terça-feira, 14 de dezembro de 2021

"Não há dinheiro"

 "Infelizmente, não será a compra de 117 comboios que levará Portugal a avançar como precisa na ferrovia. Para as ambições de Pedro Nuno no sector, faz falta dinheiro, muito dinheiro. É nesta lacuna que entra a TAP. Os três ou quatro mil milhões de euros que vai gastar na TAP davam, por exemplo, para fazer uma linha nova do Porto a Zamora. Gastando-os na transportadora, terá de esperar pelo rateio de dinheiros da Europa – caso permaneça na pasta, claro. Ele dirá que o interesse público exige empenho em todas as frentes. O problema não está na convicção. Está na penúria do orçamento que não dá para tudo. Faz-lhe falta um dilema." (Manuel Carvalho, Público, 14/12/2021)

O que é interessante neste raciocínio é a assunção clara e peremptória, impregnada daquela ideia - falsa - celebrizada  em finais de 2011, quando Vítor Gaspar terá dito ao ministro da Economia Álvaro Santos Pereira em pleno Conselho de Ministros do Governo Passos Coelho/Paulo Portas: "Não há dinheiro - Qual das três palavras é que não percebeu?"

Curiosamente, a mesma expressão seria usada por diversos membros do mesmo governo, em ocasiões diversas, para justificar cortes orçamentais e cortes na provisão pública de serviços públicos. Foi o caso do então secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas quando justificou corte de "despesas desnecessárias".  Foi o caso do então secretário de Estado do Orçamento Luís Morais Sarmento - actualmente director adjunto do departamento de estatística do Banco de Portugal - quando usou a mesma expressão em Abril de 2013. Discutia-se no Parlamento um despacho que, após mais um chumbo do Tribunal Constitucional a medidas governamentais, congelou toda a nova despesa pública, levando o deputado comunista Honório Novo a propor que se deixasse derrapar o défice orçamental.  

Mas seria mais ou menos usada, já com menor ênfase e entusiasmo, por António Costa (minuto 33'40''), em 2018, no debate parlamentar sobre o tempo de contagem de serviço dos professores. Ou pelo então ministro das Finanças Mário Centeno - actual governador do Banco de Portugal - que, ora alegava não haver dinheiro para umas coisas, para passar a dizer que já o havia para outras. 

O interessante é que, como já o escreveu muitas vezes o Paulo Coimbra neste blogue, a crise pandémica tornou claro que, de repente, já foi possível pôr de lado esse adágio, libertando-se efetivamente todos os recursos necessários para fazer face aos efeitos da doença, sem que se tornassem visíveis os malefícios anunciados pela teoria liberal dominante, em caso de quebra da regra de ouro que fixa a impossibilidade de uma emissão monetária para financiar gastos orçamentais e que todo o recurso orçamental dever ser financiado por mercados financeiros. 

Há dinheiro. Não há é a vontade de conceder aos povos os instrumentos que atenuem o poder de quem detém presentemente a dívida dos Estados e que os torna, assim, menos soberanos. Não há, pois, escravo maior do que aquele que não se quer libertar.  

3 comentários:

Anónimo disse...

Há 30 anos que não há dinheiro em Portugal, não há dinheiro para o bem estar social dos que têm menos porque há e sempre houve para os de cima, mentem descaradamente para não terem de afirmar as suas verdadeiras opções.

Jaime Santos disse...

João Ramos de Almeida, o ​valor do dinheiro reflete uma escassez inerente na Economia que nenhum voluntarismo de Esquerda é capaz de suprir.

https://www.theguardian.com/commentisfree/2021/dec/10/spending-without-taxing-now-were-all-guinea-pigs-in-an-endless-money-experiment

Mas pelo menos que a Esquerda seja capaz de assumir quais os sacrifícios necessários para a recuperação dessa soberania que depois, pelas razões expostas, não lhe vai servir para nada. É o mínimo que deve aos eleitores. Por favor, ponham as cartas na mesa.

O registo histórico desse voluntarismo não é exatamente brilhante. Não é como se o João Ramos de Almeida disponha de bons exemplos para nos contrapor. Chamar aos outros escravos porque têm memória e não alinham com a vossa visão revela somente azedume, e um azedume impotente, como é aliás habitual...

Na batalha entre a razão e a vontade, a razão triunfa sempre no final. Nem que seja sobre ruínas...

João Ramos de Almeida disse...

Caro anónimo,
É bem verdade. Mesmo com as limitações inerentes ao actual quadro teórico liberal dominante há pelo menos 30 anos, mesmo assim encontra-se sempre mais dinheiro para cumprir certos fins - que talvez sejam bem vistos no edifício institucional dominante da UE - do que para outros fins, nomeadamente sociais - esses não são bem vistos por esse mesmo edifício institucional dominante na UE. E essa parte é, em geral - tem razão - omitida no discurso e na informação prestada ao público.

Era como dizia Varoufakis: há os insiders e os outsiders. Quem vier "cá para fora" contar o que se passa "lá dentro", sabe que não terá um final feliz, politicamente.

E isto abre a deixa para ...

Caro Jaime,
A UE não pode ser como uma organização criminosa em que só se entra e nunca se pode sair com vida. Tem razão quando pede à esquerda que exponha com clareza todos os custos e sacrifícios de uma tomada de decisão que salvaguarde a soberania do país. E essa falta de visão conjunta faz inclusivamente falta para que a esquerda possa ter - e passar aos outros - uma visão para o país que não seja esta quase estagnação.

Mas recordo-lhe que o que me pede - e à esquerda - é algo que nunca pediu a quem defende o contrário.

Nunca se pede a quem faz parte deste corpo teórico dominante que contabilize todos os custos sociais da opção de "obeceder" a esta tal "organização criminosa" que impede um país - diria mesmo um conjunto de países - de respirar condignamente ou pelo menos de poder decidir o seu destino político, sem ter umas aves agoeirentas sobre o ombro a dizer "não podes fazer isto", "não vás por aí que te lixamos", "não dês mais direitos aos trabalhadores", "olha que te cortamos os fundos", "não podes reestruturar o teu banco público senão estás feito", "não podes reestruturar a tua companhia aérea sem despedir senão vais ver..."

Sabe, se quer mesmo que o debate seja limpo, então contabilizemos tudo. E vamos ver quem ganha. Mas duvido muito que a direita que gosta deste enquadramento - porque é o enquadramento que salvaguarda o status quo da desigualdade e a concentração da riqueza e da priopriedade - aceite esse desafio com lisura, e queira fazer essas contas: porque essa direita liberal apenas quer deter o poder de controlar os países endividados e colocá-los a financiar o centro europeu. Para quê alterar um sistema que tanto lhes dá?