Há um ano, o resultado das eleições argentinas foi visto com surpresa por uns e entusiasmo por outros. A eleição de Javier Milei, que se descreveu como “anarco-capitalista” e fez campanha com uma motosserra para simbolizar os cortes que pretendia implementar no Estado, foi aplaudida pelos investidores internacionais e
saudada por segmentos importantes da direita devido às profundas reformas prometidas. Um ano depois, é importante olhar para o que têm sido os resultados desta estratégia.
Depois de ter sido eleito, Milei não perdeu muito tempo a pôr em prática o seu plano. Os
cortes no orçamento do Estado afetaram quase todas as áreas, da Saúde à Educação e à investigação científica, e incluíram o despedimento de milhares de trabalhadores do setor público. Além disso, levou a cabo um conjunto de reformas abrangentes com o objetivo de liberalizar a economia, promover a iniciativa privada e atrair investimentos.
Os cortes parecem ter sido suficientes para a Argentina passar a registar um excedente orçamental, depois de, no ano passado, ter tido um défice de 4,4% do PIB. Por outro lado, a taxa de inflação mensal tem vindo a diminuir e situa-se agora nos 2,4%. Estes números valeram a Milei
elogios de instituições como o FMI e de uma parte da imprensa internacional. Por cá, o Instituto +Liberdade publicou um
artigo em que se elogiam os “sinais de recuperação” visíveis em indicadores como o índice de produção industrial e o volume das exportações, ainda que se admita que a “situação social permanece sensível” – o que é um forte candidato a eufemismo do ano.
O problema é que nem todos os números contam uma história tão positiva. A
taxa de pobreza, que andava em torno dos 40% quando Milei tomou posse, disparou ao longo do ano e atingiu uns impressionantes 52,9%, o que significa que, só este ano, 3,4 milhões de argentinos foram empurrados para a pobreza. Dois terços das crianças no país vivem sob pobreza, o que não impediu o presidente de cortar o orçamento destinado ao apoio aos mais vulneráveis, incluindo através da distribuição de alimentos em cantinas comunitárias.
Outro grupo especialmente afetado pelos cortes de Milei são os
pensionistas. A fórmula de atualização das pensões definida pelo governo impôs uma perda de poder de compra significativa para os reformados. Quando o Congresso tentou compensar esta perda através de um aumento extraordinário, Milei vetou a lei e chamou aos congressistas “degenerados orçamentais”.
Os cortes no orçamento da Saúde estão a colocar em causa a capacidade de prestar os cuidados necessários à população. A agência Reuters dá conta do
desinvestimento na prevenção de doenças graves e da redução dos medicamentos disponíveis para o tratamento dos pacientes.
O investimento em ciência e tecnologia colapsou e atingiu os níveis mais baixos desde a restauração da democracia no país, em 1983. Além dos cortes no financiamento das instituições públicas, também houve cortes salariais e uma redução acentuada das bolsas de estudo, o que, de acordo com as instituições do setor, está a incentivar a emigração dos jovens nestas áreas.
Com os cortes nos subsídios do Estado à energia e aos transportes, o custo dos serviços públicos disparou.
De acordo com um relatório do Interdisciplinary Institute of Political Economy, o valor que uma família de classe média gasta, por mês, em eletricidade, gás, água e transportes públicos passou de 30,105 pesos no final do ano passado para 141,543 pesos em setembro deste ano. A poupança para os cofres do Estado foi atingida à custa de um agravamento das condições de vida para a maioria dos argentinos.
Face a este cenário desastroso, há quem argumente que estas eram medidas dolorosas mas necessárias. Só que 2024 está longe de ser um ano de sucesso para a economia argentina. Muito pelo contrário: na primeira metade do ano, a economia
contraiu mais do que se esperava e a Argentina entrou em recessão técnica. O desemprego, que se encontrava nos 6,1% no final de 2023, aumentou para 8,2% até outubro deste ano. A austeridade agravou substancialmente a crise em que o país se encontra mergulhado.
A
amnistia fiscal aprovada por Milei encorajou os mais ricos do país a depositar as poupanças que detinham em offshores ou guardadas em casa, o que atraiu 18 mil milhões de dólares para os bancos argentinos e permitiu acumular reservas de moeda estrangeira. No entanto, as reservas continuam a ser insuficientes para cumprir os pagamentos da dívida e o país continua dependente do FMI.
Em simultâneo, a desigualdade
agravou-se: o índice de Gini, que mede a desigualdade de rendimento num país e que varia entre 0 (igualdade máxima) e 1 (desigualdade máxima), aumentou para o valor mais alto desde 2005. A austeridade provocou uma quebra de rendimento e poder de compra bastante mais acentuada para quem ganha menos, aumentando o fosso para os mais ricos.
A estratégia orçamental socialmente repressiva é conjugada, sem grande surpresa, com o
negacionismo climático. Milei cortou o orçamento destinado à proteção ambiental, tentou remover regulações que definem áreas protegidas e aprovou o Regime de Incentivo a Grandes Investimentos, desenhado para acelerar a exploração de recursos naturais. Ao longo do último ano, têm sido várias as tentativas de reduzir regulações e entraves que permitam ao Estado leiloar terrenos pertencentes a comunidades indígenas para a exploração de cobre e outros minérios por parte de empresas privadas.
Há
problemas estruturais que a economia argentina enfrenta há décadas e que não podem ser atribuídos à gestão do último (ou dos últimos) anos. No entanto, a estratégia liberal de Milei para conter a inflação tem consistido em promover o colapso da economia e aumentar os níveis de pobreza e desigualdade. Descrever esta experiência como um sucesso é revelador das prioridades de quem o faz.
O economista argentino Matías Vernengo
resume os problemas da estratégia de Milei: “O desemprego e a pobreza estão a aumentar e a austeridade está a ter um impacto social terrível – mas também temos de olhar para o futuro da economia, já que o presidente Milei está a cortar significativamente o investimento público, o que tem um efeito bastante negativo no longo prazo. […] Estão a construir um país que só é rentável para alguns”.