“O orçamento de 36 triliões de ienes (317 mil milhões de dólares) destina fundos para combater a COVID-19, incluindo para assegurar vacinas e medicamentos, ao mesmo tempo que também inclui pagamentos em dinheiro para famílias com crianças e fundos para a promoção do turismo”.
Como o João Rodrigues já assinalou, o Japão incorre sistematicamente, há pelo menos 20 anos, em défices no setor público de valor médio acima dos 5 % do PIB, acumulou uma dívida pública bruta de 270% do PIB e está a pagar 0% de juros pelo refinanciamento de dívida antiga e pela emissão de nova.
Neste contexto, lendo acerca desta opção de política orçamental e monetária de orientação fortemente expansionista, uma pessoa é levada a pensar que o parlamento japonês não recebeu, ou ignorou, o memorando acerca da ausência de espaço orçamental.
Memorando que não pode ter falhado a Centeno dado que este, enquanto Governador do Banco que não é de Portugal, mas de Frankfurt, defendendo a (alegada) independência do BCE enquanto continua a interferir nas políticas públicas nacionais, veio recentemente sentenciar que Portugal não tem mais de dois a três anos para "reduzir o endividamento para um nível sustentável". E concretiza: "Prevemos que a dívida pública em 2024 esteja em níveis semelhantes a 2019", ou seja, na casa dos 116,6% do PIB. E considerou que essa é uma "condição sine qua non para que a dívida pública permaneça sustentável".
O reputado economista fez as contas: - quais 270%, quais quê! 116,6% é condição sine qua non e a partir daqui é a insustentabilidade, garante-nos. Pelo menos, o patamar subiu face à conversa fraudulenta dos 90%, a partir dos quais se deixava de crescer.
Já o Estado japonês parece pautar o conjunto de políticas orçamentais e monetárias por um princípio mais prosaico, o princípio das Finanças Funcionais: o défice orçamental é o que tiver de ser para assegurar que o setor privado está permanentemente em situação de superávite, que existe na economia procura agregada suficiente para assegurar pleno emprego e estabilidade de preços e, para concretizar este programa, usando a sua prerrogativa de soberano, no que a taxas de juro diz respeito, ao invés de se sujeitar à disciplina dos mercados, o Estado sujeita os mercados à sua disciplina.
Ao contrário, na zona euro, embora a iminência da implosão e a necessidade de combater a crise pandémica, também tenham imposto, a partir de 2012, mas sobretudo a partir de 2015, o uso articulado de política orçamental e monetária e a intervenção política nas taxas de juro, criando-se assim espaço para défices e dívidas antes considerados insustentáveis, estas políticas são consideradas indesejáveis e por isso transitórias.
Porquê?
Pouco depois de, em 2015, o BCE ter iniciado a sua política de flexibilização quantitativa de compra de grandes quantidades de obrigações do Estado Joachim Nagel, o recém-nomeado governador do Bundesbank, advertiu numa entrevista ao jornal alemão Börsen-Zeitung, sobre o “perigo chave” de um “entrelaçamento entre política monetária e política orçamental”. Ecoando preocupações expressas frequentemente por Weidmann durante a sua década ao leme do Bundesbank, Nagel afirmou: “Existe o risco de que a consolidação orçamental necessária em alguns países do euro seja posta em causa” (link, aqui).
Na última visita que fez ao nosso país, o golpista que atende pelo nome de Poul Thomsen, o homem do FMI que liderou a intervenção externa no nosso país em 2011 e que não tem pejo em afirmar que a troika “claramente” não tinha “legitimidade política” para a sua atuação, veio deixar preto no branco os novos termos da chantagem subordinante: “Quando a situação da pandemia normalizar, não vai ser politicamente aceitável continuar a ter o Banco Central Europeu a apoiar os países de dívida elevada”.
E nós aceitamos isto, como em 2012 aceitámos taxas de 16%, mas sendo agora claro para quem quiser ver que a taxa de juro é uma variável de política e não função mercantil do volume da dívida. “Haverá uma tensão norte-sul”, chantageia Thomsen.
E aqui chegamos. Cortar na despesa para fazer recuar a dívida pública para 116,6% do PIB é então "condição sine qua non” para evitar a tal “tensão norte-sul”. E parece que, para o mesmo efeito, ainda há reformas no mercado de trabalho por fazer.
É necessário manter uma política monetária aquém das suas possibilidades para que reduzir a despesa pública se torne inevitável, assentimos. Tudo claro: a ‘consolidação’ orçamental não é, afinal, o sacrossanto fim, mas antes o meio para a impor a reforma das economias numa lógica conforme ao ‘mercado’.
Corta na despesa pública com saúde, corta na despesa pública com ensino, corta no investimento público, corta nos apoios sociais e cria, consequentemente, espaço para a saúde privada, para o ensino privado, para as PPP’s e para os salários de miséria que garantem, simultaneamente, mão de obra barata ao centro/norte da europa e a repressão da procura interna necessária, nesta integração disfuncional, ao equilíbrio da balança de pagamentos. E mais umas centenas de milhar de pobres, claro. Não bastaram os duzentos mil adicionais, obra e graça de uma das políticas orçamentais menos expansionistas no tempo da pandemia.
É uma transformação estrutural que não respeita nem soberania nem democracia? O país não cresce? Não converge? Os serviços públicos soçobram? Não há oportunidades de emprego decentemente remuneradas? Não se investe na transformação da estrutura produtiva tornando a economia capaz de crescer sem degradar as contas externas? Não se investe no combate às alterações climáticas? Aprofunda-se todos os dias o estatuto de semicolónia do retângulo onde vivemos? É assim a vida, dizem-nos. Consolida, filho, consolida.
Sem comentários:
Enviar um comentário