sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Perdoem-me o desabafo...

...mas também estou farto, mesmo farto, de ver gente que se diz de esquerda dar para o peditório do estamos todos juntos, do temos de apelar ao consenso, ao meio e à calma, ao chão comum, recusando a polarização, reduzindo a imaginação social a factos, mais supostos do que verificados, e a Política, com p grande, às tecnocráticas políticas, com um p cada vez mais pequenito: um incentivo aqui, uma dedução ali, um anúncio, sublinhe-se esta palavra, de um programa acolá, sem esquecer um ou outro pilar estratégico, rapidamente esquecido, dado que nada se inscreve.

E, entretanto, a imaginação social estiola em tempos de catástrofe para tantos indivíduos e suas famílias. E a realidade da sociedade é uma miragem. Até parece que é mais assisado pensar no fim do mundo, já que ao longo da história do século XX não houve reforma favorável ao povo que se tivesse feito com esta atitude, com este distanciamento. 

Paga-se um preço elevado por ter demasiada esquerda entregue às classes profissionais gestionárias, ainda para mais quase sempre europeístas: agora compreendo melhor a preocupação marxista com a origem de classe na política. As prioridades são diferentes, têm de o ser. 

Em pandemia, as elites acentuam ainda mais o seu monopólio do espaço público, quase reduzido à enviesada esfera mediática, universalizando implicitamente a sua peculiar situação caseira. Basta pensar na frequência com que se diz estamos todos em casa. A direita não tem problema com isto, está no seu ambiente natural, tem a direção mais ou menos garantida, dadas as estruturas, já a cultura que se diz de esquerda sofre sempre pela falta de ancoragem social. 

Fala-se como se o conflito, a luta de classes, cristalizada temporariamente em instituições, não fosse o motor da mudança, como se não precisássemos de dissensos fortes em relação aos desastrosos consensos forjados na década de oitenta, à sombra dos quais ainda vivemos, como se aquela conversa melosa não servisse para obscurecer estruturas de poder tão brutas e fraturas sociais de classe tão profundas. 

Enquanto se passa por sensato, há um povo ignorado e há uma política agonística com estamina, a da sempre indispensável clivagem nós-eles, que corre o risco de ficar entregue a outros, os que, forjando clivagens falsas, sabem ainda assim uma ou duas coisas sobre mobilização política em tempos de ansiedade, mesmo que optem pela mentira e pelo engano. 

Sim, a política tem de imbricar razões, emoções, sentimentos, precisa de ser feita com a cabeça, com o coração, com as entranhas, com o corpo todo. Tem de ser gelada, avaliando correlações de força e de fraqueza com o rigor possível, e tem de ferver, com o espírito necessário para enfrentar as forças cada vez mais obscuras do tempo, ou seja, da incerteza irredutível. Há quem queira fazer política assim. Uma política a sério tem de ter amigos e inimigos, internos e externos, até porque a força do inimigo interno, dos vende-pátrias, é sobredeterminada externamente na periferia que é a nossa. Há quem já tenha inimigos e quem os venha a ter. Os inimigos são tão informativos. Haja esperança.

E, claro, a política precisa de ter classe liderante, encarnada, e alianças consequentes, para se poder conduzir a nação, ou seja, para que surja um novo consenso para lá do neoliberalismo, uma nova concepção do interesse nacional, uma vontade colectiva nacional-popular.  Tudo o resto é uma ordem que está a morrer e sintomas mórbidos em catadupa na direita, mas também na esquerda. Cá estaremos todos para dar conta deles.

5 comentários:

Jose disse...

«a origem de classe na política».

Eis um tema que merece profunda reflexão.
Profundidade histórica, antes demais, e profundidade na análise de quem tem relevado para as transformações políticas no universo que conta para a definição da situação actual do país.

Mas recomenda-se a não simplificação da noção de 'classe'; que se tenham em conta as variantes indígenas como a dos «chicos-espertos», a dos «abrilescos», a dos «soviéticos», indo eventualmente desenterrar a dos «da capela do Rato» de tão emocionante memória.
Dessa análise detalhada poderá seguramente passar-se a agregações que conduzem a classes mais indefinidas nas ideias mas praticando um mesmo léxico; desde logo os «antifascistas» saudosos de sofridas heroicidades, os «anticolonialistas» olhos postos em vencer fronteiras.
Tudo isto vem a propósito de ter 'relevado para as transformações políticas'.

No processo resultará identificada uma classe irrelevante, mas notável pela sua dimensão e que poderá vir a ser identificada por um pensamento dominante: «antes de mais, ponham esta choldra a funcionar regular e decentemente».

Anónimo disse...

Tem de se falar com verdade e com coragem, ninguém parece querer assumir a consequência das suas palavras e dos seus actos, os debaixo têm de ter poder isto tem de ser dito de forma declarada, chega de mentiras, chega de falsidades que só servem de absolvição moral daqueles que querem ser vistos como gente da "boa vontade". Não mundo de imbecis e de hipócritas nada se constrói, a vida nesses lugares é um imenso jogo de sombras. Parabéns pela clareza da linguagem deste post.

Anónimo disse...

Muito, muito bom. Parabéns.

JE disse...

Fala-se em classes sociais

E logo um dos da classe possidente, daqueles que quando vê um porno rico bate palmas feito basbaque, salta para o palanque e oferece-nos este espectáculo confrangedor aí em cima espelhado

O que dizer de quem diz tais alarvidades?

Temos direito às "variantes indígenas como a dos «chicos-espertos» ( ainda tem saudades do boom destes "empreendedores", nos anos 60 e 70 do salazarismo-marcelismo), a dos «abrilescos»" (ainda lhe está atravessada na garganta o fim do fascismo), a dos «soviéticos» ( ainda não digeriu a derrota do nazi-fascismo), a dos «da capela do Rato» ( ainda lhe causa sarna quando lhe lembram católicos progressistas que puseram em causa a guerra colonial)

E depois parte, com os olhos em alvo, postos sabe-se lá onde, para as "agregações", feitas "classes menos definidas mas com o mesmo léxico". Podemos começar a rir?

Continua o mesmo jose:
"Tudo isto vem a propósito de ter 'relevado para as transformações políticas'. Quem relevou para estas foi o jose. Temos então direito a um monólogo em torno das relevâncias ou irrelevâncias do mesmo sujeito que vai desembocar à Choldra.

Ora bem, se é ele que o diz...

Embora Eça também lhe tenha ficado atravessado na maçã de Adão, quando alguém lhe apontou as suas semelhanças com o Conde de Abranhos


Essa de não se querer rever no que o espelho lhe mostra, dá nisto. Quando lhe falam de classes, que resultam da divisão social do trabalho, jose costuma fazer destas fitas, qual vero detentor dos meios de produção. A benzer os porno-ricos e a adequar o seu vocabulário com todos os seus traumatismos. Também de classe, pois então

JE disse...

A questão como se sabe não é o assumir as consequências das palavras e actos. Nem da absolvição moral nem do jogo de sombras.

A questão vai muito para lá dos "imbecis e hipócritas", aqui em Bruxelas ou na Holanda

Há um nós e um eles. Há uma "indispensável clivagem nós-eles, que corre o risco de ficar entregue a outros, os que, forjando clivagens falsas, sabem ainda assim uma ou duas coisas sobre mobilização política em tempos de ansiedade, mesmo que optem pela mentira e pelo engano".