O debate sobre a gestão da TAP tem gerado perplexidades várias. A primeira decorre de se falar apenas dos problemas e erros da gestão pública e nunca do que se passou na gestão privada e sobretudo no processo de privatização, absolutamente ilegítimo do ponto de vista democrático e danoso do ponto de vista do interesse público.
A segunda, a mais importante, é a de saber qual será o futuro da TAP. Desse ponto de vista, não deixa de ser muito curiosa a discrição do governo sobre os resultados apresentados pela TAP em 2022 (66 milhões de lucro e 288 milhões de resultado operacional), pela classificação atribuída pela Airline Ratings ou pelos dados relativos às chegadas a Portugal, em que Portugal recuperou e ultrapassou os números pré-pandemia antes de todos os outros países do sul da Europa.
Quando o ex-ministro Pedro Nuno Santos referiu alguns destes factos na Comissão de Economia, um deputado da Iniciativa Liberal considerou curioso que um socialista invocasse os lucros para defender a gestão de uma empresa pública. Mais curioso ainda é ouvir um liberal insinuar que o lucro não é o mais importante, até porque já várias vezes argumentaram o contrário. Incoerência? Não. A posição dos liberais é simples e coerente: privatizar tudo.
Infelizmente, essa é também a posição do governo. A obsessão com a privatização contra todas as evidências é uma escolha política de fundo. O PS tem um currículo de privatizações tão ou mais recheado que o do PSD. Décadas de destruição do setor empresarial do Estado e da capacidade de conduzir políticas estratégicas nos mais variados setores e promover centros da tal inovação e qualificação de que António Costa está sempre a falar.
E as evidências são bem mais e mais importantes do que os resultados líquidos da TAP. Nisso, o deputado da Iniciativa Liberal teve razão sem querer. Bem mais importante e significativo do que um lucro (ou prejuízo) de 66 milhões é o papel que a TAP tem na economia portuguesa. Um único indicador chega para mostrar porque é assim.
Em 2022, A TAP faturou cerca, de 3,48 mil milhões. Se a percentagem de faturação a não-residentes se tiver mantido próxima dos 80%, quase 3 mil milhões serão exportações. Mas independentemente desta distribuição, se a empresa for absorvida por uma empresa estrangeira, tal decisão provocará uma degradação automática das Balança Corrente desta magnitude. As exportações deixarão de o ser e as compras domésticas passarão a ser importações.
Ora, estamos a falar de um impacto mais de 50 vezes superior aos lucros da TAP. Uma parte substancial desse impacto, se não todo, irá necessariamente refletir-se nas contas públicas. Claro que a empresa pode manter-se e não ser absorvida mas, depois de uma privatização, não há como o garantir a prazo.
Além disso, o impacto da TAP na economia portuguesa é simplesmente colossal. Antes da pandemia, em 2019, a TAP tinha compras a fornecedores nacionais da ordem dos 1300 milhões e estimava-se que seria responsável por cerca de 150 mil empregos, entre diretos e indiretos. Só a receita fiscal da atividade da TAP e das atividades indiretas é muito mais significativa do que o seu lucro.
Há ainda que considerar o impacto que teria o desaparecimento de uma companhia nacional de aviação no papel de Portugal nas rotas internacionais. Não está apenas em causa uma concepção ultraliberal sobre o papel dos Estado na economia. Está também em causa um projeto de desenvolvimento para a nossa economia atávico e miserabilista. Um projeto consistente com uma elite económica e política medíocre que acha que, não apenas o Estado, mas todo o país são incapazes de ter capacidade industrial própria e que o melhor mesmo é ser tudo comprado por quem saiba. E uma elite intelectual que passa a vida a falar da aposta nos bens e serviços transacionáveis, a não ser quando é para tomar as decisões que contam.
Finalmente, há ainda a considerar a questão do serviço público da TAP. A TAP tem a responsabilidade de assegurar uma cobertura nacional, o que pode implicar a manutenção de voos e rotas deficitárias. Ter uma empresa pública pode permitir o financiamento do serviço público através das rotas mais rentáveis da companhia ou (melhor e mais transparente) contratualizar esse serviço entre Estado e a empresa. Sem empresa pública, o Estado terá de o contratualizar com a compradora da TAP, em posição de total dependência. É como gostam os nossos liberais, Governo pelos vistos incluído. Ou então acaba-se com o serviço público por completo.
Claro que se a TAP for privatizada, há-de haver um qualquer acordo parassocial. Há sempre um acordo parassocial, não é? O Governo vai assegurar que os empregos, os impostos, as exportações, as compras, o hub, etc., tudo isso vai ser integralmente garantido. A função de tal acordo será essencialmente a de adiar as consequências deste disparate monumental, de forma a que caiam em cima de outro governo qualquer.
Até lá, não há inevitabilidades. Foi recentemente publicada uma carta aberta de oposição à venda da empresa. Não está em causa que a TAP estabeleça parcerias com outras empresas. Vender a TAP não é fazer parceria nenhuma. É abdicar de um recurso estratégico para o país. Mais um.
Publicado no Setenta e Quatro.
2 comentários:
Muito bem.
Pois talvez não fosse mau vender a TAP à Iberia. Seriam várias as vantagens:
- Acabava a conversa do novo aeroporto. Barajas es muy bueno! Os do Porto deixavam de ter de vir a Lisboa. Madrid é muito melhor e há sempre a Ryanair e o aeroporto de Vigo;
- Os de Coimbra tinham a sua vingança: aeroporto a sul do Tejo, nunca. Podiam construir um aeródromo, lá em cima, junto à torre da universidade. A faculdade de direito servia para o check-in e o bedel para a segurança;
- Lisboa ficaria igual a Barcelona, um paraíso da Vueling, companhia de segunda linha da Iberia, de fama conhecida e reconhecida.
Venha a Iberia!
Enviar um comentário