quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Num feriado reconquistado à troika

O artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa declara que “Portugal é uma República soberana”, sendo que o artigo 2.º especifica que a “República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular”. Não é por acaso que soberania e poder do povo estão imbricados na nossa ordem constitucional democrática. 

Implicando um povo num território delimitado por fronteiras, a soberania é um feixe de poderes que permitem que um Estado seja independente, tendo autoridade para deliberar sobre as políticas entendidas como necessárias e para implementá-las. Sem soberania, não há escolha nem liberdade coletivas. Trata-se de uma condição necessária para a democracia, para o poder dos de baixo e, por isso, foi e continua a ser uma ideia potencialmente subversiva. A perda de soberania, pelo contrário, é uma aposta reacionária, ameaçando a democracia e os interesses das classes populares. 

As elites do poder em Portugal têm permitido que a soberania popular seja posta em causa por processos de integração supranacional, associados à globalização, em geral, e à integração europeia, a sua expressão particularmente intensa no continente, em particular. 

De facto, o país abdicou dos instrumentos de política que podem dar densidade material à autoridade política nacional, em particular no campo económico, transferindo-os para entidades europeias sem legitimidade e escrutínio democráticos, mais facilmente capturáveis por poderes capitalistas. Neste processo de transferência, grande parte dos instrumentos de política pura e simplesmente desapareceu. 

Sem instrumentos de política comercial, monetária, industrial ou de controlo de capitais, a soberania no campo económico é uma ficção que fragiliza a democracia. Portugal ficou sob tutela de poderes estrangeiros, reduzido – em muito do que importa – a um estatuto semicolonial. 

No entanto, a perda de soberania não é inevitável. Esta crise pandémica demonstrou que, em última instância, as questões mais importantes, as de vida e de morte, são decididas pelos Estados, sendo as capacidades coletivas de que estes ainda dispõem decisivas na eficácia da resposta. Dispondo ainda de poderes no campo da saúde – graças a uma das grandes conquistas da soberania popular, o Serviço Nacional de Saúde –, o Estado português pôde responder a uma dimensão crucial da crise, protegendo a saúde pública. 

Não é por acaso que se tem falado num momento soberanista, dado que o essencial da ação tem-se concentrado nos Estados. No entanto, se quem manda é quem decide o que é excecional, a verdade é que, em áreas cruciais, quem declarou a suspensão temporária de regras constrangedoras da soberania nacional foi a União Europeia – do campo orçamental às ajudas de Estado. Para ser eficaz, a ação pública tem de aproveitar este momento e recuperar instrumentos para a escala onde está a Constituição democrática. Este é o grande desafio com que o sujeito coletivo, onde formalmente ainda reside a autoridade máxima, se confronta hoje. 

Trata-se de uma luta democrática, uma luta dos de baixo contra os de cima. A soberania é e continuará a ser o centro da política.

Soberania continua a ser uma das palavras cruciais para lá da pandemia.

1 comentário:

Jose disse...

Soberania e autarcia
Os instrumentos para a autarcia não definem a soberania.