quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Os neoliberais que tomaram conta das instituições europeias estão a pisar o risco

Segundo a Sic Notícias, «Os ministros das Finanças da União Europeia (UE), a Comissão Europeia (CE) e o Banco Central Europeu (BCE) saudaram esta quinta-feira as medidas de austeridade "ambiciosas" anunciadas na quarta-feira por Portugal, mas instaram o Governo a complementarem-nas com reformas estruturais adicionais. (...) nomeadamente [removendo] as rigidezes no mercado de trabalho».

Eu não ouvi as declarações. A confirmarem-se, elas são absolutamente lamentáveis e vão para lá de qualquer legitimidade de acção destas instituições.

Atribuir os problemas da competitividade da economia portuguesa às leis laborais é uma posição puramente ideológica - desafio qualquer adepto destas posições a fundamentar esta posição em resultados empíricos robustos. Os problemas de competitividade da economia portuguesa são variados, uns mais estruturais e antigos (baixas qualificações de dirigentes e trabalhadores, fraco investimento em I&D empresarial, padrão de especialização assente em sectores pouco intensivos em conhecimento e fortemente expostos à concorrência de países de baixos salários, posição periférica da economia portuguesa face aos mercados de consumo mais dinâmicos, para referir apenas alguns), outros mais recentes (a adesão da China e outras economias emergentes à OMC, a adesão dos países de Leste à UE - em ambos os casos, tratam-se de países cujo perfil de especialização se aproxima fortemente ao português -, o fortíssimo aumento do preço do petróleo e de outros bens em que a economia portuguesa é fortemente deficitária, a sobrevalorização do euro, o sobre-endividamento - principalmente privado - associado à forte descida das taxas de juro, etc.).

Face a isto, dizer que os problemas da competitividade portuguesa se resolvem com a desregulação do mercado de trabalho chega a ser ofensivo. Acharão os eurocratas que a oficialização da precariedade resolve a competitividade portuguesa? Ou que a pressão da ameaça permanente sobre os assalariados promove o desenvolvimento do capital humano? Ou que a redução dos custos de trabalho que a desregulação permite (tanto mais em condições de escassez de procura agregada) serão tão fortes que nos permitirão competir com a China? No imediato, os apelos à austeridade e ao corte dos salários - que andam a ser feitos em toda a Europa - só têm como efeitos o acentuar da recessão, o aumento do desemprego e o adiar de investimentos (públicos e privados) que poderiam revelar-se fundamentais para a competitividade dos países em causa.

Mas não só os eurocratas estão a exigir algo que não resolve os problemas estruturais e acentuam a crise em toda a Europa, como não têm qualquer legitimidade para o fazer. A legislação laboral, para o bem e para o mal, cai fora da alçada das competências comunitárias. Poder-se-ia dizer que Portugal atribuiu poderes à UE para se pronunciar sobre o tema no âmbito do método de coordenação aberta da Estratégia de Lisboa, mas nem isso é verdade: a Estratégia de Lisboa refere o objectivo de promover a flexibilidade para reduzir o dualismo no mercado de trabalho. Isto poderá dar legitimidade para a UE criticar as leis laborais portuguesas como contribuindo para as desigualdades sociais (o que muitos especialistas em direito do trabalho questionam), mas não autoriza a exigirem mudanças na legislação como condição para o restabelecimento da competitividade.

Esta Europa está a revelar-se cada vez mais um cavalo de Tróia da globalização neoliberal. Já vai sendo hora de fazer sentir às instituições de Bruxelas e Frankfurt que assim não vale a pena.

A defesa do protectorado


Um dos exercícios mais divertidos que vejo na televisão matinal é a racionalização à posteriori das pequenas variações dos índices bolsistas feita pelas televisões nas suas ligações às redacções da imprensa económica: “Hoje o PSI-20 abriu a descer 0.02% devido às perspectivas de recessão no Luxemburgo”. Existe sempre uma qualquer explicação. Agora, com as taxas de juro dos títulos de divida pública nacionais a não sofrerem alterações depois das medidas anunciadas, Jorge Costa faz o mesmo exercício: as taxas de juro não se alteraram porque o orçamento pode não ser viabilizado e há a possibilidade do governo mudar de ideias durante o próximo ano. Tal não passaria de um inútil palpite se não escondesse uma agenda política. Argumenta Jorge Costa que a solução passaria por recorrer já ao fundo de estabilização europeu. Para conseguir financiamento mais barato para o Estado? Sim, mas sobretudo para colocar a nossa política orçamental sobre a alçada do governo alemão. Garantia de um orçamento “muito mais duro”. A democracia é uma chatice, não é?

Jorge Costa pode defender o protectorado, mas convém ser um bocadinho mais honesto quando tenta convencer-nos que se adoptarmos o “alemão” e muito duro plano de austeridade se “começar(á) a infundir recuperação de confiança e substituir a necessidade do Fundo; suficientemente virtuosas para – eventualmente – produzir a almejada diminuição dos custos de financiamento”. Assim, sei lá, como na Grécia, não?

Pois bem, depois do recurso ao financiamento europeu e dos duros planos de austeridade impostos aos gregos (nós estamos sempre um passo atrás) os juros cobrados nos títulos de divida grega são agora de mais de 10%. Aumentaram quase exponencialmente. E agora é a minha vez de ser o oráculo dos mercados: com a economia em contracção abrupta (menos 4% do PIB este ano, menos 2% no próximo) não parece que a Grécia vá conseguir cumprir os pagamentos da sua divida. Os “mercados” cobram assim um premio de risco que antecipa um default.

Nós estamos sempre um passo atrás... A não ser que aprendamos com os trambolhões de quem vai à nossa frente.

A caminho da destruição do euro?

Milhões de portugueses viram e ouviram ontem à noite nas televisões os formatadores de opinião com lugar cativo nos media - que tenho designado de "comentadores da economia doméstica" - dizer que estas medidas de austeridade eram inevitáveis porque os mercados assim o exigiam. Caso contrário, deixariam de nos comprar a dívida pública.

E para dar mais força ao argumento, diziam: "ponham os olhos na Espanha que não deixou apodrecer a situação e cortou a despesa logo em Maio. Agora pagam taxas bem inferiores às nossas." E parecia que tinham razão.

Mas não tinham. Como temos explicado no Ladrões (mais recentemente aqui e aqui), quer a boa teoria económica - aquela que deixa a realidade questionar os seus pressupostos e as causalidades que propõe - quer a trajectória recente dos países do euro que aplicaram a política económica do FMI, dizem-nos que políticas de austeridade em períodos de recessão são contraproducentes, sobretudo quando não podem ser apoiadas por desvalorizações competitivas.

Ou seja, os países do euro que adoptaram a austeridade continuam a apresentar "fracas perspectivas de crescimento", o que aliás levou a uma recente queda da notação da dívida irlandesa. Em consequência, a Irlanda já está outra vez a pagar juros proibitivos. Mas foi para acalmar estas agências que o governo da Irlanda tinha reduzido os salários dos funcionários públicos por duas vezes num total de mais de 20%.

Pois bem, a Espanha acaba de saber que também está na mesma espiral recessiva da Grécia, Hungria, países do Báltico e Irlanda. Hoje no Público (electrónico): "a agência de notação financeira (rating) Moodys baixou hoje a nota da Espanha em um nível devido às fracas perspectivas de crescimento económico, adiantando que a recuperação dos sectores de construção e imobiliário vai demorar vários anos."

Recordo que a Espanha é o maior destino das nossas exportações.

Apesar da esmagadora propaganda que a SIC e a TVI fazem quanto à necessidade desta política, mais tarde ou mais cedo a maioria dos portugueses vai perceber que Portugal entrou numa espiral recessiva: em finais de 2011 teremos muito mais desemprego, um défice público que resiste à descida e uma dívida pública ainda maior. E mesmo com um orçamento aprovado/tolerado pelo PSD, as agências acabarão por dizer que o país tem "fracas perspectivas de crescimento económico" e decretarão que a dívida pública portuguesa é "lixo".

E o Banco Central Europeu não terá outro remédio senão continuar a financiar os bancos portugueses, e os dos restantes países em dificuldades, enquanto a Alemanha não decidir mudar de orientação ou ... acabar com o euro. Sim, este caminho foi uma decisão política da Alemanha. Recusou uma política expansionista de relançamento coordenado da economia europeia e entregou a nossa sorte aos humores das agências financeiras.

Paul De Grauwe, professor na universidade de Lovaina e especialista de economia europeia, explica tudo (aqui e aqui).

O problema é que em Portugal a esmagadora maioria dos actores políticos não sabe e/ou não quer ver. E, como se sabe, o pior cego é o que não quer ver. Até quando teremos de esperar por uma alternativa política?

PS: Sugiro aos nossos leitores que gravem os vídeos dos debates de ontem à noite e os revejam em finais de Janeiro do próximo ano.

Que espaço resta à direita para se afirmar? Parte II (8 meses depois)

Algumas ideias básicas sobre as medidas de contenção orçamental anunciadas:

1. O que se passa em Portugal não é um fenómeno só português. Ao recusarem por em prática os instrumentos que permitiriam evitar taxas de juro especulativas sobre as dívidas do Estado, os actuais dirigentes da UE deixam claro ao que vêm: estão determinados a fazer implodir o que resta de Estado Social na Europa através de uma recessão prolongada no espaço da União. É que no curto e no médio prazo é muito mais verdade que não há sustentabilidade orçamental sem crescimento económico do que o inverso. No longo prazo estamos todos mortos.

2. Na maioria dos casos, os Estados europeus que estão a sentir a pressão dos ‘mercados’ não tinham situações orçamentais insustentáveis antes da crise. Em grande parte, o prémio de risco que está a ser cobrado ao Estados resulta directamente da assunção por estes dos riscos que residiam num sistema financeiro moribundo, nomeadamente através das garantias dadas aos bancos. Os problemas orçamentais derivam também da queda abrupta da actividade económcia a partir do final de 2008 (com a consequente perda de receitas fiscais e o aumento das despesas sociais) e com o esforço dos Estados para atenuar os efeitos da crise através de medidas específicas. Não, não andámos a viver acima das nossas possibilidades. Andámos a permitir a formação de um monstro chamado sistema financeiro desregulado e sobredimensionado, cujos desvarios já tivemos de pagar – e agora pagamos a dobrar.

3. Dentro do pouco espaço de manobra que havia, o governo português escolheu os seus aliados. Num dos países mais desiguais da Europa, não se atreveu a subir os impostos aos mais ricos (o que, além do mais, teria um impacto marginal sobre a procura agregada mais reduzido). A fraqueza das medidas menos injustas do pacote anunciado está mal disfarçada: (i) a «Imposição de uma contribuição ao sistema financeiro em linha com a iniciativa em curso na UE» tem valores risíveis – juntamente com o aumento do IVA em 2 pontos percentuais (p.p.), tem um contributo para a redução do défice de 0,6% do PIB; ora, só o aumento do IVA em 1 p.p. anunciado em Maio tinha um efeito estimado pelo governo de 0,7% em 2011; já se vê a determinação de taxar os bancos; (ii) a «Revisão dos benefícios fiscais para pessoas coletivas» juntamente com a «Alteração do sistema de deduções e de benefícios fiscais no âmbito do IRS» valem 0,4% do PIB; ora, nas medidas anunciadas em Maio, a redução das deduções em sede de IRS valia 0,47% do PIB; já se vê a determinação em acabar com as escandalosas benesses fiscais que são dadas a algumas grandes empresas, a começar pelos bancos.

4. O governo decidiu reocupar o espaço político de origem, o centro direita (depois de um ensaio de encosto à esquerda nas últimas eleições). O PSD que se cuide – é cada vez mais escasso o espaço que tem para se afirmar.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Será que os mercados vão reagir bem a isto?

… perguntava o implacável Camilo Lourenço na rádio, pedindo mais sangue. Talvez não, digo eu. Talvez antecipem o cenário mais provável: uma recessão prolongada que torna mais difícil, senão impossível, o serviço da dívida pública e privada. Outra Irlanda.

Imitar a Irlanda, caminhar para a recessão

“Governo anuncia redução de 5 por cento na massa salarial da função pública.” Isto afecta todos. Todos. Do público e do privado. O projecto de cortar salários, directos e indirectos, de forma deliberada vai para a frente. Juntem o aumento do regressivo IVA. Menos rendimento, recessão, mais desemprego...

Vitalpolitik?

Tenho de continuar a conversa sobre o ordo/neoliberalismo porque a resposta de Vital Moreira é equivocada, pelo menos à luz do que nos indica a mais recente historiografia na teoria e economia políticas sobre o contributo vital do ordoliberalismo alemão para o que o historiador e economista Philip Mirowski chama o "colectivo do pensamento neoliberal", que obviamente não surge nos anos oitenta, mas muito antes. As grandes vitórias políticas são precedidas de elaborações intelectuais mais ou menos convergentes.

Aliás, foi Alexander Rustow, que Vital invoca em defesa da separação ordo/neo, quem criou o termo neoliberalismo nos primórdios deste colectivo sempre plural, no colóquio Walter Lippmann, realizado, em 1938, na cidade de Paris. Hayek, que nele participou e que depois andou por Chicago e por Friburgo (o principal centro académico ordo) como professor, só usou o termo neoliberal para se referir aos seus amigos alemães. Curiosidades, mas Hayek é o grande artífice da aliança intelectual neoliberal no pós-guerra. Na crucial fundação da Mont Pelerin Society, ideia de Hayek, em 1947, os ordoliberais alemães estão bem representados e participam activamente, a par do contingente Austríaco e de Chicago. E isto continuou até aos nossos dias. Um critério importante nos recentes estudos da ciência sobre o assunto.

Chega de detalhes históricos. Vamos aos pontos conceptuais. O conceito de “economia social de mercado” não está originalmente relacionado com o Estado-Providência, tal como os socialistas o entendem. Economia social de mercado é a tese de que uma economia capitalista concorrencial em expansão, bem ordenada juridicamente, produz as melhores consequências sociais (os ordo estão sempre entre a economia, o direito, a sociologia e a história das ideias, o que faz do ordoliberalismo, a par da economia neo-austríaca, a corrente neoliberal mais sofisticada, como Vital deve saber melhor do que eu).

Isto não dispensa alguma política social dirigida, claro, ou o reconhecimento do papel dos sindicatos, desde que bem disciplinados pela concorrência e pelo poder capitalistas. Nestes pontos, os ordo não se distinguem, na prática, muito de um Hayek da Constituição da Liberdade e de um Friedman do Capitalismo e Liberdade, que aliás os têm como suas referências. O mesmo não se pode dizer do “modelo” económico alemão, sobretudo depois da introdução das “impurezas” social-democratas nos anos sessenta, hoje muito fragilizadas.

Onde os ordo se tendem a distinguir teoricamente, entre outros, é no aprofundamento da ideia de que o capitalismo é uma construção política e regulatória, com toda a ambiguidade política deste termo, que requer um soberano forte acima dos chamados grupos de interesse, que garanta a manutenção da sempre ameaçada concorrência mercantil como princípio económico estruturante. Isso e a ideia de uma economia moral sem neutralidades, conservadora: o ideal ordo de uma comunidade pequeno-burguesa, empresarial, moral e socialmente sã. Vitalpolitik...

Um Estado forte, protegido de incursões democráticas excessivas, um Estado sem veleidades keynesianas e sem os “excessos” socialistas, como Vital implicitamente reconhece. E a relação dos ordo com o nazi-fascismo? Crítica intelectual e exílio de alguns, sem dúvida, mas também colaboração de outros, tal como antes Mises tinha saudado Mussolini por “salvar a civilização ocidental”, e Hayek e Friedman saudarão e estarão com Pinochet, porque mais vale um “ditador liberal” do que uma democracia socialista. Estados de excepção...

Avancemos no tempo: a União Europeia, com Banco Central independente do poder democrático, uma Comissão pouco escrutinada e dedicada à construção sem fim de mercados, mesmo em áreas onde outros princípios deveriam prevalecer, os Estados bem controlados por mecanismos sem base democrática e um Tribunal a sobrepor a livre circulação de capitais à negociação colectiva e aos direitos sindicais, é hoje o mais próximo do ideal ordoliberal, ou seja, do ideal neoliberal, como defendem, entre outros, o historiador Perry Anderson ou o jurista Alain Supiot. Vital Moreira, um europeísta infelizmente demasiado feliz, alinha com esta desgraçada tendência no essencial. Sobre a actual e funesta influência dos ordoliberais, os neoliberais alemães, na UE leia-se a excelente crítica do economista pós-keynesiano William Mitchell.

Soube, através de Vital Moreira, que Habermas, por motivos de doença, não participará na conferência internacional sobre republicanismo, que amanhã tem lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. No entanto, John Pocock vai estar presente e isso basta para garantir o interesse do evento, de que Vital Moreira é um dos coordenadores. Lá estarei.

A Areia dos Dias








Hoje saúdo o aparecimento de um novo blogue (A Areia dos Dias) que seguramente não vai desiludir os que querem reflectir sobre a crise, suas causas, consequências e caminhos para a superar.

É um excelente contributo para fazer frente ao monopólio que os "comentadores da economia doméstica" têm nas televisões.

Aqui deixo um aperitivo:

"O debate em torno do défice das contas públicas tem vindo a polarizar de tal modo o discurso político-partidário, com a correspondente amplificação por parte dos media, que corremos o sério risco de continuar a passar ao lado dos verdadeiros desafios que o País atravessa no indispensável acertar do caminho para um desenvolvimento sustentável, base de consolidação da própria democracia.

Entrevistas, sondagens de opinião junto dos cidadãos e cidadãs comuns, programas televisivos de larga audiência, tudo converge para nos fazer crer que o cerne da crise reside numa despesa pública excessiva ou na falta de competitividade da nossa economia no mercado mundial e é deste olhar míope que se parte: no primeiro caso, para fomentar a crença de que são inevitáveis cortes nas despesas do Estado (redução de serviços e prestações sociais, deslocalização de serviços públicos para o sector privado e mercantil, mais privatizações; alienação de capitais públicos); no segundo caso, ou seja para fomentar a competitividade, argumenta-se que há que baixar os impostos, reduzir salários e multiplicar os incentivos do Estado às empresas.

E tudo isto, feito num ambiente de crispação, que parece visar mais efeitos psicológicos com previsíveis interesses partidários do que o real enfrentamento dos problemas e a procura das suas verdadeiras soluções"

Solidários com a banca

“Pela nova lei dos abonos de família, é necessário declarar os valores que se tinha em contas no banco a 31/12/2009. Face à maré de gente que está a ir aos bancos para pedir essa informação, alguns deles estão a cobrar 30 euros para a darem.” Miguel Madeira

A política social é cada vez mais selectiva e por isso cada vez mais frágil politicamente e menos redistributiva socialmente, como já aqui defendi. A banca, essa, tem muitas comissões para ganhar e poucos impostos para pagar. Sem stress. O stress é para os fracos. A expropriação financeira das classes populares e dos Estados tem muitos caminhos…

Adenda. Ler o artigo da economista Mariana Mortágua: os bancos que banquem.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Os Silva e a Economia


Nos últimos anos, a política de austeridade tem esmagado todo o debate público em tornos da política económica e, para se instalar firmemente no senso comum, tem recorrido sem pingo de vergonha, a instrumentos de manipulação intelectual cada vez mais rasteiros. Neste estado de coisas, a comparação entre a economia e a nossa casinha, entre o orçamento do Estado e a nossa conta bancária, entre o Ministro das Finanças e a dona de casa poupadinha, infectou por completo aquilo que passa por opinião de "especialistas", que se alongam sem se rir nesta alegoria da caserna.

Para qualquer economista ou próximo disso que se leve minimamente a sério, este discurso é, pura e simplesmente, impronunciável. E não, não é pedagogia. É uma aldrabice intelectual. Mas ela está de tal forma disseminada que vários ladrões já tiveram de perder algum tempo a desmontá-la. Nessa linha, tentarei clarificar algumas razões pelas quais estas realidades são incomparáveis. Não será uma lista exaustiva, nem de perto nem de longe, mas servirá para mostrar que essa comparação não é inocente e não é inútil. É uma comparação activamente enganadora.

Tomemos como exemplo o problema do consumo: quando a família Silva decide (ou é obrigada) a "apertar o cinto", essa decisão pode ser sensata ou inevitável ou as duas coisas. E as consequências dessa decisão podem ser muito vantajosas para a situação orçamental dessa família, a não ser, claro, que a carência económica coloque a família em situação de incumprimento de dívidas, que a obrigue a tirar filhos da escola, que a impeça de comprar casa ou outras coisas de que os especialistas se ocupam pouco. Mas, enfim, talvez a coisa se fique por aí...

Se houver dez famílias a fazer o mesmo que os Silva, o problema mantém-se na mesma dimensão. Talvez o Merceeiro da rua tenha alguns problemas, mas o impacto continua, provavelmente, a ser limitado. Mas e se houver milhões de famílias por sensatez ou inevitabilidade a fazer o mesmo que os Silva? Aí o caso muda de figura... Aí temos empresas a fechar, trabalhadores a perderem o emprego (e o salário), menos consumo e um ciclo vicioso recessivo difícil de controlar. Pelo que obrigar a que isto aconteça pode ser muito pouco sensato.

Se o orçamento do Estado é pensado nos mesmos termos em que os Silva pensam o seu orçamento familiar, o resultado pode ser uma surpresa desagradável, mesmo do ponto de vista do ajustamento orçamental. Não acreditam? Olhem para a Irlanda. Durante anos, os liberais cantaram hossanas ao "trabalho de casa" da Irlanda. Agora, a Irlanda está a chumbar mais desgraçadamente que o menino Tonecas e os liberais estão todos caladíssimos sobre o assunto.

Infelizmente, é assim que o Governo continua a formular o problema das contas públicas: temos de cortar 4.500 milhões de euros no orçamento. São contas de dona de casa. O Governo acredita, ou finge acreditar, que é possível operar um corte desta dimensão, sem que isso tenha consequências na dinâmica da economia que, por sua vez, se repercutirão na receita fiscal e na necessidade de mais despesa social. Inversamente, despreza o papel que uma política mais sensata, centrada no crescimento poderia ter numa evolução positiva destas variáveis

Essa é uma das diferenças entre analisar as escolhas de um agente e as necessidades de uma economia complexa em que os vários interesses são fortemente interdependentes. O factor que mais tem contribuído para o tímido crescimento da economia no primeiro semestre é o consumo. Esse é, de resto, o problema mais grave das empresas, juntamente com a ausência de crédito. A falta de encomendas tem sido a razão primeira de grande parte das falências que se têm multiplicado ao longo dos últimos dois anos.

Dir-nos-ão que o problema é um problema de liquidez. Que, pura e simplesmente, não há financiamento possível para políticas expansionistas e isso é um problema real. Mas então que se faça as perguntas correctas, pela ordem correcta: 1. Quais as áreas de investimento público estratégico para relançar a nossa economia e criar emprego agora? 2. Como encontrar os recursos para financiar essas políticas? Como se costuma dizer, uma pergunta bem feita é metade da resposta...

Trabalhadores de toda a União, uni-vos!


Comissão Europeia, Banco Central Europeu, FMI, OCDE: as nossas elites nunca foram originais e têm aliados de peso. Luís Ribeiro descreve bem o projecto do FMI no i de ontem, a aposta das marionetas do bloco central: “Cortar salários nos próximos dez anos.” O FMI não aprende com os seus desastres na América Latina e no leste europeu. Lembram-se da Argentina, por exemplo? Se não se lembram, aconselho a leitura de um excerto deste relatório.

Trata-se de fazer com que sejam as classes populares e os seus rendimentos, e logo os seus consumos, a pagar o fardo do ajustamento. O endividamento e o incumprimento seguem em maior escala dentro de momentos? Ou pensam que a poupança cai do céu?

O desemprego de dois dígitos ajuda a impor a disciplina, o medo, tão selectivos. Os planos de novas rondas de desregulamentação das relações laborais têm o mesmo efeito do desemprego: fazer com que os trabalhadores sejam compelidos a aceitar reduções do poder de compra dos salários e aumentar as desigualdades entre a malta do topo, com poder, e a esmiuçada malta da base, sem criar novos e duradouros empregos, como indica recente investigação sobre as dinâmicas das relações laborais.

Façam como Manuel Alegre: não liguem à OCDE, que reproduz o famigerado consenso do Banco de Portugal, e vice-versa, que esta arquitectura neoliberal está bem imbricada e oleada. Trata-se sempre de poder. E de gerar medo, uma vez mais. Causam crises de distribuição, crises de procura, à pala de muita especulação e expropriação financeiras, sempre toleradas. Foi assim que a crise começou. Lembram-se?

Juntem a isto a fragilização dos Estados periféricos com novas privatizações e os aumentos do regressivo IVA, uma vez que as classes populares consomem todos os seus rendimentos e logo o IVA leva-lhes proporcionalmente mais, e temos a estrada para a recessão com mais desigualdade à mistura: em Portugal o regressivo IVA representa 8,7% do PIB e o progressivo IRS 5,8% do PIB; na zona euro a média é de 7,5% e de 7,9%, respectivamente.

Os aparelhos ideológicos difundem uma fraude intelectual de proporções gigantescas: os salários são o problema português. Não são, se fizermos as contas. Em termos genéricos, os salários são um custo? São. O salários são uma fonte de procura? Também. Esta contradição, no cerne dos capitalismos, tem de ser institucionalmente gerida para que se gerem empregos e justiça social: a boa gestão cria um multiplicador da igualdade no quadro das variedades de capitalismo.

À escala europeia é a falácia da composição: cortar nos salários dos funcionários públicos – para tentar corrigir os défices gerados pela crise, para fazer com que os trabalhadores do sector privado aceitem o mesmo e para tentar corrigir desequilíbrios externos periféricos – leva a uma perversa contracção do conjunto mercado interno europeu, a novos problemas nas finanças públicas e aos problemas de sempre no saldo com o exterior. Os países não podem todos aumentar as exportações líquidas, como bem sublinhou o José Guilherme. E ainda não podemos exportar para Marte...

Perante este desastre europeu, só a luta dos trabalhadores europeus pode fazer a diferença. Razões não faltam para dizer: Trabalhadores de toda a União, uni-vos!

Notas. Como é hábito, algumas das ligações são a estudos recentes, que desafiam a sabedoria económica convencional, ajudam a aprofundar estes temas e a pensar nas alternativas. A tradução para português do “manifesto dos economistas horrorizados” está a caminho. Este texto também foi publicado no arrastão.

Do euro à rua


Através do Público, cheguei a um artigo do Financial Times, assinado por um conjunto de economistas europeus e subscrito por personalidades como Delors, Prodi e Fisher, a pedir a imediata e permanente activação do fundo de estabilização financeiro cozinhado em Maio. Até aqui, tudo bem. A activação do fundo permitiria aos estados da zona-euro, em aflição nos mercados internacionais, o acesso a empréstimos com juros bastantes mais baixos. Com juros mais baixos, descem a despesa e o défice, sem qualquer efeito recessivo na economia.

No entanto, ao lermos todo o artigo, percebemos bem quais as motivações por detrás dele. A estabilidade do sistema financeiro europeu e a sobrevivência do euro comandam a proposta. Não há aqui uma palavra sobre crescimento ou coesão. Pelo contrário, o que observamos é um pedido para uma severa “consolidação” orçamental orquestrada pela Comissão Europeia como contrapartida. Os orçamentos de estado passariam assim a ser desenhados por uma entidade não eleita. Mas mais interessante é ver o apelo para que se promova um modelo formal para reestruturações de dívida soberana, indo de encontro ao que escrevi sobre a possibilidade de uma reestruturação liderada pelos credores. Isto, assim, não vai acabar bem…

O euro, como está instituído, bem pode ganhar tempo de vida à custa da recessão dos países periféricos. Contudo, sem uma refundação deste, os problemas estruturais mantêm-se. Hoje, Merkel confessou as vantagens do euro para a economia alemã através do argumento da inexistência de volatilidade cambial na zona euro, o que favorece as suas exportações. Esqueceu-se da outra parte da história. De como graças a taxas de inflação mais baixas, uma maior compressão dos seus trabalhadores e uma política monetária do BCE ao seu serviço, a Alemanha ganhou competitividade face aos restantes países europeus, agora impedidos de se ajustar pelo câmbio.

Dito isto, e contrariando a medina-carneirice reinante, é tempo de mostrar que existem alternativas ao nível europeu, regional e nacional. Mais, é tempo de reivindicar uma Europa ao serviço dos seus cidadãos e não do capital financeiro. Por isso, a jornada de contestação europeia de amanhã, dia 29, a ter lugar por toda Europa, incluindo Porto e Lisboa, pode ser o início de uma mudança da correlação de forças sociais em favor de quem trabalha e mais precisa. Todos à manif.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Uma pergunta aos comentadores da "economia doméstica"

Camilo Lourenço, comentador de economia no Jornal de Negócios, fala-nos da tomada de consciência da situação de crise grave em que nos encontramos:

"Esta alteração do "mood" do País, abrangendo personalidades da esquerda, é nova (até porque se sabe que outras vozes desta área, em privado, já fizeram saber a José Sócrates que a situação é insustentável e que o Governo não pode adiar cortes na despesa). E devia constituir um passo importante para o Governo arrepiar caminho, deixando de empurrar com a barriga: esperar que o crescimento económico gere receita fiscal suficiente para evitar cortes na despesa corrente. Cortando, inclusive, nos salários que paga aos seus servidores (se a Espanha e a Grécia, de governos socialistas, o fizeram...)."

Neste naco de prosa é interessante ver como da constatação de que a situação é grave se passa de imediato à inevitabilidade do corte nos salários dos funcionários públicos. Curiosamente, o texto não especifica se Camilo Lourenço também inclui nesse corte os automóveis, cartões de crédito, telemóveis, viagens em “classe executiva” e prémios anuais que hoje são atribuídos aos altos quadros da Administração Pública (central e desconcentrada), institutos e empresas públicas, incluindo as municipais, hospitais, etc.

Fiquei com esta suspeita: em nome da necessidade de “incentivar” uma gestão eficiente, e também para “segurar” esses quadros de nomeação política não vá eles zangarem-se e passar para o sector privado, Camilo Lourenço eventualmente admitirá que os cortes devem poupar esses rendimentos extra que não estão sujeitos a tributação.

Talvez não ocorra a Camilo Lourenço, acompanhado de algumas boas almas que se julgam de esquerda (Murteira Nabo, Luís Nazaré, etc.), que os níveis de remuneração dos funcionários públicos portugueses são escandalosamente desiguais. E também não lhes passa pela cabeça que a esmagadora maioria dos funcionários públicos não é responsável pela forma como os serviços onde trabalham são (des)governados. A estes comentadores, bem relacionados com os administradores e gestores nomeados pelos “partidos de (des)governo” se não mesmo ocupando um desses cargos, é conveniente meter tudo no mesmo saco e clamar por uma redução geral dos salários da função pública.

Na realidade, esse “corte geral”, a que o próprio governo já se sujeitou para dar o exemplo, é a solução que preserva as escandalosas remunerações que essa gente do topo (e muitos intermédios) recebe por fora da folha de salários. Essas remunerações representam um volume de despesa pública apreciável mas, de forma discreta, estão destinadas a escapar à austeridade.

Depois do que escreveu, Camilo Lourenço deve aos seus leitores um esclarecimento: considera, ou não, as mordomias dos altos quadros, gestores e administradores públicos como o primeiro alvo dos cortes na despesa pública corrente?

Há ainda uma pergunta que gostaria de fazer aos propagandistas da redução generalizada nos salários (e subsídio de férias ou/e Natal) da função pública:
como é que esse corte melhora “as perspectivas de crescimento da economia”, a razão de fundo pela qual os “mercados” estão com dúvidas sobre a capacidade do País para ir cumprindo os seus compromissos?

É que a Irlanda não esperou pelo FMI e, por sua iniciativa, esmerou-se nesses cortes generalizados com um resultado precisamente oposto ao pretendido. E na Hungria e na Lituânia a mesma política de austeridade conduziu a resultados desastrosos. Mas "os mercados", quais deuses sedentos de sangue, dizem-nos que não foi suficiente e é preciso cortar mais. Afinal, qual é a taxa de corte nos salários da função pública que definitivamente melhora “as perspectivas de crescimento da economia”? 20%, … 30%, … 50%?

Está na hora de os comentadores da “economia doméstica” nos explicarem em pormenor como é que os portugueses de baixos rendimentos, através da austeridade sacrificial, se vão redimir do pecado do despesismo e aceder ao paraíso da saída da crise. Até agora esses comentadores não se dignaram confrontar as políticas que propõem com os seus resultados nos países onde foram aplicadas. E como os cidadãos já não podem ligar a televisão sem ser sujeitos à propaganda (sem contraditório) dos cortes na despesa pública (na realidade querem dizer nos salários), pelo menos têm o direito a ouvir uma resposta detalhada a essa pergunta. Será que teremos de esperar sentados?

domingo, 26 de setembro de 2010

A Europa entre a austeridade e renegociação da dívida soberana


Nas últimas duas semanas, por coincidência, dois assuntos dominaram as páginas de economia dos jornais: a aprovação do Orçamento do Estado e a crescente dificuldade de financiamento do Estado português nos mercados de capitais. Não existe um nexo de causalidade necessário entre os dois temas, mas a sua relação é inescapável. Depois da crise em torno da dívida pública dos países do Sul da Europa em Maio, o Governo português comprometeu-se com um programa de estabilidade e crescimento, com o apoio político do PSD, que aponta para um duro caminho de austeridade (só ultrapassado, nas suas previsões draconianas, pelo plano grego). Assim, mesmo sem conhecer ainda o Orçamento, já sabemos o que nos espera: o Governo prevê uma diminuição da despesa pública em 1,3% do PIB em 2011, seguida, em 2012, por uma nova redução em 1,4% - as quais, a par do aumento dos impostos, permitiriam almejar os objectivos de contenção do défice em 3% do PIB e diminuição da dívida pública. Os cortes são, e terão de ser, cegos: na despesa social, no investimento público, nos salários, etc.

As imposições externas, somadas ao estranho quase-consenso público nacional, tornam este programa económico uma inevitabilidade, que se reflectirá certamente na aprovação do próximo Orçamento. Porém, o mais recente relatório do RMF (Research on Money and Finance), coordenado por Costas Lapavitsas, aponta para a insustentabilidade desta trajectória e fornece algumas pistas para a sua superação.

O resto do meu artigo, publicado hoje, pode ser lido no site do Público.

Modelos avisados...

"A Grécia tem um modelo para seguir e esse modelo é a Irlanda.” Jean-Claude Trichet, Presidente do Banco Central Europeu.

Os economistas do medo que cirandam por Belém, por São Bento e pelos lugares lugares cativos nas grandes empresas não são originais. Leiam o artigo de Larry Elliot, editor de economia do The Guardian, onde encontrei a notável afirmação de Trichet: cortes vincados na despesa igual a ciclo vicioso da recessão. Não temos medo da repetição.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Krugman sobre Portugal...

...ou quase, porque é só substituir «A América» por «O nosso país» e a coisa encaixa na perfeição:

«(...) os ricos são diferentes de mim e de si: têm mais influência. Em parte é uma questão de contribuições para as campanhas, mas também está aqui em causa uma certa pressão social, já que os ricos passam muito tempo na companhia dos políticos. Assim, quando aqueles enfrentam o perigo de ter de pagar mais 3% ou 4% do seu rendimento em impostos, os políticos sentem o seu sofrimento - sentem-no com uma agudeza muito maior que o das famílias dos desempregados, dos que ficam sem as casas e vivem sem esperança.

Seja como for, quando a luta fiscal terminar, pode ter a certeza que as pessoas que actualmente defendem os rendimentos das elites vão voltar a exigir cortes nas ajudas aos desempregados. A América enfrenta escolhas difíceis, hão-de dizer; todos temos de fazer sacrifícios. Mas quando disserem "todos" o que querem dizer é "você". Os sacrifícios são para os pequenos.»


Agora que vêm aí aumentos de impostos (ou eleições...), esperemos que o governo diga alguma coisa de esquerda - em vez de ir pela solução fácil e iníqua de aumentar o IVA não tocando nos escalões mais altos de IRS, nem nas formas mais ou menos encapotadas de evasão fiscal (e.g., aquelas que mascaram de custos operacionais das empresas o que são na verdade pagamentos extra aos quadros dirigentes).

O aviso irlandês


Economia da Irlanda contrai inesperadamente no segundo trimestre.” Inesperadamente? Será? O que dirão os economistas do costume? Os que andaram, e andam, por aí a dizer, contra a evidência disponível, que as políticas de austeridade à irlandesa até fazem bem ao crescimento e ao emprego e, logo, às finanças públicas, que, na realidade, quase só dependem destes. O ciclo vicioso de austeridade, recessão, desemprego, novos problemas nas finanças públicas e mais austeridade está aí. O Daniel Oliveira, provando que a economia é demasiado importante para ser deixada ao economistas, identifica os seus mecanismos essenciais com clareza. O ponto de partida é uma loucura à irlandesa de cortes salariais que tem demasiado eco televisivo…

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O problema da direita


A direita tem um problema: é-lhe difícil dizer claramente o que pensa e o que quer. A direita pensa que os despedimentos individuais não precisam de justa causa, que deve haver um serviço nacional de saúde e uma escola pública para pobres e um mercado de saúde e de educação para ricos que paguem menos impostos. Mas quando o diz ou dá a entender, as pessoas não gostam de ouvir. É então que a direita cai do alto nas sondagens. Isso parece ter sido exactamente o que aconteceu ao PSD com as suas propostas de revisão constitucional.

É claro que as pessoas têm muita razão em não gostar das coisas que a direita realmente quer. Não gostam de empresas em que é preciso obedecer ao chefe para lá do aceitável sob pena de despedimento por razão “atendível”. Não gostam de um país dividido com hospitais e escolas pobres para os pobres e hospitais e escolas mais a sério para os ricos que pagam menos impostos. As pessoas sabem que isto tudo para além de injusto, é estúpido: ainda sai mais caro a todos do que o SNS e a escola pública universal e tendencialmente gratuitos.

Já que não pode dizer o que pensa e o que quer a direita tergiversa. O que é então dito?: “Ora essa até gostamos muito do Estado Social, o problema é que ele é insustentável e vocês devem meter isso na cabeça”. “Nós até queremos que quem não pode pagar tenha hospital e escola”. O que fica por dizer: “Nós até não nos importamos de pagar um dinheirão pela saúde e educação desde que paguemos menos impostos; apenas os impostos suficientes para garantir uma saúde e uma educação mínima a quem não pode pagar, além de uma polícia de segurança pública que nos proteja a vida e a propriedade”.

Já a esquerda, ou as esquerdas se quiserem, tem outros problemas. Mas este não tem: não perde em dizer com verdade aquilo que quer.

Portugal tecnológico?

Está decorrer na FIL a 3ª edição do Portugal Tecnológico. Para quem não conhece, trata-se duma mistura de feira de negócios de empresas tecnológicas, de montra do melhor se faz em Portugal – em termos empresariais e também de políticas públicas (sim, na administração pública portuguesa há quem, competentemente, prossiga objectivos de política industrial) – e, obviamente, de mais um momento de propaganda governamental.

O site do evento não tenta esconder esta sua terceira dimensão. Logo de início é-nos oferecida uma fotografia do Primeiro Ministro, acompanhada de uma frase da sua autoria: “A balança tecnológica portuguesa tornou-se persistentemente positiva. Quer dizer, Portugal passou a integrar o conjunto de países que exportam mais bens e serviços tecnológicos do que aqueles que importam.” Não é a primeira vez que Sócrates utiliza a evolução recente da Balança Tecnológica como exemplo da modernização tecnológica do país. Mais cedo ou mais tarde, apercerber-se-á que não presta um bom serviço a esse desígnio – nem à credibilidade do seu governo.

Desde logo, a ideia de que a Balança de Pagamentos Tecnológica (BPT) é um bom indicador da posição do país no comércio internacional de produtos tecnológicos é simplesmente errada. De acordo com a definição do Banco de Portugal, a BPT engloba as transacções dos seguintes itens: Direitos de aquisição e utilização de patentes, marcas e direitos similares; Serviços de assistência técnica; Serviços de investigação e desenvolvimento; Outros serviços de natureza técnica. Ou seja, em nenhum caso estamos a falar de “bens tecnológicos”, mas sim de direitos de propriedade industrial – onde o desempenho comercial do país é sistematicamente negativo – e de serviços. O facto de o país exportar mais serviços tecnológicos do que aqueles que importa não deixa de ser boa notícia, mas há que mantê-la nas suas proporções. Em primeiro lugar, o saldo positivo da BPT foi de 85 milhões de euros em 2009, ou seja, uns modestos 0,05% do PIB. Em segundo lugar, a sustentabilidade deste saldo positivo está longe de estar garantida, como mostra a evolução dos últimos anos.

Fonte: Banco de Portugal

Por outro lado, quando analisamos a evolução da balança de produtos transformados deparamos-nos com uma realidade bem distinta: a importação de bens de alta e média alta tecnologia correspondeu em 2009 a 12,8 mil milhões de euros, enquanto a exportação do mesmo tipo de bens ficou-se pelos 7,2 mil milhões. Ou seja, o saldo do que poderíamos chamar “Balança de bens tecnologicamente intensivos” apresenta um valor negativo de 5,7 mil milhões de euros. Perto disto, o saldo positivo da BPT não significa muito, pois não?

Adicionalmente, também aqui, o que vinha sendo uma evolução favorável até há poucos anos atrás tem vindo a deteriorar-se com a crise.

Fonte: GEE


Na verdade, nada disto é surpreendente. Que a economia portuguesa é sobre-especializada em sectores de baixa intensidade tecnológica não é novidade. E a recente redução do peso das exportações mais intensivas em tecnologia apenas traduz a dependência histórica que temos de uma mão cheia de multinacionais no que toca a tecnologia avançada (cujos resultados recentes se limitam a reflectir a crise internacional).

E nada disto deverá menorizar as dinâmicas de inovação que se vão vislumbrando no tecido económico português e que, aqui como noutros países, têm beneficiado de uma acção empenhada de algumas agências públicas. É esta parte da mudança necessária que se pode ver no Portugal Tecnológico. Mas o problema do padrão de especialização não se resolve em pouco tempo - exige objectivos claros, focalização e persistência dos responsáveis políticos. Se o governo insistisse mais nesta mensagem e menos na estatística de circunstância, não nos arriscaríamos tanto a ver ir por água abaixo os esforços que muitos têm investido na modernização do país – quando as mesmas estatísticas, por razões conjunturais, vierem a mostrar-se menos apelativas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

John Maynard Keynes


Excertos da recensão ao livro "John Maynard Keynes", de Paul Davidson, que publiquei no Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) deste mês.

A crise financeira de 2007-2010 revelou as fragilidades do pensamento económico dominante na academia e nos círculos políticos. A hegemónica teoria neoclássica, assente nos postulados da eficiência dos mercados, não conseguiu prever a crise, não a soube explicar, nem, consequentemente, apresentar prescrições políticas para debelar os seus efeitos. A crise teria sido um «cisne negro», provocado pela ganância e ilegalidades de uns quantos banqueiros. Assistimos, nos primeiros meses de crise, e face à urgência de não se cair numa nova «grande depressão», à recuperação das políticas monetárias (redução das taxas de juro e injecção de liquidez) e orçamentais (aumento dos défices públicos). Estas políticas pareciam simbolizar a recuperação das propostas do mais influente economista do século XX, John Maynard Keynes.(…)

Neste âmbito, a obra publicada pela Actual Editora sobre a vida e obra de Keynes pelo, provavelmente, mais destacado economista pós-keynesiano vivo, Paul Davidson, é muito significativa. Esta obra destaca-se por fornecer uma excelente síntese do pensamento de Keynes, colocando-o em confronto quer com o pensamento clássico, hegemónico durante a vida do economista, quer com a subsequente síntese dita keynesiana nascida do trabalho de Paul Samuelson, que conta, na sua versão contemporânea, «neo», com alguns dos mais conhecidos economistas da actualidade, como Paul Krugman ou Joseph Stiglitz.

Conceitos-chave do pensamento, como o de incerteza radical, procura agregada, preferên¬cia pela liquidez ou socialização do investimento, são explicados em pormenor e à luz não só da luta das ideias na teoria económica, mas recorrendo a inúmeros exemplos da economia real das últimas décadas. (…)

As prescrições políticas advogadas por Keynes e pelos seus seguidores pós-keynesianos − Abba Lerner, Hyman Minsky ou John Kenneth Galbraith − para uma maior regulação dos mercados financeiros, intervenção pública na estabilização do ciclo económico e promoção do pleno emprego ou a regulação pública internacional dos fluxos internacionais de bens e capitais surgem aqui com uma robustez teórica cuja derrota no campo político só se pode dever à marginalidade a que foram condenadas na academia.

Num mundo onde o keynesianismo é tão rapidamente proclamado como consensual (em 2008), como atirado para o caixote do lixo das ideias (vejam-se as contracíclicas medidas de austeridade impostas um pouco por todo o mundo como eloquente exemplo), Paul Davidson fornece um exaustivo mapa para o mais importante pensamento económico do século XX, mostrando habilmente como este foi apropriado e abastardado teórica e politicamente nos últimos 60 anos. Em suma, Davidson mostra, sem sectarismos, como ao contrário do que diz a afirmação que se atribui a Richard Nixon no início dos anos 70, não somos, nem nunca fomos, todos keynesianos. (…)

Cadê?

Talvez não. Porque há sempre um momento em que um bloquista tende a fazer demagogia. Um exemplo: ao fazer alusão à queda da receita fiscal em sede de IRS, Gusmão escreve: “-7,7% na tributação progressiva dos rendimentos do trabalho e alguns de capital, apesar do aumento das taxas”. A quebra de receita com origem na “tributação progressiva dos rendimentos do trabalho” acontece porque houve um aumento do desemprego, logo menos rendimentos do trabalho sujeitos a tributação. Não se pode tributar os rendimentos de quem não os tem, “apesar do aumento das taxas”.

Cadê a demagogia? O ponto que faço em todo o artigo (com o qual começo e com o qual termino) é o de que a política de austeridade é perversa e ineficaz mesmo do ponto de vista do ajustamento orçamental. Contraponho a ideia de que o ajustamento orçamental só pode ser conseguido de forma sustentável através do combate ao desemprego. O autor do post citado acusa-me de demagogia por não referir que a quebra na receita fiscal se deve ao aumento do desemprego. Agradeço a ajuda, mas o contributo do sr. assessor do Governo só pode ser lido como uma crítica ao empregador. É que a dinâmica do desemprego é pelo menos em parte uma responsabilidade do Governo. Ou não?

Ainda a crise da social-democracia

Vítor Dias descasca muito bem o artigo de Vital Moreira no Público de ontem sobre a crise da social-democracia. Um processo de autodestruição, condicionado pela participação na viragem neoliberal da integração europeia, como já aqui ou aqui defendi. Acrescentaria um ponto ideológico: do que eu conheço, Vital Moreira é o melhor representante nacional do chamado ordoliberalismo de origem alemã, precisamente uma das mais destacadas correntes do colectivo intelectual neoliberal na economia política. Muito influente na construção europeia e na colonização ideológica da social-democracia. A expansão deliberada da concorrência de mercado como alfa e ómega do legislador e das politicas públicas: a mão invisível requer várias mãos visíveis. Uma defesa da pilotagem de um capitalismo em processo de purificação por mãos sem pressões da “turba” democrática. Um anti-keynesianismo feroz. Assim, ainda mais estranhas soam as diatribes tardias de Vital Moreira contra o neoliberalismo. Um pouco de transparência e de consistência, por favor.

Nota bibliográfica. Sobre o neoliberalismo, em geral, e o ordoliberalismo, em particular, leia-se o presciente “Nascimento da Biopolítica” de Michel Foucault, recentemente traduzido entre nós. E traduza-se, por favor, o livro acima indicado, que desenvolve as suas ideias.

Aldrabices simétricas

Lá para os lados da direita intransigente, do cachimbo ao insurgente, andam todos ufanos a relembrar manifestos e a assinalar nomes. Fazem bem porque a memória é uma arma. Eu assinei um manifesto que dava prioridade ao emprego e não tenho razões nenhumas para mudar de posição. Na realidade, não houve, à escala europeia, nenhuma iniciativa concertada de estímulo deliberado da economia. O somatório dos estímulos nacionais é relativamente reduzido. O mesmo não se pode dizer de outras regiões menos presas a dogmas. Ao contrario do que afirmou até certa altura a propaganda socrática, que a direita intransigente comprou numa aldrabice simétrica, o défice orçamental em Portugal deve-se quase exclusivamente à inevitável quebra de receitas e, embora muito menos, ao aumento automático e também inevitável de algumas despesas e não a qualquer impulso deliberado através do investimento. As restrições externas de financiamento devem-se à mais do que previsível acção dos mercados financeiros sem trela. De resto, o nosso diagnóstico das falhas institucionais europeias neste contexto – do BCE ao PEC, passando pela perversa separação entre política orçamental e monetária –, confirma-se e condiciona tudo. Felizmente, não estamos sozinhos no diagnóstico e na proposta.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Já podem ser amigos do Ladrões no Facebook

AQUI.

A economia executada


Os dados da Execução Orçamental até Agosto estão a suscitar um debate, ou melhor dizendo, vários debates sobre o andamento da nossa economia e sobre as escolhas que têm sido feitas sobre os instrumentos privilegiados para o ajustamento. Para lá das visões parciais promovidas a este respeito (as árvores que cada um escolhe para pôr a floresta ao seu jeito), é interessante perceber algumas das tendências de fundo que se começam a clarificar.

1. O que a análise geral destes números demonstra é que as boas notícias na frente orçamental estão ligadas a alguns dos melhores (ainda que tímidos) sinais de recuperação económica e que, da mesma forma, as más notícias são também elas inseparáveis da fraca dinâmica de crescimento e do agravamento da situação social. O que indicia que a solução para o problema orçamental depende das soluções que se encontrar para promover e o crescimento e a criação de emprego. E não, ao contrário não funciona. Bem sei que os autores deste blog tendem a repetir-se neste ponto, mas se a realidade não estivesse permanentemente a confirmá-lo...

2. O maior enviesamento deste debate é o total monopólio das questões relacionadas com a despesa, como se o ajustamento orçamental não se promovesse dos dois lados. Esse enviesamento tem como efeito importante obscurecer a importância das variáveis relacionadas com o crescimento (nomeadamente o consumo) em algumas das boas notícias.

3. Outra das consequências mais importantes é não se olhar, com a atenção que merece, para uma alteração (ou melhor, um agravamento) que se está operar na estrutura da receita fiscal. A desagregação do aumento homólogo de 3,3% na receita fiscal mostra-nos duas dinâmicas contraditórias: a queda da receita fiscal em sede IRC (-4,9) e IRS (-7,7% na tributação progressiva dos rendimentos do trabalho e alguns de capital, apesar do aumento das taxas) e o rápido aumento da receita nos impostos indirectos (10,6), com destaque para o IVA (13,9), ou seja, a tributação regressiva dos rendimentos do trabalho.

4. Daqui decorrem duas consequências: a) O sistema fiscal que menos redistribui na Europa, está a redistribuir ainda menos em momento de crise. b) O aumento da receita fiscal está a fazer-se à custa da tributação sobre o consumo, o que deveria fazer pensar sobre as medidas que estão a ser discutidas para comprimir ainda mais os orçamentos das famílias.

5. Na análise da despesa, entre os dados mais interessantes estão os saldos positivos (e crescentes) na Saúde e na Segurança Social. Isto é uma chatice para Passos Coelho porque mostra que, se estas são áreas determinantes pelo seu peso orçamental, estão longe de ser aquelas em que a despesa está descontrolada.

6. Mostram também que a contenção da despesa está a afectar o Investimento Público, mais ainda do que a despesa social, que não se reduz, apesar dos esforços manifestos do Governo. O problema é que, mesmo restringindo o acesso a todas as prestações sociais (com o consequente abandono de muitas das vítimas da crise), o agravamento da situação económica e social sai caro nesta frente. E daqui voltamos ao primeiro ponto. É o que se chama morrer da cura.

Descontrolado, sim, está o desemprego. 10,6% de média durante o primeiro semestre, o que significa que, para cumprir a previsão do Governo, teria de rondar os 9% no segundo semestre... Era tão bom ter um Ministro das Finanças que dissesse que estava disposto a tudo para baixar esta taxa...

Indigência intelectual

Os comentários mais agressivos à minha posta de ontem revelam que anda por aí muita gente que se atreve a falar sobre economia a partir de conceitos de senso comum, do estilo "Então não é evidente que é o Sol que gira à volta da Terra?". Ignoram as diferenças entre senso comum, ideologia e conhecimento científico. São uma amostra da indigência intelectual que hoje prevalece no espaço público.

Não perco o meu tempo com quem não sabe do que fala. Prefiro dar a conhecer uma perspectiva da economia política que está excluída da comunicação social.

Hoje chamo a atenção para este texto publicado há dias por Robert Skidelsky. Aqui fica um pequeno extracto:

"Os argumentos do BCE [Banco Central Europeu] parecem-me o raspar do fundo da panela intelectual. A verdade é que não é o medo da bancarrota do governo mas a determinação dos governos em equilibrar as contas que está a reduzir a confiança dos negócios através da degradação das expectativas sobre o emprego, rendimentos e encomendas. O problema não é o buraco no orçamento; é o buraco na economia.
(...)
O problema é que a actual crise apanha os governos em situação de desamparo intelectual porque a sua teoria económica é uma trapalhada. Os acontecimentos e o senso comum levaram-nos aos défices de 2009-2010 mas não os levou a abandonar a teoria de que as depressões não podem acontecer, e que os défices são portanto prejudiciais (excepto em guerra!). Por isso agora competem uns com os outros na pressa em cortar o tubo de oxigénio a que eles próprios ligaram a economia. Os políticos têm de reaprender Keynes, explicá-lo com clareza e aplicar as suas lições, e não inventar argumentos pseudo-racionais para prolongar a recessão."

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Banca na corda da bamba

António de Sousa, presidente da Associação Portuguesa de Bancos, afirmou em entrevista que a banca nunca viveu uma situação tão grave como a actual. São aparentemente estranhas estas declarações, sobretudo depois dos surpreendentes resultados recorde da banca nacional (com as taxas de IRC a caírem a pique devido às fantásticas provisões contabilísticas). Contudo, dada a sua especificidade na economia, não é difícil perceber como podem, simultaneamente, os bancos estar em apuros e conseguir lucros espantosos.

O sector financeiro é responsável por mais de metade (55%) do endividamento externo nacional (contra 29% do sector público). Dada a fragilidade da economia portuguesa e do sistema financeiro, em particular, a sua reputação anda pelas ruas da amargura, estando o tradicional mercado interbancário internacional fechado à banca portuguesa - a Euribor, taxa à qual a maioria dos nossos empréstimos está indexada, é a taxa a que os bancos emprestam uns aos outros na zona euro. Numa situação imaginária de mercado puro, os bancos já teriam declarado falência. No entanto, a banca beneficia do crédito extraordinário que o BCE, uma instituição pública, lhes disponibiliza, a uma taxa mais baixa do que a própria Euribor (1% contra 1,4%). Conclusão, as margens dos bancos têm aumentado, já que nós pagamos cada vez mais em relação ao seu custo de financiamento, permitindo-lhes uma rápida recapitalização (ajudada pela evasão fiscal).

Qual é, então, o problema? O problema coloca-se de três formas diferentes: 1- Quanto mais um banco está dependente do BCE, pior a sua reputação nos mercados financeiros e maior a dificuldade em voltar ao mercado interbancário; 2- As maturidades dos empréstimos do BCE são normalmente inferiores às do mercado interbancário, colocando os bancos portugueses sob pressão (os nossos empréstimos são de 20, 30 anos); 3– Agora que a banca dos grandes países europeus parece recuperar, o BCE prevê limitar o crédito à banca europeia nos próximos tempos. Isto não vai ser fácil…


P.S. Já reparam que, sem subestimar os problemas de financiamento público, o Estado se encontra numa situação mais confortável do que a da banca nos mercados financeiros? No entanto, desta última pouca gente fala.

O mito do comércio livre

O Ricardo Paes Mamede assinalou num post abaixo como a política industrial nunca deixou de ser seguida pelos campeões do comércio livre, com os EUA à cabeça. Esta peça da Economist sobre a indústria aeronáutica comercial é bem instrutiva. As duas grandes empresas deste mercado, Boeing e Airbus, beneficiam de muitos milhões de apoio público, disfarçado das mais diferentes formas. Claro que os EUA e os países europeus por detrás da Airbus correm à OMC (Organização Mundial do Comércio), queixando-se, como virgens ofendidas, da concorrência desleal. Estas queixas não são mais que um simulacro do livre-cambismo. O problema está quando em conflito se encontram países com recursos muito diferentes. Aqui, o livre-cambismo é o proteccionismo dos mais fortes.

Carta aberta ao jornalista Mário Crespo

Caro Mário Crespo

O seu programa ‘Plano inclinado’ / SIC Notícias ofende o direito dos cidadãos portugueses a uma informação plural e rigorosa. De facto, os economistas ‘residentes’ no seu programa representam apenas um segmento de opinião. Mais ainda, os pressupostos teóricos e políticos em que se baseiam mas que nunca explicitam, envolvidos em juízos de valor sobre o que entendem dever ser a política económica do País, constituem pura ideologia neoliberal. Para o caso de não saber o que é o neoliberalismo, recomendo-lhe uma pesquisa neste blogue.

Não fui ler o contrato de adjudicação à SIC de um bem público (o “sinal”) que lhe permite fazer negócio com a informação que transmite, mas de uma coisa estou certo: o seu programa é pura propaganda ideológica que manipula a mente dos cidadãos e os faz aceitar como inevitável uma próxima intervenção do FMI em Portugal. Como é óbvio, os grupos económicos abrigados da concorrência, com os bancos à cabeça, estão-lhe gratos pelo serviço prestado: um serviço de propaganda neoliberal que manipula a opinião pública usando um bem público.

Mário Crespo, a situação do País é realmente grave mas os cidadãos portugueses têm direito ao debate de ideias alternativas para poderem fazer escolhas políticas informadas. Têm direito a outras análises que não tratem a economia de um país como se fosse uma “economia doméstica”. Se um professor universitário utilizasse esse tipo de metáfora para ilustrar as matérias de Introdução à Economia (ou de Macroeconomia) numa licenciatura de uma universidade credível teria de ser severamente repreendido pelo Conselho Científico da faculdade/departamento. Se o fizesse numa reunião científica internacional provocaria uma gargalhada da audiência.

Como é natural, o Mário Crespo não sabe que, na situação de estagnação em que estamos após uma gravíssima recessão global, a redução em larga escala da despesa pública nunca irá melhorar o saldo do Orçamento nem reduzirá a Dívida pública. Pelo contrário, fatalmente agrava-os. Não lhe vou explicar aqui este mecanismo. Apenas lhe peço que repare nos casos da Irlanda, Grécia e Hungria após a aplicação das chamadas “medidas de austeridade”. Afinal não foi suficiente! Vão ter de fazer ainda mais cortes na despesa pública. Que vão gerar decréscimo do Produto e, por isso, menos impostos e mais despesa em subsídios de desemprego. Já estão lançados numa espiral de desastre empurrados pela economia política dos anos trinta do século passado que hoje domina a Alemanha e outros países europeus, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, a OCDE e o FMI.

Mas, como jornalista de um programa de economia, o Mário Crespo tem obrigação de acompanhar o que Paul De Grauwe ou Robert Skidelsky têm escrito. Pelo menos deveria ler as colunas de opinião do Financial Times e The Guardian. Se o fizer, ficará a saber que a economia é uma ciência plural e que há argumentos que pulverizam a retórica de “donas de casa” com que Medina Carreira e João Duque ‘fazem a cabeça’ de muitos portugueses … incluindo a sua.

Caro Mário Crespo, é tempo de dizer basta. Se não quer fazer um programa em que o pluralismo de análise económica e de políticas seja real - no que conta, José Silva Lopes é mais do mesmo embora com mais inteligência e sensibilidade social - então só nos resta apelar para a entidade reguladora da comunicação social. Porque quem percebe alguma coisa de economia não pode estar sujeito a ouvir da boca de Medina Carreira, com o silêncio conivente do Mário Crespo, que os economistas que dele discordam são uns “trafulhas”. O contrato de exploração da SIC obriga-a a respeitar o pluralismo de opinião e a tratar com decência os telespectadores.

Cumprimentos de um economista atento e razoavelmente informado.

Tendências pós-liberais na economia...

Enquanto a fracção dominante das nossas desgraçadas “elites” políticas e intelectuais se entretém, na sua eterna miopia, com ultrapassados romances de mercado à mistura com uma muito patriótica vontade de deixar a economia portuguesa ser definitivamente canibalizada pelos credores à boleia de novos PECs ou do FMI, há quem discirna com algum realismo, ainda que com liberal desaprovação, as tendências pós-liberais emergentes na economia mundial.

É o caso dos insuspeitos Ian Bremmer e Nouriel Roubini que, apesar de muitas das suas pouco recomendáveis prescrições, reconhecem o óbvio esgotamento do “modelo anglo-saxónico de laissez-faire” e a emergência do “capitalismo de Estado”. Em Portugal, o bloco central privatiza tudo o que há para privatizar, mas nas potências emergentes sabe-se que uma estratégia de desenvolvimento não pode prescindir de um Estado directamente envolvido nos sectores económicos fundamentais: “Na última década (...) a riqueza, o investimento e a empresa públicas regressaram em força. Uma era de capitalismo guiado pelo Estado começou; uma era em que os governos injectam cálculo político na performance dos mercados.”

Esta tendência favorece a reacção proteccionista nos países desenvolvidos, como este artigo de Paul Krugman no i, sobre a relação EUA-China, ilustra. Nada de novo. Esta é a história secreta da construção dos capitalismos. Basta lembrar que o argumento da protecção das indústrias emergentes surgiu no final do século XVIII nos EUA antes de ser teorizado pelo alemão Friedrich List no século XIX e de ser aplicado, a partir daí, um pouco por todos os processos de desenvolvimento. Como assinalou o Ricardo, a politica industrial, aberta ou disfarçada de politica cambial, está por aí à vista de todos, menos dos que hegemonizam o debate económico português lá para os lados da SEDES e de outros “faróis”.

Temos mesmo de alterar as regras do comércio e investimento internacionais e alargar as boas e flexíveis práticas de protecção socioeconómica para refragmentar a economia mundial e para torná-la assim mais gerível, quebrando o enviesamento para a contenção dos custos laborais, para a compressão da procura interna e para a geração de brutais desequilíbrios comerciais e de repetidas crises financeiras. A proposta do economista Dani Rodrik é cada vez mais sensata: os países subdesenvolvidos devem poder continuar a copiar as práticas de protecção industrial selectiva e temporária dos países bem sucedidos; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus standards laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência internacional e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. Isto para não falar dos necessários controlos de capitais, de que muitos países, e bem, nunca prescindiram. Portugal, economicamente esgotado depois de duas décadas de liberalização continuada, precisa de umas fortes suspensões das regras do mercado interno europeu...

Para os que não querem que a Europa continue a medina-carreirar

“A crise económica e financeira que abalou o mundo em 2008 não parece ter enfraquecido a dominação dos esquemas de pensamento que orientam as políticas económicas há mais de trinta anos. O poder da finança não foi minimamente posto em causa. Na Europa, pelo contrário, os Estados, sob pressão da Comissão Europeia, aplicam com renovado vigor os programas de reformas e de ajustamento estrutural que, no passado, geraram instabilidade e desigualdades e que podem agora agravar a crise europeia.

Horrorizados por esta perspectiva, queremos favorecer a expressão pública de numerosos economistas, provenientes de diversas correntes teóricas, que não se resignam perante a reafirmação da ortodoxia neoliberal e que julgam ter chegado o tempo de uma mudança de paradigma nas politicas económicas europeias. É por isto que surge este 'manifesto dos economistas horrorizados'. Este texto não pretende ser um programa alternativo, mas sim apontar para alguns dos desafios essenciais nas questão monetárias e financeiras europeias. Se está de acordo com as suas orientações gerais, agradecemos a sua subscrição.” (minha tradução)

O detalhado manifesto por uma política económica para superar a crise gerada pelo neoliberalismo, organizado por um grupo de economistas franceses ligados à Associação Francesa de Economia Política, pode ser lido, em francês, aqui.

O regresso da política industrial

«Temos de tomar decisões estratégicas sobre sectores estratégicos», afirmou Obama em Maio de 2009. No auge da crise, ficava assim decretado o regresso oficial das políticas dirigidas a actividades produtivas específicas, neste caso sob a forma de apoios maciços do governo federal americano ao sector bancário e à indústria automóvel. Medidas semelhantes eram anunciadas por governos de todo mundo, dirigidas àqueles e a outros sectores de actividade, e apresentadas como essenciais ao desenvolvimento económico de longo prazo dos respectivos países.

O regresso em força da política industrial ao discurso oficial dos países desenvolvidos assume contornos de descontinuidade histórica, após três décadas de hegemonia neoliberal no debate sobre a intervenção do Estado no tecido produtivo (em que as únicas políticas tidas como legítimas eram as ditas ‘horizontais’). Na verdade, os governos nunca se abstiveram de intervir no sentido de promover as condições favoráveis ao desenvolvimento económico, muito para além do exercício das funções minimalistas de regulador e de garante do cumprimento da lei. Por trás da retórica sobre a superioridade dos mecanismos de mercado na afectação de recursos, poucos foram os países que abdicaram de apoiar o desenvolvimento e a expansão das actividades com uma procura mais dinâmica e com maior potencial de crescimento da produtividade. Nos próprios EUA, o sucesso de sectores como a aeronáutica, as tecnologias de informação, a farmacêutica e a biotecnologia – actividades de elevado valor acrescentado onde o domínio americano persiste a nível mundial – é indissociável dos apoios do Estado, canalizados de forma mais ou menos discreta, por agências públicas ligadas aos sectores da saúde e da defesa.

Talvez tenha chegado o tempo de dispendermos menos energia a dicutir se a política industrial deve ou não existir – ela é um facto – e concentrarmo-nos antes na discussão das condições necessárias para que tal política seja eficazmente colocada ao serviço do desenvolvimento sustentado do(s) país(es).

Desencostar a bicicleta

Os ladrões estão de regresso numa conjuntura intelectual e política muito exigente. Um grupo, por agora mais reduzido, sempre concentrado na economia política e na política económica. Como se indica na nossa apresentação de Abril de 2007, a economia de combate é a razão de ser deste projecto. Pedalemos então.