quarta-feira, 21 de setembro de 2022

O que sabe o Ministro da Economia que nós não sabemos? (Momento AIG II)

Sem qualquer pudor, o Ministro da Economia, defendeu que os grandes grupos económicos “não estão preparados” para um imposto sobre os lucros extra e ordinários registados, como assinala João Rodrigues.


Dado que taxar as empresas de energia é uma medida com popularidade evidente e que beneficia do apoio nunca dispensado da Comissão Europeia, porque está o Governo disposto a pagar o preço político de o não fazer? 

Estou capaz de apostar que este Trading Update de 11 de outubro de 2021 (meus sublinhados) é capaz nos fornecer algumas pistas: 

A maioria dos volumes de gás natural aprovisionados pela Galp são adquiridos com indexação a Brent, sendo uma parte relevante desses volumes vendido a clientes numa base indexada a TTF. Os ganhos provenientes do recente aumento dos preços de TTF são neutralizados por derivados destinados a cobrir o risco do diferencial TTF–Brent. Alguns destes derivados requerem depósitos em contas margem (futuros de TTF cotados em bolsa), os quais impactam temporariamente a posição de caixa da Galp e que serão libertados consoante os preços se ajustem em baixa e/ou os volumes de gás natural sejam entregues aos clientes, ao longo de 2022.” 

Ou seja, para lá da linguagem desnecessariamente críptica, da novilíngua dos ‘mercados’, somos informados que a Galp está confrontada com uma situação em que os ganhos, que resultam do aumento dos preços da energia, são absorvidos pelos prejuízos que resultam das imprudentes posições contratuais que esta empresa assumiu no mercado de derivados financeiros futuros, o que está a ter impacto nos seus resultados financeiros e também na sua liquidez.

Dada a importância estratégica da GALP, que por esta razão não deveria ter sido privatizada, estamos perante um cenário em que o erário público pode vir a ser onerado. O país tem, pois, direito a um esclarecimento do Ministro da Economia que não se limite ao lacónico “não estão preparados”. 

A guerra gera volatilidade e o capitalismo, que até pode dar-se bem com a volatilidade da situação política, tem dificuldades históricas com a volatilidade nos preços. Desta feita, uma volatilidade que se auto-alimenta e é endogenamente gerada nos mercados financeiros internacionais onde se transacionam os produtos financeiros derivados cujo preço determina o preço internacional da energia de forma totalmente desligada da esfera real (recordemos que, apesar da guerra, a oferta internacional de energia se mantém, essencialmente, constante). 

Volatilidade esta que gerou uma necessidade tal de colateral que compromete a viabilidade económica e financeira das empresas que estão obrigadas a fornecê-lo, ou seja, das empresas que se comprometeram a vender no futuro, digamos, por 100, energia que atualmente custa 475 e que agora estão contratualmente obrigadas a mostrar capacidade de honrar o seu compromisso. Ou seja, empresas que, presas num contrato financeiro que fixa um preço de um bem numa data, se tornaram reféns da exigência (margin call) de entregar ativos (colateral) que assegurem no presente que, no futuro, de facto, honrarão as apostas especulativas onde se aprisionaram. 

O que lemos na imprensa internacional (a nacional já tratou este assunto?) leva-nos a concluir que este problema, que se espalhou como gasolina, sobretudo, nos países que impuseram sanções à Rússia, gerou um desequilíbrio financeiro com potenciais efeitos sistémicos. O tal momento AIG, dado que a prática em curso, por toda a UE, de resgates públicos de mais este desastre financeiro parece afastar, para já, um momento Lehman Brothers

Nos EUA, por exemplo, a Cheniere Energy Inc., o maior exportador de gás natural liquefeito dos EUA, que previa para este ano 8,7 mil milhões de dólares de lucro acabou de anunciar um prejuízo líquido de 3,41 doláres por ação. Os tais derivados a fazer estragos; literalmente: efeitos colaterais. 

Na UE, que mais parece um carrossel desgovernado em súbita aceleração, a questão da distópica disfuncionalidade sistémica vai voltar a colocar-se: sem orçamento próprio e com um Banco Central que diz não estar pelos ajustes como se vai financiar, a fazer fé no Financial Times, o total dos, até ver, 1,5 biliões de colateral em falta, mais de 5% do PIB europeu, 42% do PIB alemão, 6,5 vezes o PIB português? 

Na Alemanha, a Ostpolitik torna-se definitivamente passado com a nacionalização da, parcialmente Russa, Rosneft; a nacionalização em curso da Uniper já custou 19 mil milhões (quase 10% do PIB português) e continua a não ser suficiente.     


Deitar borda fora as regras do pacto de estabilidade seria boa ideia, que só peca pelo atraso, se não significasse apenas que se está a abrir caminho para colocar esta despesa nas contas públicas nacionais: 

A escalada dos preços da energia tem gerado exigências crescentes de colateral nas empresas de energia que associaram as suas vendas a transações compensatórias nos mercados de futuros. As estimativas para ‘margin calls’ associadas ascendem a 1 bilião de dólares. Mas os governos individuais da União Europeia devem intervir, não o BCE", afirmou Lagarde

Re-regular o mercado de derivados para permitir que o colateral possa incluir empréstimos e garantias bancárias, acrescentando capital fictício à especulação, pode comprar tempo, mas arrisca ainda maior contaminação do sistema bancário. É caso para dizer que se a Grã-Bretanha saiu da UE, a EU nunca saiu da City. Como afirma Daniela Gabor, “estabilidade macrofinanceira sem mudança institucional, subsídios sem disciplinar o capital”. 

Uma solução negociada para a guerra, uma alternativa de paz, como defende, por exemplo, a economista norte-americana Stephanie Kelton, tendo sido sempre inevitável e urgente, tornou-se agora também condição necessária, embora não suficiente, da estabilidade do sistema financeiro e, consequentemente, da provisão energética da Europa.

Com ou sem paz, contudo, não deixaremos de assistir a uma mudança, pelo menos parcial, na orientação da política monetária-orçamental. A alegadamente imperiosa necessidade de políticas restritivas (‘no pós-pandemia, num contexto inflacionário, já não há novamente dinheiro’, diziam-nos) dará lugar a uma política de abundantes milhões para pagar o estrago em curso. Dinheiro que, mais uma vez, remunerará generosamente a especulação financeira e que, apesar de ser criado do nada pelo BCE e pela banca privada, não deixará de pesar em contas públicas alegadamente incapazes de suportar aumentos de salários e pensões ou a integridade do SNS.

Dinheiro que nada produz; dinheiro - este sim - verdadeiramente inflacionário.


[E, já agora, e a EDP, empresa privatizada a favor de um Estado, neste contexto, potencialmente hostil? Há ali derivados, margin calls a pressionar e suficiência/escassez de colateral?]

5 comentários:

Ricardo Cabral disse...

Excelente, Paulo, é isso mesmo. Um atestado de incompetência passado pelos mercados a numerosos Conselhos de Administração de empresas privadas europeias (ou talvez não).

Paulo Coimbra disse...

Obrigado, Ricardo. É isso. Como se vê, os mercados sabem sempre mais e melhor.

Alberto disse...

Os ladrões de bicicletas deviam estar no plano nacional de leitura obrigatória.

Óscar Pereira disse...

Porque o liberalismo (económico) funciona e faz falta a Portugal! Oh wait...

Frederico Pinheiro disse...

Grande texto, espetacular.