quinta-feira, 15 de junho de 2023

Berlusconomia: porque é que a direita não quer falar de Itália?

 

Desde o falecimento de Silvio Berlusconi, ex-primeiro-ministro de Itália, o legado da sua governação tem sido alvo de debate. Além das ligações ao crime organizado, do registo misógino e racista e da normalização da extrema-direita, sobre os quais o Daniel Oliveira já escreveu aqui, vale a pena olhar para as suas reformas económicas. No programa Tudo é Economia, da RTP 3, Ricardo Arroja desvalorizou a experiência italiana, dizendo que “não vejo que possa ser feito de Itália um caso de estudo e muito menos que se possam retirar ilações da política que foi seguida”. Mas a verdade é que a economia italiana é um excelente caso de estudo para discussões sobre política económica.

Berlusconi concorreu pela primeira vez às eleições em 1993, num período especialmente conturbado da vida política italiana. Nos seus discursos, prometia colocar Itália a crescer e o programa era o que hoje conhecemos bem: reduzir o peso do Estado, privatizar a maioria das empresas públicas, liberalizar o mercado de trabalho e, claro, baixar os impostos a toda a gente. É certo que esteve pouco tempo no primeiro governo, mas a política italiana não seria a mesma depois disso. Voltou a ser primeiro-ministro mais duas vezes – entre 2001 e 2006 e entre 2008 e 2011 – e o sucesso eleitoral fez com que o essencial do programa liberalizador da direita fosse assimilado também pelo centro-esquerda.

Entre 1994 e 2011, a Itália levou a cabo um dos maiores programas de privatizações de toda a OCDE, vendendo participações públicas em mais de 75 grandes empresas, desde as telecomunicações às autoestradas e ao setor dos transportes, passando pelo sistema bancário, onde a participação do Estado passou de 70% para apenas 10%. A taxa de imposto sobre as empresas foi sucessivamente reduzida desde esse período, sendo hoje cerca de metade da que era aplicada nos anos 90, e o governo de Berlusconi aprovou generosos perdões fiscais para as grandes empresas. As “reformas estruturais” também se estenderam ao mercado de trabalho, que foi alvo de várias vagas de liberalização para reduzir a proteção laboral e facilitar a contratação temporária (o peso do emprego temporário duplicou entre 1990 e 2019 e, entre os jovens dos 15 aos 29 anos, atinge quase os 50%).

Além disso, o país levou a cabo um enorme esforço de consolidação orçamental e restrição da despesa do Estado. Ao contrário dos estereótipos sobre o país “despesista” e “indisciplinado”, a verdade é que a Itália foi a campeã das contas certas no processo de integração europeia: foi o único país da UE que registou sucessivos excedentes orçamentais primários, tanto antes da crise financeira (saldos de 3%, em média, entre 1995 e 2008) como até à pandemia (em média, 1,3% entre 2009 e 2019).

Apesar de seguir as recomendações das principais instituições internacionais, os resultados foram desastrosos: a Itália foi dos países europeus que menos cresceram desde a adesão ao Euro, os salários reais estagnaram e a dívida pública continua a ser uma das mais elevadas da Europa. Pelo meio, a Itália foi um dos países europeus que mais perdeu produção industrial. Décadas de austeridade sufocaram o consumo interno e o investimento, restringiram o desenvolvimento da estrutura produtiva do país e não geraram o crescimento prometido.

Seria tentador culpar inteiramente os governos italianos pela estagnação crónica do país. Mas a verdade é que, como notou o economista Servaas Storm, a Itália viveu um período de convergência com países como a França ou a Alemanha entre a década de 1960 e a introdução do Tratado de Maastricht, em 1992. As causas da estagnação após esse período são mais complexas: incluem o processo de adesão ao Euro, a perda de instrumentos de política monetária, a liberalização dos fluxos de capitais e a integração no mercado único sem uma estrutura produtiva suficientemente robusta, o que deixou o país exposto a choques como a entrada da China na OMC ou dos países de Leste na União Europeia, que competiam com as suas exportações e praticavam preços muito mais baixos.

Tudo isto é muito semelhante ao que se passou em Portugal. E é por isso que vale a pena aprender com a experiência italiana: a estratégia liberal de privatizações, desregulação laboral e redução de impostos falhou redondamente e não promoveu o crescimento nem a prosperidade para a maioria das pessoas no país, precisamente porque não atua sobre nenhum dos problemas estruturais que a economia italiana (e as restantes do Sul da Europa) enfrentam. A única coisa que oferece é uma corrida para o fundo – nos impostos, no financiamento dos serviços públicos e nos “custos do trabalho” – que, em vez de trazer prosperidade, agrava as desigualdades. A experiência italiana é útil para avaliar um outro caso de estudo: o dos que hoje, em Itália, Portugal e não só, apresentam como soluções novas as medidas que foram sistematicamente implementadas – e que falharam – nos últimos trinta anos.

1 comentário:

jose duarte disse...

Nunca vai ser demais chamar os "bois pelos nomes":como é que é possível continuar a falar dos "grandes resultados económicos"das intervenções do BCE nas economia, ditas periféricas e "gastadoras..?? troikas model "
Quais equilíbrios macroeconómicos qual carapuça, o que tivemos e vamos continuar a ter é um modelo de "crescimento" baseado em estruturas económicas fracas, fornecedoras de serviços baratos, exemplo claro: industria do turismo (olhemos para Portugal) que se adapta bem ao modelo de mão de obra barata e simpática.
A outra industria vai ser residual.Tudo bons rapazes e amigos.....A começar em Berlusconi e a continuar em Passos Coelho e quejandos.