terça-feira, 20 de junho de 2023

Plena discricionariedade ou do simulacro de democracia em que vivemos

Com respaldo e de acordo com o estatuído no n.º 3 do artigo 284.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que cria a obrigação legal de o Banco Central Europeu (BCE) prestar contas ao Parlamento Europeu, Christine Lagarde veio há poucos dias anunciar que aquelas duas instituições estão a formalizar um “arranjo”.

O chamado Tratado de Maastricht entrou em vigor em 1992. Mais de 30 anos decorreram entre a decisão de criação da moeda única e esta formalização de um “arranjo” para a prestação de contas do banco central da zona euro. 

Uma circunstância que, por si só, me parece dispensar comentários.

Mas permito-me, contudo, dos tantos que me ocorrem, fazer um único, com um par de nuances, acerca do que se me afigura como fundamental: só uma instituição com plena discricionariedade estatutária se poderia dar ao luxo de tamanha e tão continuada informalidade.

O viés monetarista e neoliberal inscrito no mandato do BCE, deliberadamente omisso no que à obrigação de uma política monetária que assegure o máximo de emprego diz respeito (e que se restringe exclusivamente à obrigação de procurar estabilidade nos preços), não é a única, nem sequer a mais importante, das características que tornam esta instituição singular no tempo e no espaço.


É aquela ‘plena discricionariedade’, de que goza o BCE, que confere um carácter único a esta instituição. 

Na prática, nenhum outro banco central no mundo se encontra hierarquicamente acima do Estado do qual a sua legitimidade e poder decorrem. Não o Japão. Nos Estados Unidos da América, para outro exemplo, a Reserva Federal é estatutariamente independente, mas responde, sem qualquer margem de dúvida, ao poder político eleito. 

Recorde-se aliás, a este propósito, a muito ilustrativa afirmação do seu anterior governador, Ben Bernanke: “é claro que faremos tudo o que o Congresso nos diga para fazer”.
  
   

Em termos lógicos – termos a que não escapa a ação política –, julgo que pode dizer-se que, se numa constelação de instituições, uma delas goza de plena discricionariedade, no limite, em caso de descordo, todas as outras podem ser remetidas a um estatuto de nenhuma discricionariedade.

Na zona Euro estamos nisto. Os eleitores podem escolher quem quiserem, com o programa que for, para governar o seu Estado. Mas, no fim, quem prevalece é o BCE. E desobedecer-lhe, ou a intenção mais ou menos convicta e anunciada de o fazer, significa – como significou na Grécia de 2015 – ficar sem prestamista de primeiro recurso. 

Ou seja, significa perder o acesso às reservas que são criadas a partir do nada pelo BCE em regime de monopólio delegado pelos Estados membros da zona euro e sem as quais o sistema financeiro, pura e simplesmente, não funciona. 

Na minha perspectiva, é isto, sobretudo, primeiramente, que está a degradar de forma acelerada as democracias europeias. Os governos são eleitos para governar, mas só o podem fazer nos limites impostos pela necessidade de não contrariar a política dos tecnocratas não eleitos, e pretensamente independentes e neutrais, que dirigem o BCE. 

Um BCE que reconhece que foram os lucros – e não a remuneração do trabalho – que sustentaram a subida dos preços (mas que, ainda assim, combate ativamente uma subida de salários que acompanhe a inflação e a produtividade) é a primeira explicação para a maior descida do peso dos salários no PIB de todo o século. Não tanto, por isso, a má vontade, ou falta de ousadia, de um governo que até poderia beneficiar eleitoralmente se tivesse promovido uma redistribuição de rendimento de orientação contrária. 

Portanto, a meu ver, se, neste capítulo, o governo deve ser acusado de alguma coisa, essa coisa é, primeiramente, obediência.

E o mesmo, ou semelhante, se pode dizer para a impossibilidade, de facto, de decidir por uma TAP pública ou por um SNS, de facto, universal.

Trata-se de um quadro quase colonial. Graças às nossas elites, o Estado português deixou de merecer a designação de Estado porque, acima de si, está uma instituição que, em última análise, decide sobre a alocação de recursos no nosso país, independentemente da vontade dos eleitores portugueses

Com sede em Frankfurt, o que temos, pois, especialmente na periferia da zona euro, é um distópico arranjo político-institucional em que os governos são directa e indirectamente constrangidos e tutelados, cumprindo, se necessário for, programas contrários aos que foram sufragados em eleições, num elaborado e autêntico simulacro de democracia.

Até quando?

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