domingo, 12 de dezembro de 2021

O negócio do crédito malparado - parte I

Recentemente, foi noticiado que Maria Luís Albuquerque, antiga ministra das Finanças, saiu do Grupo Arrow Global (grupo inglês de aquisição e gestão de carteiras de crédito) e regressou ao IGCP, com a nota de que no ano passado se candidatou a presidente da ESMA (reguladora europeia de mercado de valores mobiliários). Sirvo-me do seu exemplo como mote para discutir a evolução do crédito malparado nas últimas duas décadas em Portugal e a ligação entre escolhas políticas, interesses privados e opções de regulação.

Até 2011, o crédito malparado (aqui medido em forma de rácio sobre o total de crédito) assumia valores considerados baixos. Numa trajetória crescente, atingiu em 2016 o pico, em torno dos 18%, o que correspondia a um stock de 50 459 milhões de euros, ou seja, 27% do PIB português. Três anos depois, estava em torno dos 6%. Separo este texto em duas partes para discutir as tendências assinaláveis – um crescimento acentuado até valores gritantes e uma rápida redução posterior.


Como é explicado no livro Por onde vai a banca em Portugal?, adotou-se em 2011, por pressão externa, uma contabilidade mais conservadora, que revelou maiores níveis de crédito em incumprimento. Parte substancial deste crescimento foi fruto de uma tentativa de rutura com práticas de gestão e auditoria pouco prudentes. Mas se, infelizmente, é verdade que interesses privados e casos de corrupção têm de ser ponderados, também o é que não têm poder explicativo suficiente. Olhando para o mapa da distribuição de crédito malparado na Europa, é visível um padrão claro: a periferia foi bastante mais atingida. É assim preciso investigar explicações mais substantivas.


Associada à integração europeia, veio uma rápida liberalização do setor bancário que se traduziu num embaratecimento do crédito. Entre 1995 e 2010, o peso do stock de crédito ao setor privado triplicou, aumentando de 61% para 189% do PIB. Muito deste crédito foi canalizado para setores dependentes da procura interna, uma vez que a capacidade de Portugal concorrer internacionalmente enfraqueceu pela exposição a taxas de câmbio reais mais elevadas. As indústrias transformadoras nos anos 90 detinham 40% dos empréstimos concedidos, mas em 2008 correspondiam apenas a 12%; a construção e atividades imobiliárias passaram de 11% para 38%. Mais, não prevendo a Zona Euro transferências significativas entre países excedentários e deficitários, o sistema bancário servia ainda como mediador do financiamento externo. Assim, nas vésperas da crise financeira, Portugal tinha um setor privado altamente endividado e uma economia pouco competitiva e frágil perante choques externos. O crédito malparado foi sintoma disso mesmo.

Por cima disto, o programa de ajustamento (2011-2014), como resposta à crise, agravou ainda mais o problema. Por um lado, pelas exigências concretas que fez à banca. Das várias imposições vale a pena frisar a redução do rácio de transformação (depósitos/crédito) para que se melhorasse a liquidez dos bancos. O objetivo era atingir o valor de 120% até 2014, sendo que o nível agregado antes do programa da troika era na ordem dos 150%, existindo, porém, bancos com valores acima de 170%. Isto resultou numa contração enorme da oferta de crédito. Num período recessivo, a quebra no financiamento é contraproducente. Esta escolha alimentou o aumento do incumprimento, agravando por sua vez a recessão. Houve uma deterioração da capacidade dos devedores (tanto famílias como empresas) responderem às suas responsabilidades financeiras pelo aumento do desemprego/precariedade e falências.


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