«António Costa, vai pró c…». No púlpito de uma Assembleia da República vazia, Tiago Paiva terminava assim, no passado dia 26 de Abril, o seu simulacro de discurso parlamentar. Aproveitou a oportunidade para criticar as tímidas e tardias intenções governamentais de limitar o chamado alojamento local. Sabemos que este não aloja e não é local. A assistir estava pessoal político da Iniciativa Liberal (IL), partido responsável pelo convite, em particular o mediaticamente insuflado deputado Bernardo Blanco, cicerone do visitante. O espectáculo degradante, que incluiu comentários racistas e capacitistas, foi filmado. O vídeo tornou-se viral durante o típico par de horas. É como se nada se enraizasse.
Resistamos a este eterno presente e perguntemos: mas quem é, afinal, Tiago Paiva? É um mal-educado influenciador (influencer, no inevitável inglês), com um canal no Youtube, aparentemente seguido por mais de cem mil pessoas, e com uma conta no Instagram, aparentemente seguida por quase trezentas mil. Muitas vezes em cuecas, exibe o seu narcisismo boçal, enquanto promove activos financeiros tóxicos, o consumo conspícuo de bens ou o machismo mais desbragado, chegando, naturalmente, a elogiar André Ventura. Obrigada a um pedido público de desculpas no Parlamento, a IL justificou sonsamente esta promoção de um homem de 34 anos, aparentemente rico e com interesses imobiliários, pela necessidade de aproximar a juventude da política. Retire-se o supérfluo e veja-se o essencial, o que está mais inscrito nos corpos e nas mentes: a classe conta e de que maneira.
Ironicamente, numa sociedade do espectáculo, que é como se fosse «uma bolha algorítmica e moral que se autoalimenta de casos e casinhos» [Luísa Semedo], de resto com o prestimoso contributo governamental, a IL tinha, nos dias anteriores a este vídeo ser conhecido, criticado o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva. Num aparte privado, que foi filmado sem autorização, este teria supostamente criticado a falta de maturidade deste partido, aquando da visita do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 25 de Abril. IL e Chega criticaram a sessão na Assembleia da República, em linha com comuns tendências bolsonaristas, mais abertas no Chega, mas igualmente presentes nestes liberais, ou não tivessem os Chicago Boys brasileiros tido posições de relevo na presidência do militar na reserva. O líder da IL, Rui Rocha, chegou mesmo a dar uma pungente conferência de imprensa no Parlamento sobre a designada falta de civismo de Santos Silva.
Antes de ser líder da IL, Rocha era um conhecido trol, palavra de origem escandinava que significa monstro, usada precisamente para descrever comportamentos incivilizados nas redes sociais que estes liberais dominam, em particular o Twitter. De facto, estão a construir uma infra-estrutura de propaganda profissional e bem financiada nas redes sociais, com declinações, por exemplo, no seu bem conectado centro de luta ideológica, o +Liberdade. Foram várias as figuras de Estado insultadas nos termos mais rudes por Rui Rocha, no Twitter, num estilo de intimidação típico de quem votou ao lado do Chega contra uma proposta, de resto aprovada por todos os outros partidos, com vista a criar um grupo de trabalho para combater os discursos de ódio na Internet. A cultura do narcisismo atomizado, do individualismo possessivo, estruturalmente favorecida por meios que são mais de meio caminho andado para certas mensagens, faz o resto.
Há aqui um padrão, naturalmente com diferentes expressões, nestes dois partidos. E há método e racionalidade nas suas formas de proceder, numa espécie de divisão de trabalho entre IL e Chega, parte de uma comum radicalização das culturas das direitas. Esta vai desde a rua, que procuram começar a disputar à esquerda, ainda sem sucesso, até às salas alcatifadas de grandes escritórios de advogados e de certas empresas, onde ninguém os trava. Com um programa pleno de convergências, colocam-nos num plano inclinado de degradação institucional, que já vem pelo menos do tempo de Pedro Passos Coelho, por quem, afinal, esperam: a economia política e a política económica são decisivas neste plano, tornado cada vez mais inclinado pelas políticas sociais-liberais de austeridade do actual executivo, que governa com maioria política absoluta para uma minoria social. No fundo, estamos perante duas expressões políticas e organizativas das fracções mais reaccionárias do capital, apostadas em terminar o trabalho do governo da Troika.
O resto do artigo pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de junho.
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