quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

AD no país das maravilhas

 

A Aliança Democrática (AD) – coligação entre o PSD, o CDS e o Partido Monárquico – apresentou na semana passada o seu programa económico para as eleições legislativas de março. Com estas medidas, o objetivo da AD é o de “ampliar as condições de efetiva liberdade económica, para alcançar uma economia mais flexível, mais concorrencial, com menos impostos e menores distorções.”

O eixo central do programa é o choque fiscal prometido: prevê-se a redução do IRS, a isenção de IRS e de contribuições sociais para prémios de desempenho, a redução das taxas de IRS em 2/3 para os jovens até 35 anos, a diminuição do IRC para 15% até ao final da legislatura e a eliminação da derrama municipal e estadual. A AD compromete-se a reduzir a carga fiscal e também a reduzir a despesa e a dívida pública em percentagem do PIB, apontando para um rácio de dívida pública de 90% no final da legislatura.

Os economistas que delinearam o programa económico da AD acreditam que o corte de impostos não terá impacto negativo nas contas públicas: ao promover o investimento privado, que se prevê que cresça 5% no próximo ano, e as exportações, o crescimento económico passará dos atuais 2% para 3,5% anuais e, apesar da redução das taxas para as famílias e empresas ter um custo estimado de 5.000 milhões de euros, as receitas arrecadadas pelo Estado aumentarão em 10.000 milhões de euros. Por outras palavras, o corte de impostos vai pagar-se a si próprio.


Parece bom demais para ser verdade. E há bons motivos para pensar que é mesmo.

Baixar impostos e esperar que chova?

O programa económico da AD coloca as fichas todas no choque fiscal e, sobretudo, na redução dos impostos para as empresas, que justificam a previsão de um crescimento tão acentuado do investimento privado. A ideia é relativamente intuitiva: menos impostos sobre as empresas permitem-lhes aumentar os valores que reinvestem na atividade, contribuindo para melhorar a capacidade produtiva e fomentar o crescimento da economia.

No entanto, não é mais do que uma crença: os estudos empíricos existentes não nos permitem afirmar que baixar impostos às empresas traria mais crescimento. Uma revisão de literatura recente, levada a cabo pelos economistas Philipp Heimberger e Sebastien Gechert, analisou dezenas de estudos publicados que usam diferentes indicadores (alterações nas taxas nominais ou nas taxas efetivas), avaliam efeitos de curto e longo prazo e se baseiam em diferentes metodologias. Embora alguns apontem para um impacto positivo no crescimento, outros dizem que é nulo ou negativo. A conclusão é que, ao contrário que se costuma pressupor, não há evidência empírica que nos permita afirmar que as descidas do IRC promovem o crescimento económico.

Um dos argumentos que a direita utiliza é a ideia de que temos uma das taxas de IRC mais elevadas do conjunto de países da União Europeia, o que funcionaria como entrave ao investimento privado no país. No entanto, o que os dados disponíveis nos dizem é que não existe qualquer relação entre a taxa máxima de IRC e o nível de investimento do setor privado.

O investimento privado depende de muitos outros fatores: o dinamismo da procura em cada país, as expectativas de vendas por parte das empresas, os apoios públicos ao investimento empresarial, entre outros. Além disso, centrar o debate na taxa máxima de IRC, como a direita tem feito, é enganador, já que é difícil (para não dizer impossível) encontrar uma empresa que pague mesmo essa taxa de imposto.

A taxa geral de IRC é de 21% e, para uma empresa atingir a taxa máxima, teria de ser sujeita não apenas à derrama municipal, que varia entre 0% e 1,5% consoante o município em questão, como também à derrama estadual, que pode ir dos 3% aos 9% e que se aplica apenas a empresas que apresentem um rendimento coletável superior a €1,5 milhões, que perfazem... menos de 1% do tecido empresarial português.

A taxa efetiva de imposto, que corresponde ao que a maioria das empresas paga efetivamente depois de se considerarem os vários benefícios fiscais e deduções, corresponde a pouco mais de metade (18,9%), de acordo com a Autoridade Tributária.

Quando propõe a eliminação da derrama, a direita argumenta que a taxa máxima funciona como desincentivo ao investimento. No entanto, o que os dados da AT nos dizem é que algumas empresas de maior dimensão chegam a pagar menos do que as pequenas: nos últimos anos, as empresas com volume de negócios entre €2 milhões e €50 milhões pagaram taxas médias efetivas inferiores às que tinham volume de negócios inferiores a €2 milhões. Além disso, o que não falta em Portugal são isenções e benefícios fiscais para as empresas que decidam investir. Por fim, seria muito pouco credível que alguma empresa deixasse de investir apenas para não pagar uma taxa de imposto ligeiramente superior sobre ganhos que seriam muito superiores.

Impostos e imposturas

A promessa de redução de impostos tem como pressuposto a ideia de que a economia portuguesa tem uma carga fiscal excessiva, que impede o desenvolvimento do país e explica a emigração de jovens. Essa ideia não sobrevive ao confronto com os factos: na verdade, a carga fiscal em Portugal é inferior à média da União Europeia e encontra-se bastante abaixo de vários dos países com melhor qualidade de vida.

As sondagens dizem-nos que a instabilidade financeira e os problemas no acesso à habitação são os principais motivos de preocupação dos jovens. Ou seja, é a combinação de baixos salários, contratos precários e custos incomportáveis da habitação que torna difícil a vida para a maioria das pessoas no país e leva mais de metade dos jovens a admitir emigrar. É a esses problemas que os programas dos partidos têm de tentar dar resposta.

A AD promete baixar os impostos para os jovens através de uma redução das taxas de IRS aplicáveis em todos os escalões, exceto no último, para os trabalhadores até aos 35 anos. No entanto, a promessa é enganadora: mais de metade dos jovens ganha menos de €1000 por mês e ganharia pouco, sobretudo tendo em conta que já existe uma isenção de IRS para jovens nos primeiros cinco anos de trabalho. Mesmo para quem não é atualmente abrangido, a proposta da AD beneficia muito mais quem ganha mais. À semelhança da proposta de isentar de IRS os prémios de desempenho, o objetivo é minar a função redistributiva do imposto. A direita não está a falar para os jovens, mas sim para os mais ricos.

Há vida para além dos impostos

Quando se fala no impacto de medidas, os economistas referem-se ao “efeito multiplicador”: o impacto que uma determinada medida orçamental tem no rendimento total gerado na economia. É este conceito que está implícito na proposta da AD, como identificou o Tiago Santos neste blog. Embora haja vários fatores que influenciam o efeito multiplicador de cada medida, há vários estudos que procuram estimar o impacto de um aumento da despesa pública ou de uma descida de impostos.

Há dois aspetos para os quais estes estudos apontam. Por um lado, a maioria conclui que o multiplicador da despesa é superior a 1: por cada aumento de €1 na despesa (e, sobretudo, no investimento) do Estado, o PIB cresce mais do que €1, o que significa que os benefícios que o investimento gera para a economia não só compensam, como tendem a superar os seus custos iniciais. Por outro lado, o impacto estimado de um aumento da despesa ou do investimento público costuma ser superior ao de uma redução de impostos, o que nos indica que o dinheiro seria melhor empregue pelo Estado na promoção do investimento em áreas onde tem faltado.

Sobre habitação, a AD pede-nos confiança no mercado livre e na iniciativa privada. Para a compra da primeira casa, a coligação propõe a isenção de IMT e de imposto de selo e a implementação de garantias públicas para os empréstimos à habitação. Já para o arrendamento, PSD e CDS querem a “substituição de limitações administrativas de preços por subsidiação pública aos arrendatários em situações de vulnerabilidade/necessidade efetiva”.

Nenhuma destas medidas resolve o problema dos preços exorbitantes para a maioria das pessoas nas principais cidades e zonas envolventes. A isenção de impostos beneficia essencialmente a pequena percentagem de jovens que já tem capacidade para adquirir casas aos preços atuais. Pior: tanto no mercado de compra e venda como no de arrendamento, a direita quer que seja o Estado a subsidiar os lucros que os proprietários arrecadam com os preços e rendas altíssimas.

A isto junta-se a desregulação do setor e um “programa de Parcerias Público-Privadas para a construção e reabilitação em larga escala”, que, embora não se encontre especificado, facilmente traz à memória a experiência do país com PPPs em que os privados ganham à custa do Estado.

Não só não há nenhuma medida que intervenha no mercado no sentido de limitar a pressão especulativa a que tem sido sujeito por parte de fundos imobiliários e não-residentes endinheirados, como é assumida a defesa do alojamento local. A AD quer eliminar a contribuição extraordinária sobre o AL, eliminar a caducidade das licenças e rever os limites atualmente impostos, numa altura em que já há mais alojamentos locais por habitante em Lisboa do que em algumas das cidades com maior pressão turística do mundo, como Nova Iorque.

Já sobre o trabalho, por trás de frases ambíguas e pouco claras – “modernizar as regras para confrontar a segmentação do mercado e ajustar às transformações no mundo do trabalho” –, está o programa de sempre: reduzir a proteção laboral, facilitar despedimentos e aprofundar a precarização do trabalho. Foi isso que PSD e CDS levaram a cabo da última vez que governaram, durante o período da Troika, tornando Portugal num dos países da UE com maior peso dos contratos precários.

Na campanha eleitoral, a AD pede-nos para “acreditar na mudança”. Mas o programa que apresenta, elaborado em articulação com um conjunto de economistas de má memória para o país, é um misto de medidas de eficácia muito duvidosa com outras que representam essencialmente a continuidade do modelo de crescimento da última década, assente na monocultura do turismo e na bolha imobiliária. Nas maravilhas prometidas, só acredita quem quer.

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