quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Da perversa competitividade fiscal

"Se se mudam para Portugal porque gostam de fado ou vinho verde ou porque adoram o clima, então devem poder fazê-lo. Mas se se mudam só para evitar o pagamento de impostos, então acho que devem olhar ao espelho e pensar sobre se querem mesmo tomar essa decisão", disse a então ministra das finanças suecas, Magdalena Andersson, em 2017.


Geralmente, quando se fala em competitividade fiscal, o que está em causa é tornar a economia atraente para multinacionais. Isto passa pela concessão de benefícios fiscais a empresas ou pela redução da sua taxa de tributação com a pretensão de atrair Investimento Direto Estrangeiro (IDE). As consequências destas escolhas estão bem documentadas, verificando-se o que se chama a “corrida para o fundo” das taxas de IRC e perda de receita fiscal. No entanto, a discussão internacional sobre os danos associados a práticas de competitividade fiscal entre países começa a olhar também para outro campo da tributação - o rendimento pessoal. Recentemente, o Observatório Fiscal da União Europeia lançou um estudo em que analisa as novas formas de concorrência fiscal. Regista que o número de regimes especiais de tributação sobre o rendimento de pessoas singulares aumentou substancialmente: em 1995 eram apenas 5 e atualmente contam-se 28.

O caso português, conhecido na Europa como o “El dorado” dos reformados, merece ser discutido. Foi criado em 2009 o regime especial para residentes não habituais (RNH) em sede de IRS, visto na altura como inovador no sistema fiscal português e bastante competitivo face ao que se fazia no resto da Europa. Foi ainda reformulado em 2012 para que se simplificasse o processo burocrático, passando em 2014 a ter um aumento na sua adesão. O regime abrange dois tipos de beneficiários: trabalhadores de elevado valor acrescentado, aos quais se aplica uma taxa de IRS de 20% para os rendimentos obtidos em Portugal, independentemente do seu nível salarial; e pensionistas que recebam pensões no estrangeiro, as quais são tributadas desde 2020 a 10% por pressão externa, sendo antes a 0%.

Para além do custo que lhe está associado – em 2019, estimava-se corresponder a cerca de 620 milhões de euros e contavam-se 27 mil beneficiários –, este regime tem de ser discutido e pensado pelo menos por três motivos. Primeiro, gera atritos sociais que não são negligenciáveis. A atual desigualdade no acesso à habitação é também explicada por este tipo de benefícios fiscais. A Ana Cordeiro Santos explica muito bem como a atual crise na habitação em Portugal foi potenciada por um boom no crédito nos anos 90, e mais tarde pela atração de investimento imobiliário estrangeiro. Entre 2013 e 2020, os preços reais da habitação cresceram 51%, enquanto os salários cresceram apenas 4%. Para além disso, é difícil justificar porque é que um pensionista estrangeiro tem uma situação tributária mais leve do que um pensionista português. Por exemplo, uma pensão anual de 15 mil euros de um residente é tributada a 11,3%, enquanto uma pensão de 48 mil euros de um residente não habitual o é a 10%. Este tipo de tratamento diferenciado tem o potencial de alimentar sentimentos xenófobos.

Segundo, e especialmente tendo em conta o primeiro ponto, a racionalidade económica subjacente a este tipo de regimes é discutível. O argumento de baixar impostos a empresas para atrair IDE, ou seja, investimento que seja produtivo, é aliciante, embora empiricamente discutível. A ideia é que se aumente a produção, ou pelo menos que haja uma especialização num determinado segmento de maior valor acrescentado, que se crie emprego, que se promova desenvolvimento tecnológico, etc. No entanto, quanto se tenta atrair indivíduos estrangeiros, seja pelo seu maior poder de compra ou por terem elevadas qualificações, o objetivo é bem mais modesto. Primeiro, argumentar que se dinamiza a economia pelo consumo mais ou menos ostentatório de um grupo restrito de pessoas que estão em Portugal durante um período limitado, para além de pouco realista, é potencialmente perigoso porque não há um investimento que aumente a capacidade produtiva, mas antes uma aposta em serviços assentes no turismo, geralmente mal remunerados e estruturalmente pouco produtivos. A pandemia mostrou o quão frágil é uma economia assim organizada. Depois, não é claro que o que eventualmente seja arrecadado em receitas de IVA, IMT e IMI cubra os custos associados, nem que casos de potencial abuso sejam travados. Por último, a atração de trabalho qualificado estrangeiro, para além de paradoxal face à emigração de jovens portugueses, mostrou-se ineficiente - em 2019 apenas 8% dos beneficiários caíam nesta categoria.

E daqui parto para o meu terceiro e último ponto. Quando se lê o estudo do Observatório Fiscal da UE há outro padrão que salta à vista – são os países do Sul europeu que têm os regimes fiscais mais agressivos na área da tributação pessoal. Se o sol e a boa comida podem ser pontos de atração em comum, será a carência de outro tipo de fatores estruturais que explica esta escolha. Os países europeus que ficaram conhecidos como paraísos fiscais capazes de atrair multinacionais – como a Irlanda, a Holanda ou o Luxemburgo – tinham à partida padrões de migração que davam primazia à língua inglesa, bons níveis de formação profissional, boas ligações por redes de transportes, entre outros fatores. Arrisco-me a dizer que a escolha de competir por indivíduos avulso em vez de empresas revela também a falácia da competitividade fiscal – o investimento produtivo não é atraído simplesmente por uma redução dos impostos.

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