Um pouco por todo o mundo, a política de quantitative easing (flexibilização quantitativa) inicialmente usada para impedir a falência generalizada do sistema financeiro privado dos EUA, foi depois mantida para combater os efeitos que se sucederam, nomeadamente, a baixa generalizada de preços, ou seja, a deflação e, depois, em 2020, para sustentar uma política orçamental que permitiu encerrar a economia mundial sem causar uma destruição e miséria que de outro modo seria inevitável.
De seguida, a partir de Setembro de 2022, aquela política voltou a ser intensivamente usada pelo Banco de Inglaterra para impedir a falência dos fundos privados de pensões do Reino Unido que, em consequência do aumento das taxas de juro, estavam a ser atingidos com enormes ‘margin calls’.
Logo a seguir, no outono de 2022, de forma mais encapotada, o quantitative easing foi usado pelo BCE para fazer face à volatilidade dos preços da energia.
E, finalmente, em Março de 2023, a Reserva Federal usou aquela política para impedir que o seu sistema financeiro, pressionado pela subida da taxa de juro, voltasse a desmoronar-se como um castelo de cartas.
Em consequência desta política monetária, ao comprarem obrigações, os bancos centrais trocaram um ativo (obrigações ou títulos de dívida pública) por liquidez e, ao fazê-lo, aumentaram a oferta de moeda. Simultaneamente, quando colocaram as obrigações compradas nos seus próprios balanços criaram procura adicional para aqueles ativos financeiros e o seu preço subiu; como o juro das obrigações varia de forma inversa à taxa de juro nestas implícita, os juros baixaram.
É a esta taxa de juro muito baixa, por vezes negativa, que uma liquidez de cerca de 5 biliões de euros foi emprestada à componente não governamental do sistema financeiro que opera na zona Euro.
Em consequência, em Junho passado o total das reservas não obrigatórias ao processo de concessão de crédito dos bancos privados atingia os 4,2 biliões de euros.
Entretanto, os preços subiram por perturbações no lado da oferta, em consequência dos gargalos logísticos impostos pela pandemia, do aproveitamento especulativo de empresas com poder de mercado e com a turbulência também especulativa no preço da energia no contexto da guerra Rússia-Ucrânia/EUA/UE.
Num quadro destes, a maioria dos bancos centrais, mas não o banco do Japão, decidiu, erradamente, como dizemos, pelo menos, desde Janeiro de 2022, e nunca nos cansámos de repetir, repetir e de repetir, combater este tipo de inflação de preços com aquele tipo de políticas que Keynes dizia matarem os pacientes, ou seja, com aumentos da taxa de juro.
Entretanto, estamos num contexto de superabundância de liquidez, o que baixa o preço de dinheiro - a taxa de juro. Para assegurar a eficácia da sua política monetária, como se diz em jargão banqueiro centralês, os bancos centrais decidiram receber aquela liquidez de volta remunerando estes depósitos de reservas não obrigatórias a uma taxa de juro próxima daquela que tinham como objetivo impor à economia.
Da última vez que fiz as contas, em Agosto passado, ainda a taxa de remuneração destes depósitos era 3,75% e não os 4% em que se encontra neste momento, assegurar a “eficácia da sua política monetária” estava a custar ao BCE 156,7 mil milhões de euros.
Uma despesa perfeitamente evitável, como tento explicar aqui, que resulta novamente da inação politicamente enviesada do BCE.
Em resultado de tudo isto, os bancos privados, a receber 4% por dinheiro que lhes custou 0,5% e, sentados em mais de 4 biliões de euros de reservas não obrigatórias, sem necessidade, por isso, de captar depósitos de empresas e famílias, pura e simplesmente não os remuneram. Já as famílias, que viram a prestação da sua hipoteca subir 80% em resultado de uma escusada e errada subida da taxa de juro, não beneficiam desta subida nos seus depósitos.
Consequentemente, os bancos privados alargaram a sua margem financeira para níveis politicamente ultrajantes, que se não observavam desde 2007, ano em que começaram a explodir por todo o planeta, apresentam crescimentos exponenciais na taxa de retorno do seu capital na ordem dos 56% face ao ano anterior e planeiam distribuir aos seus acionistas lucros na ordem de 120 mil milhões de euros, praticamente metade do PIB de Portugal, quase tanto, et pour cause, como o chorudo bónus concedido pelo BCE.
Especificamente em Portugal, os lucros agregados dos quatro maiores bancos privados a operar no país somaram 3.153 milhões de euros em 2023, num aumento de 81,9% face a 2022.
Razão tem a esquerda quando defende que estes lucros deviam ser usados para suportar o impacto do aumento na taxa de juro no crédito hipotecário e quando pede a redução da taxa de juro. Mal está a direita económica quando o argumento que usa para discordar é o questionado, à esquerda e à direita, esboroado e falido status quo.
Toda esta largueza para com a banca privada tem, contudo, potencialmente graves implicações financeiras para o balanço do BCE e dos bancos centrais nacionais que o compõem.
O BCE incorreu em perdas de 7,9 mil milhões de euros.
Expectáveis em todos os países da zona euro, os prejuízos serão particularmente elevados nos países do centro e norte da Europa onde financiar a dívida pública custa menos.
Os bancos centrais desses países, comprando por instrução do BCE, mas mantendo nos seus balanços, obrigações dos seus países, pagam o mesmo que os países periféricos pelo depósito das reservas não obrigatórias, mas recebem menos de juros obrigacionistas. Nesta situação possuir rating triplo A não trouxe bons resultados.
Na Alemanha, por exemplo, o Bundesbank acabou de anunciar prejuízos de 21,6 mil milhões de euros.
Na Holanda o banco central registou um resultado negativo de quase 3,5 mil milhões de euros.
Entre outros, o Banco de Portugal ainda não apresentou as contas de 2023, mas os prejuízos para este ano são esperados pela instituição como aqui está noticiado e aqui estudado numa abordagem demasiado influenciada por um dos economistas vende pátrias que integra o cortejo fúnebre da economia portuguesa, Ricardo Reis, que descura a melhor e mais útil a Portugal posição do Banco de Compensações Internacionais (BIS).
Se nada for mudado nesta enviesada política monetária, o BCE e os bancos centrais nacionais seus constituintes enfrentarão anos de pesadas perdas que acabarão por erodir o seu capital. No entanto, o que é um problema para qualquer outro agente económico não o é necessariamente para um banco central que, beneficiando de um privilégio outorgado pelo seu soberano, cria capital pela simples decisão política de o criar, carregando em teclas e preenchendo registos contabilísticos.
De facto, ao contrário do que decidem relevar Robert E. Hall e Ricardo Reis, entre outros, quando afirmam que, em caso de perdas do banco central não compensadas pelo orçamento de Estado, esse banco central pode tornar-se politicamente insolvente, a verdade é que, como afirma o BIS “perdas e os capitais próprios negativos não afetam diretamente a capacidade de os bancos centrais funcionarem eficazmente” pelo que “em tempos normais e em situações de crise, os bancos centrais devem ser avaliados quanto ao cumprimento dos seus mandatos” e “não em função das suas perdas ou ganhos financeiros”.
A este respeito, note-se, por exemplo, que a Reserva Federal americana, que anunciou ter registado em 2023 um prejuízo operacional recorde de cerca de 114 mil milhões de dólares, regista no seu balanço a perda como um ativo diferido e continua a operar com cobertura estatutária assumindo que “seus ganhos, lucros ou perdas, não afetam a capacidade de cumprir as suas responsabilidades como banco central da nação, que é conduzir a política monetária para atingir os seus objetivos estatutários de máximo emprego e preços estáveis”.
De modo muito semelhante, o BCE, nos termos do n.º 2 do artigo 33 do seu Estatuto, deve assumir que as “perdas não cobertas no final do ano são transportadas para o [seu] balanço (...), para serem compensadas com lucros futuros”.
No entanto, muitíssimo relevante, e ao contrário da Reserva Federal, as regras do Eurosistema criadas pelo ‘Relatório de Convergência de 2022”, produzido pelo BCE, estipulam também que tal não deve acontecer durante um período alargado: “Por conseguinte, a eventualidade de os fundos próprios líquidos de um BCN [Banco Central Nacional] se tornarem inferiores ao seu capital estatutário, ou mesmo negativos, exigiria que o respetivo Estado-Membro dotasse o BCN de um montante adequado de capital, pelo menos até ao nível do capital estatutário, num prazo razoável, de modo a respeitar o princípio da independência financeira”.
À luz desta alteração institucional promovida pelo BCE nas costas da opinião pública (quem ouviu falar deste assunto?), alteração esta com implicações orçamentais potencialmente muito graves, compreende-se que em setembro de 2022, o presidente do banco central holandês, Klaas Knot, tivesse alertado o seu governo para "perdas acumuladas que serão consideráveis" nos próximos anos e para que, assim sendo, "num caso extremo, poderá ser necessária uma contribuição de capital" dos contribuintes, afirmou.
E Centeno? Também falou com o governo de Portugal acerca deste assunto? É de todo lamentável, para dizer o menos, que matérias com implicações potencialmente tão graves na capacidade orçamental do Estado, sejam tratados sem o devido acompanhamento público.
Nesta fase, instituições como o FMI têm defendido a ideia de que, por agora, não será necessário recapitalizar os bancos centrais com dinheiro do orçamento de estado.
Em linha com este parecer, o banco central da Holanda acabou por anunciar que entrou em ‘acordo’ com o seu governo e que, pese embora, passe a reter lucros futuros para refazer o seu capital, não usará fundos do orçamento de Estado holandês para fazer face às perdas, política que diz pretender reavaliar conjuntamente com o seu Ministério das Finanças em 2028.
Na Alemanha, outro dos países cujo banco central mais perdas sofreu no ano passado, o Tribunal de Contas alemão afirmou que o Bundesbank poderia necessitar de um resgate do orçamento de Estado para cobrir os seus prejuízos. Mas o presidente do banco central, Joachim Nagel, disse que planeava contabilizar perdas como lucros futuros, como fez da última vez que teve perdas, na década de 1970.
Na mesma linha, o BCE fez saber que espera registar novas perdas depois de esgotar os restantes 6,6 mil milhões de euros de provisões para perdas e encargos que tinha no seu balanço, mas que quaisquer perdas seriam também reportadas contra lucros futuros, evitando qualquer necessidade de recapitalização.
Assim sendo, fruto desta política desastrosa de aumento da taxa de juros e da enviesada decisão de remunerar com ela todas as reservas excedentárias dos bancos privados, os lucros que eram remetidos pelos bancos centrais aos tesouros nacionais volatilizaram-se, estando os dos próximos anos comprometidos.
A banca privada lucrou, o orçamento público minguou.
Mas, ainda mais grave, e sustentada em investigação como a produzida por Ricardo Reis, a ameaça de sobrecarregar os orçamentos de Estado com os montantes perdidos pelos bancos centrais a favor dos bancos privados, continuará a pairar sobre as contas públicas e servirá como mais uma forma de condicionar a política orçamental de Estados cada vez menos soberanos.
No Reino Unido, já está a ser feito. O governo de direita usa, sem necessitar, o Tesouro para pagar o prejuízo do Banco de Inglaterra e, seguidamente, também usa o resultante défice do orçamento de Estado para afirmar que não há dinheiro e justificar os seus ataques ao Serviço Nacional de Saúde e às demais funções sociais do Estado.
Suponho que é a isto que o status quo chama independência dos bancos centrais; no próximo dia 10 é mesmo necessário votar à esquerda e, sobretudo, nos partidos que questionam este estado de coisas.
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