcos 27%, obtidos pela maioria PSD/PP nas «eleições legislativas» do passado dia 25 de Maio.
domingo, 8 de junho de 2014
Crescimento, emprego... e já agora um unicórnio
No rescaldo das eleições europeias, os líderes europeus anunciaram uma aposta reforçada no crescimento e no emprego. Vão pô-la em prática através de reformas estruturais e do recurso à política monetária. Não vai resultar.
Assustados com os resultados das eleições europeias, os principais líderes europeus, incluindo Merkel, Hollande, Barroso e Draghi, anunciaram nas últimas semanas uma aposta reforçada no crescimento e no emprego. Têm em mente, como habitualmente, o recurso a dois tipos de instrumentos: as chamadas reformas estruturais e a política monetária. Sucede que as primeiras são contraproducentes e a segunda é ineficaz.
Assustados com os resultados das eleições europeias, os principais líderes europeus, incluindo Merkel, Hollande, Barroso e Draghi, anunciaram nas últimas semanas uma aposta reforçada no crescimento e no emprego. Têm em mente, como habitualmente, o recurso a dois tipos de instrumentos: as chamadas reformas estruturais e a política monetária. Sucede que as primeiras são contraproducentes e a segunda é ineficaz.
Estruturais e contraproducentes
As "reformas estruturais" são um termo especialmente fluido que se destina a esconder mais do que revela e que parece algo de inquestionavelmente positivo... até que se torna visível o conteúdo programático concreto que efectivamente encerra. A esse nível, o que encontramos é invariavelmente um conjunto de medidas de liberalização e flexibilização do lado da oferta, com ênfase na flexibilização do mercado de trabalho. Acontece que, no contexto actual, a estagnação do investimento e do emprego, em Portugal como na Europa, não se deve a qualquer tipo de rigidez do lado da oferta. Isso é especialmente óbvio no caso do mercado de trabalho: na última década e meia, por exemplo, foram várias as reformas do código do trabalho levadas a cabo em Portugal, sempre no sentido da flexibilização... e o desemprego não só não diminuiu, como aumentou de 4% para mais de 15%.
Isso nada tem de surpreendente. É o que o problema não está do lado da oferta, mas do lado da procura. E por isso, na medida em que a maior parte do que está em causa quando se fala em "reformas estruturais" são medidas que tendem a pressionar os salários em baixa, estas medidas são na verdade contraproducentes do ponto de vista macroecónomico, pois os baixos salários e a desigualdade do rendimento são, a par do endividamento acumulado, os principais factores que constrangem actualmente a procura.
O expansionismo estéril do BCE
É verdade, porém, que a estratégia de combate à crise dos líderes europeus não assenta exclusivamente no lado da oferta, apostando também no incentivo à procura através do recurso à política monetária expansionista. A ideia, como vem nos manuais, é reduzir o preço do crédito de modo a estimular o investimento, o emprego e o crescimento económico, e isso é feito quer de modo convencional (redução das taxas de juro directoras, que estão já em 0,25%) quer de modo não-convencional (LTRO, OMT e outras formas de cedência de liquidez aos bancos).
O problema - e esse não vem na maior parte dos manuais - é que o mecanismo de transmissão da política monetária assenta na hipótese de uma relação estável entre a base monetária e a oferta de moeda... e essa relação supostamente estável simplesmente deixou de se verificar nos últimos anos, se é que alguma vez foi mais do que uma ilusão em termos do sentido da causalidade. Entre 2010 e 2012, por exemplo, o BCE quase duplicou a base monetária da zona Euro, mas nem por isso a oferta total de moeda (que na sua maioria é constituída por depósitos bancários, criados através dos empréstimos concedidos) sofreu alguma alteração significativa. Neste tipo de contexto, inundar o sistema bancário com liquidez adicional não se traduz em empréstimos à actividade produtiva porque, lá está, a procura encontra-se constrangida, pelo que as oportunidades de investimento lucrativas são escassas. A oferta de moeda não é verdadeiramente controlada pelas autoridades monetárias mas sim, em última instância, endogenamente constrangida pela procura. A liquidez adicional injectada no sistema bancário tende a permanecer inerte no próprio sistema, a ser eliminada (através da respectiva devolução ao BCE) ou, em alternativa, a alimentar a formação de bolhas especulativas como aquelas a que temos assistido em sucessivos mercados nos últimos anos: habitação, matérias-primas, derivados de produtos alimentares ou, a mais recente de todas, dívida soberana da zona Euro.
Realidade e fantasia
Para restaurar duradouramente o emprego e o crescimento na zona Euro, seria necessário algo muito diferente do que é permitido pelo actual contexto político-institucional: um nível de inflação que permitisse eliminar gradualmente o fardo do endividamento privado e público; uma política de rendimentos que restaurasse o dinamismo da procura por via do aumento sustentado dos salários reais; e uma verdadeira articulação entre as políticas orçamental e monetária. Como o que temos são "reformas estruturais" e uma política monetária condenada à impotência, bem podemos continuar a pedir crescimento, emprego... e já agora um unicórnio.
sexta-feira, 6 de junho de 2014
Leituras
«O Governo queixa-se de que os acórdãos do Tribunal Constitucional não são claros em relação ao que pode fazer, mas, ao mesmo tempo, ignora ostensivamente aqueles acórdãos que lhe dizem o que não pode fazer, como o dos salários. O Governo acusa os juízes de não terem sentido de Estado mas acha adequado disfarçar um resultado eleitoral alarmante e o receio de renovado fôlego no PS cavalgando uma estratégia de achincalhamento de um órgão de soberania, pilar do sistema democrático. Passos diz que é preciso elevar a qualidade dos juízes e faz bem em querer o melhor para o seu País. Mas, que tal começar pelo início e pela elevação da qualidade de quem os escolhe?»
Elisabete Miranda, Guia para evitar chumbos do Constitucional
«O primeiro-ministro que se lança, lancinante, sobre o TC por, não sendo "objecto de escrutínio democrático", "invadir o campo da governação", queria juízes a escrutinar o "ter um orçamento e não o cumprir, dizer que a despesa devia ser 100 e ela ser de 300". Ou seja: a julgar a governação. Estapafurdiamente contraditório, não é? (…) Veja-se, por exemplo, Setembro de 2013: (…) "Não é preciso rever a Constituição para cumprir o memorando de ajustamento. É preciso bom senso." Abril de 2010: "Não vale a pena esconder. Há quem pense que com esta Constituição podemos fazer tudo e que só não se veste bem nela quem está de má vontade. Não é assim." (…) Sim; custa a acreditar, quanto mais perceber. Mas a um tal primeiro-ministro, o que imputa ao TC ambiguidade, obscuridade e falta de senso, não vale a pena pedir aclaração, muito menos nulidade - já no-la deu toda.»
Fernanda Câncio, Aclarando a nulidade
«Em 2011, o TC disse que só excepcionalmente admitia o referido imposto especial e extraordinário sobre funcionários e pensionistas, mas, logo em 2012, o Governo tentou fazer acrescer-lhe outro imposto equivalente a dois salários (conseguiu-o, na prática, mas o TC reafirmou a inconstitucionalidade, advertindo que não havia lugar para mais impostos só sobre alguns). Porém, chega o Orçamento de 2013 e, com ele, outra tentativa de novo imposto, desta vez equivalente a um salário, e mais uma esperada decisão de inconstitucionalidade. Será que o Governo se conformou finalmente à legalidade? Qual quê! Logo em 2014, novo e ainda mais grave imposto, precisamente este que foi agora considerado inconstitucional. E é, então, este mesmo Governo que agora quer conhecer exactamente o montante que pode reter para, diz, não incorrer em eventual ilegalidade. Digam-nos, por favor, o que a lei impõe. Correr o risco de cometer uma ilegalidade, credo… É bonito, é mesmo comovente, há que reconhecer. Pode ser pobre e mal-agradecido, mas, o seu a seu dono, tem uma lata incomensurável.»
Jorge Reis Novais, Pobre e mal-agradecido, mas com uma lata incomensurável
«São os próprios fundamentos do Estado de Direito que desta forma são postos em causa. A leviandade de tal conduta apenas se pode compreender como tentativa desesperada de ocultar o incalculável sofrimento e a extensa devastação económica que as políticas de Passos e Portas infligiram ao país, clamorosamente censuradas pelos cidadãos nas últimas eleições. A verdade é que apesar dos efeitos cumulativos das medidas de austeridade aplicadas, não conseguiram ao longo de três anos cumprir nenhuma das metas orçamentais previamente acordadas nem assegurar a sustentabilidade da diminuição da despesa pública. (…) [O Governo] começou por rejeitar a possibilidade de outros caminhos e recusou todos os contributos dos partidos da Oposição, afunilando demagogicamente o espaço do pluralismo democrático. Por esta declaração de guerra aos tribunais, revela agora a sua crassa impreparação cívica e indicia preocupantes inclinações totalitárias.»
Pedro Bacelar de Vasconcelos, "Guerra" à independência judicial
A democracia num impasse
Face ao acórdão do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucionais algumas normas do Orçamento do Estado para 2014, o Governo reagiu com a conhecida estratégia de vitimização. Porém, desta vez foi longe de mais. Além de procurar instrumentalizar a Assembleia da República, ultrapassou todos os limites da decência na acção política porque as declarações do Primeiro-Ministro são ofensivas da dignidade de um órgão de soberania. O silêncio do Presidente da República, neste momento, é ensurdecedor. Também ao mais alto nível do Estado, estamos a assistir ao esfarelamento da nossa democracia.
No entanto, este caminho era previsível. Sabemos que não é possível (1) viver num Estado-nação, (2) dotado de um Estado social, de direito, democrático e, ao mesmo tempo, (3) prescindir da soberania (moeda, orçamento). Como já tinha explicado aqui, as exigências do chamado "aprofundamento da integração europeia", conduzida nos termos que a Alemanha exigiu quando Helmut Kohl negociou com François Mitterrand o apoio à reunificação da Alemanha, não são compatíveis com o princípio de que a soberania, una e indivisível, reside no povo (Art. 3º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Lamentavelmente, com excepção do PCP, os principais partidos políticos da nossa democracia não assumem o trilema que enfrentamos, pelo menos desde que a Assembleia da República ratificou o Tratado de Maastricht.
Por razões que muitos ainda têm dificuldade em perceber, mas que o voto do passado dia 25 nos obriga a reconhecer, o caminho para uma democracia federalista (impostos comunitários, dívida pública comum, transferências orçamentais, governo responsável perante uma qualquer forma de parlamento federal) não passa de uma utopia paralisante. Esta utopia ainda faz muita gente acreditar que é possível reverter (em tempo útil) as políticas depressivas que uma UE germanizada impôs. Ainda há demasiada gente (à esquerda e à direita) a acreditar que é desejável e possível esperar por uma mudança progressista da UE. Se bem entendo os resultados destas eleições europeias, os partidos que se mantiverem cegos por esta utopia acabarão por ser severamente julgados em futuras eleições, e não apenas nas periferias.
De facto, o principal bloqueio que a democracia enfrenta, em Portugal e no resto da Europa, é a incapacidade de a esquerda gerar uma alternativa política liberta das ilusões do federalismo e capaz de gerir a ruptura com ordoliberalismo tendo em vista uma Europa de cooperação entre Estados democráticos. Há demasiada esquerda à procura do apoio dos estratos sociais cosmopolitas, em vez de sintonizar com os anseios do povo, aqui e agora. Demasiada esquerda paralisada pelo mito de um super-Estado europeu promotor de uma globalização boa. Até quando?
quinta-feira, 5 de junho de 2014
Um contributo para o debate público em torno da dívida pública
Esta tarde foram recebidos em audiência na Comissão de Orçamento e Finanças da Assembleia da República (AR) vários dos subscritores da petição "Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente", a qual deverá ser debatida no Parlamento em data a agendar.
Recorde-se que esta petição solicita à Assembleia da República que: aprove uma resolução recomendando ao governo o desenvolvimento de um processo preparatório tendente à reestruturação da dívida; e desencadeie um processo parlamentar de audição pública para o objectivo em causa.
Tendo em vista contribuir para o debate público, que se considera urgente, foram entregues aos deputados alguns documentos de análise e reflexão sobre a questão da dívida pública e os fundamentos da petição, entre os quais este, de que sou coautor, juntamente com Ricardo Cabral, Paulo Trigo Pereira e Emanuel Santos (ver notícia do Público aqui).
Mais do que defender uma solução específica para lidar com o problema da dívida pública, este documento procura identificar um conjunto de factos que devem ser considerados no debate. Destaco, em particular, as seguintes ideias:
1. O elevado nível de dívida pública, cujo crescimento acelerou marcadamente desde 2008, é um problema grave que Portugal partilha com vários países europeus, cuja origem é largamente comum e que requer, por isso, a responsabilização das instituições europeias.
2. As condições para que a dívida pública portuguesa seja sustentável são altamente improváveis, pela história não apenas portuguesa, mas dos países da União Europeia.
3. A necessidade de obter um financiamento de pelo menos 100 mil milhões de euros (supostamente através dos mercados de dívida pública) nos próximos sete anos torna o objectivo ainda mais inverosímel.
4. A tentativa de reduzir a dívida pública sem recurso a uma reestruturação teria custos económicos e sociais dramáticos.
5. A necessidade de reestruturação da dívida é hoje reconhecida por um leque muito abrangente de economistas e instituições internacionais.
6. Sendo muitas as soluções possíveis (algumas das quais são sucintamente discutidas no texto), uma reeestruturação da dívida pública portuguesa bem-sucedida deverá ter como objectivos:
(i) reduzir os desequilíbrios macroeconómicos do país, em particular a dívida externa;
(ii) minimizar as necessidades de refinanciamento da dívida pública e da dívida privada portuguesa; e
(iii) evitar reestruturações sucessivas, realizando uma reestruturação de dívida de dimensão suficientemente grande.
Como seria de esperar, esta audiência não permitiu muito mais do que a afirmação pelas várias bancadas parlamentares das suas posições de princípio sobre o tema (as da oposição valorizando a oportunidade da iniciativa, as da maioria questionando essa mesma oportunidade...), apesar dos esforços de alguns deputados para desenvolver a discussão.
Uma conclusão resulta óbvia desta audiência: o país ganharia muito em iniciar este debate de modo aprofundado e fundamentado. Os deputados têm aqui uma oportunidade para valorizar o papel da função parlamentar, fazendo da AR um orgão de soberania democrático ao serviço... da democracia e da soberania do país. Mas talvez seja esperar demais dos deputados da actual maioria, para quem estas palavras parecem ter cada vez menos significado.
Recorde-se que esta petição solicita à Assembleia da República que: aprove uma resolução recomendando ao governo o desenvolvimento de um processo preparatório tendente à reestruturação da dívida; e desencadeie um processo parlamentar de audição pública para o objectivo em causa.
Tendo em vista contribuir para o debate público, que se considera urgente, foram entregues aos deputados alguns documentos de análise e reflexão sobre a questão da dívida pública e os fundamentos da petição, entre os quais este, de que sou coautor, juntamente com Ricardo Cabral, Paulo Trigo Pereira e Emanuel Santos (ver notícia do Público aqui).
Mais do que defender uma solução específica para lidar com o problema da dívida pública, este documento procura identificar um conjunto de factos que devem ser considerados no debate. Destaco, em particular, as seguintes ideias:
1. O elevado nível de dívida pública, cujo crescimento acelerou marcadamente desde 2008, é um problema grave que Portugal partilha com vários países europeus, cuja origem é largamente comum e que requer, por isso, a responsabilização das instituições europeias.
2. As condições para que a dívida pública portuguesa seja sustentável são altamente improváveis, pela história não apenas portuguesa, mas dos países da União Europeia.
3. A necessidade de obter um financiamento de pelo menos 100 mil milhões de euros (supostamente através dos mercados de dívida pública) nos próximos sete anos torna o objectivo ainda mais inverosímel.
4. A tentativa de reduzir a dívida pública sem recurso a uma reestruturação teria custos económicos e sociais dramáticos.
5. A necessidade de reestruturação da dívida é hoje reconhecida por um leque muito abrangente de economistas e instituições internacionais.
6. Sendo muitas as soluções possíveis (algumas das quais são sucintamente discutidas no texto), uma reeestruturação da dívida pública portuguesa bem-sucedida deverá ter como objectivos:
(i) reduzir os desequilíbrios macroeconómicos do país, em particular a dívida externa;
(ii) minimizar as necessidades de refinanciamento da dívida pública e da dívida privada portuguesa; e
(iii) evitar reestruturações sucessivas, realizando uma reestruturação de dívida de dimensão suficientemente grande.
Como seria de esperar, esta audiência não permitiu muito mais do que a afirmação pelas várias bancadas parlamentares das suas posições de princípio sobre o tema (as da oposição valorizando a oportunidade da iniciativa, as da maioria questionando essa mesma oportunidade...), apesar dos esforços de alguns deputados para desenvolver a discussão.
Uma conclusão resulta óbvia desta audiência: o país ganharia muito em iniciar este debate de modo aprofundado e fundamentado. Os deputados têm aqui uma oportunidade para valorizar o papel da função parlamentar, fazendo da AR um orgão de soberania democrático ao serviço... da democracia e da soberania do país. Mas talvez seja esperar demais dos deputados da actual maioria, para quem estas palavras parecem ter cada vez menos significado.
Zumbis
Já lá vão dois editoriais seguidos no Negócios que, entre outras cavadelas, desenterram uma ideia zumbi para apoiar a ofensiva política do governo contra o Estado social e democrático de direito: a austeridade, leia-se “contas públicas controladas” ou qualquer outro sinónimo igualmente moralista, já que o essencial depende aqui do andamento económico, é uma condição necessária para o incremento do investimento, para a expansão da actividade económica. Pensam realmente que os cortes nos rendimentos, na procura pública certa, vão gerar confiança em empresários que vão começar a investir? Se assim é, os editorialistas do Negócios – neste caso, Helena Garrido e André Veríssimo – revelam falta de respeito pela realidade, pelos dados do INE sobre determinantes do investimento: quem não tem expectativa de vender não investe e o resto é conversa. Como é a que a compressão da procura por via orçamental vai fazer aumentar o investimento privado? Não vai, claro, estamos fartos de o saber há vários anos pela austeridade redobrada e, ao contrário, pelos efeitos da sua atenuação, graças ao Constitucional. Para apoiar o governo é preciso mais do que organizar comícios no Ritz. Felizmente, o Negócios é bem mais do que os seus editoriais zumbis de apoio a um governo que desgraçadamente não morre.
quarta-feira, 4 de junho de 2014
Pensar em tempos financeiros
É nas nações (…) que a democracia pode viver e respirar (…) Agora é-nos dito que, mesmo na ausência de uma identidade europeia comum, transferir poderes para o Parlamento Europeu aumentará a convergência política. Na realidade, isto criaria provavelmente um desastre político para rivalizar com o desastre económico criado pelo euro e pelas mesmas razões. Uma convergência forçada e artificial não resiste ao teste de stresse da realidade.
A não ser que Renzi esteja preparado para colocar em cima da mesa a pertença ao euro – o que não estou a ver que aconteça – não consigo imaginar mudanças substanciais no sistema [europeu] de governação.
O que diria a sabedoria convencional destes dois excertos se não soubesse a proveniência? Aposto numa palavra: populistas. Aqui estão dois populistas: Gideon Rachman e Wolfgang Munchau, respectivamente responsáveis pela opinão em matéria europeia e internacional do Financial Times e de cujas últimas crónicas retirei estes dois excertos, que enquadram uma discussão perfeitamente convencional, mas herege nestes termos entre as elites desta periferia. É realmente preciso acabar com a “imaginação do centro”…
terça-feira, 3 de junho de 2014
Lembrar é útil
É útil lembrar as contas feitas por Elisabete Miranda e Catarina Pereira do Negócios no final de 2013: o Tribunal Constitucional tinha deixado passar 82% da austeridade em valor, obrigando o governo a rever 18% dos seus destrutivos planos, concentrados em 2013, atenuando a austeridade e minorando assim nesse ano os efeitos destrutivos, o que contribuiu internamente para a recuperação. Agora deu mais uma ajuda. O Tribunal tem obrigado o governo a mudar a combinação de austeridade, fazendo com que se insista menos na despesa e mais nos impostos. Mesmo assim, entre 2010 e 2013, 60% da consolidação orçamental ocorreu através da despesa, o que contrasta com a sabedoria convencional, a de classe, a que fala como se não se tivesse cortado na chamada despesa, ou seja, nos rendimentos gerados pelo Estado social. Era a mesma sabedoria que alinhava pela austeridade expansionista, a mesma que foi, na melhor das hipóteses, apanhada de surpresa por este facto: défice caiu um euro por cada três euros de austeridade nos últimos três anos.
É útil lembrar também um estudo de economistas do próprio Banco que não é de Portugal. Usando um modelo que incorpora umas fricções e rigidezes de curto prazo, mas que passado pouco tempo parece estar feito para que tudo volte a um normal idílio de equilíbrio mercantil, estima-se que por cada euro de corte na despesa pública em tempos de crise o PIB caia dois euros num horizonte de um ano, bem mais do que por cada euro de aumento de impostos, gerando este menos de um euro de impacto recessivo. A aumentar impostos, o melhor é sempre que estes onerem os rendimentos mais elevados e a propriedade, os grupos com menor propensão para consumir e, no actual contexto conjuntural e estrutural, sem muita para investir. A justiça social faz bem à economia.
É útil, finalmente, lembrar que se o governo não fosse tão retintamente subserviente às frustrações da eurocracia pós-democrática já tinha percebido há muito que o Tribunal é um aliado, um pretexto para a renegociação soberana. Como Fernando Sobral assinala no Negócios de hoje, “o governo continua a acreditar que a Constituição portuguesa é o memorando assinado com a troika”. Vou um pouco mais longe. Não é só o governo, infelizmente, mas as subservientes elites que o suportam; a tal constituição em que estas acreditam está muito para lá do memorando: é a constituição dos credores, a do euro, e o facto de não estar escrita é uma vantagem, já que permite toda a compulsória arbitrariedade de que o poder de classe é feito.
segunda-feira, 2 de junho de 2014
As raízes do eurocepticismo
O eurocepticismo é uma reacção natural dos povos face a uma União Europeia que constitucionalizou o neoliberalismo e impede o desenvolvimento. É uma história que pode acabar muito mal.
A evolução político-jurídica da União Europeia ao longo das últimas três décadas tem correspondido a uma verdadeira constitucionalização do neoliberalismo. Do Acto Único Europeu ao Tratado de Lisboa, com passagem por Maastricht e Amesterdão, as peças foram sendo gradual mas inexoravelmente colocadas no lugar: mercado único, mobilidade do capital, concorrência fiscal, pressões múltiplas no sentido da privatização, liberalização e flexibilização do mercado de trabalho. Sempre que necessário, atropelando a vontade dos povos.
Esta neoliberalização da União Europeia tem sido prosseguida com especial intensidade nos países que aderiram à União Económica e Monetária. Sob um manto diáfano de cosmopolitismo, modernidade e redução dos custos de transacção, escondia-se na verdade uma ofensiva de classe e um mecanismo de divergência entre Estados. Quer uma quer o outro decorrem da necessária acumulação de excedentes no centro e défices na periferia que resultam da impossibilidade de recurso à desvalorização cambial. Isto, claro, num contexto adicionalmente caracterizado pela ausência de mecanismos de transferência orçamental com uma dimensão minimamente significativa e pela grotesca imposição da intermediação bancária entre o BCE e os Estados.
A divergência entre Estados resulta da impossibilidade de assegurar o equilíbrio externo e a estabilização macroeconómica na periferia por outra via que não a austeridade perpétua - algo que, após uma década de endividamento, se tornou agora evidente. A ofensiva de classe decorre do facto do mecanismo de ajustamento tornado obrigatório ser a compressão dos salários directos e indirectos: enquanto que a desvalorização cambial afecta todos os rendimentos (de trabalho e de capital) de forma transversal, a 'desvalorização interna' implica necessariamente uma alteração na repartição funcional do rendimento em favor do capital e detrimento do trabalho, a par do desmantelamento dos serviços públicos de que os mais pobres dependem muito mais fortemente.
Mas o ADN neoliberal da União Económica e Monetária introduziu ainda, porventura inadvertidamente, uma tendência latente para a estagnação generalizada, pois constitui o exemplo mais acabado da contradição central do neoliberalismo. A desigualdade na distribuição do rendimento constrange a procura no mercado de bens e serviços (ao mesmo tempo que provoca bolhas especulativas em sucessivos mercados financeiros); e o único mecanismo que neste contexto permite introduzir dinamismo na procura - o endividamento privado e público -, uma vez levado até ao limite, não pode ser renovado devido ao mandato anti-inflaccionário do BCE.
O resultado de tudo isto é o que está à vista: desigualdade em máximos históricos, um lastro gigantesco de dívida privada e pública, periferias condenadas ao subdesenvolvimento, domínio absoluto da finança, estagnação generalizada. Sem que se vislumbre a possibilidade de políticas que invertam estas tendências porque, e este é um aspecto crucial, a constitucionalização do neoliberalismo significa que o próprio leque de políticas possíveis, a nível nacional ou europeu, está decisivamente constrangido. Todos os determinantes fundamentais de que tenho vindo a falar estão blindados em tratados cuja alteração exige uma impossível coordenação entre Estados com interesses e ritmos políticos divergentes.
Perante tudo isto, e com maior ou menor percepção dos mecanismos subjacentes, os cidadãos europeus sentem o ataque de que são alvo e revoltam-se, legitimamente, contra uma União Europeia que hoje em dia não promete mais do que o subdesenvolvimento. Infelizmente, como estamos agora a assistir pela Europa fora, os partidos anti-democráticos e xenófobos são quem está a ocupar mais rapidamente este espaço político, subvertendo estas legítimas aspirações. Se o campo democrático não assumir rapidamente que esta União Europeia, e sobretudo este Euro, têm mesmo de ser desmantelados para que uma Europa solidária e de progresso possa ser reconstruída, são sombrias as nuvens que se erguem no horizonte.
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