domingo, 31 de agosto de 2014

Credibilidade e confiança (II)


«Ainda sou do tempo em que o alegado primeiro-ministro assegurava que o Estado não interviria no BES: "Não há nenhuma razão que aponte para que haja uma necessidade de intervenção do Estado num banco que tem capitais próprios sólidos, que apresenta uma margem confortável para fazer face a todas as contingências, mesmo que elas se revelem absolutamente adversas, o que não acontecerá com certeza". Dias depois, a Miss Swaps confirmava a garantia dada por Passos Coelho: "Cabe aos privados resolver os seus problemas".
Acontece que o Estado interveio no BES. À grande e à francesa: 3,9 mil milhões de euros.
Hoje, como quem nos prepara para o pior, a Miss Swaps deixou cair, com uma enorme candura, que a intervenção do Estado no BES pode vir a ser considerada por Bruxelas uma «operação que tem impacto no défice». Pois, está em causa dinheiro do Estado.»

Miguel Abrantes, De mentira em mentira

Como resgatar discretamente um banco, em três actos, às custas do Estado? Primeiro, garante-se que esse banco não precisa de nenhum resgate público (chegando-se a colocar o presidente da República a afirmar que «as folgas de capital são mais que suficientes para cumprir a exposição que o banco tem à parte não financeira, mesmo na situação mais adversa»). Depois, avança-se para a intervenção do Estado propriamente dita, garantindo porém que se encontrou uma solução que não implica perdas para os contribuintes. Por fim, e após de se ter garantido que Bruxelas não irá considerar, em termos orçamentais, os efeitos da injecção de dinheiros públicos, basta admitir que essa «operação tem impacto no défice». É simples, basta dosear adequadamente a informação a transmitir à opinião pública (e esperar que as pessoas não tenham grande memória).

sábado, 30 de agosto de 2014

Ecos dos anos 30


As tendências da economia parecem caóticas e insondáveis até percebermos que há algo que lhes está subjacente. Esse algo é a política.

O sistema económico em que vivemos assenta na produção de bens e serviços motivada pela prossecução do lucro. Esse lucro, em termos simplificados, corresponde à parte do preço desses bens e serviços que permanece nas mãos dos empresários uma vez remunerados os trabalhadores e pagas as matérias-primas e custos intermédios. E por sua vez, essas matérias-primas e insumos intermédios são produzidos noutras empresas nas quais o rendimento também se reparte entre empresários e trabalhadores, pelo que em termos agregados e de forma simplificada (abstraindo das rendas, impostos e juros), os lucros são tanto maiores quanto menores são os salários e vice-versa.

Entre Cila e Caríbdis


Em consequência disso mesmo, a produção neste sistema vive numa tensão permanente entre duas fontes potenciais de bloqueio: lucros demasiado baixos, por um lado; e lucros demasiado elevados, por outro. Se os lucros forem demasiado baixos, os níveis de investimento tendem a reduzir-se e a dinâmica da produção tende a estagnar. Mas lucros demasiado elevados também conduzem à estagnação da produção, pois provocam a concentração do rendimento, desigualdade crescente e estagnação da procura.
A estagnação da procura neste segundo caso resulta do facto das empresas venderem maioritariamente os seus bens e serviços a trabalhadores - pelo que se a parte dos salários for sistematicamente comprimida, os empresários vêem as suas vendas reduzidas. Em termos mais rigorosos, o que sucede é que os segmentos da população com rendimentos mais elevados têm uma menor propensão para o consumo (poupam uma parte maior do seu rendimento), pelo que a dinâmica da procura depende mais fortemente dos segmentos com rendimentos mais reduzidos (que correspondem maioritariamente aos trabalhadores).

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

É isto

O calduço» - Cartoon de Henrique Monteiro, roubado aqui)

Tem a certeza, senhora ministra?

«Rejeito a ideia de que a dívida esteja fora de controlo. Ela está dentro das nossas previsões», referiu ontem Maria Luís Albuquerque, ao anunciar que o governo procedia - no âmbito do Orçamento Rectificativo - a «uma revisão do que é a previsão da dívida para os 130,9% do PIB», acrescentando que «a dívida líquida é significativamente inferior à dívida bruta».


Na notícia que cita estas declarações da ministra das Finanças, pode contudo ler-se ainda que, «em Abril, no Documento de Estratégia Orçamental (DEO), o Governo tinha estimado que no final do ano a dívida pública portuguesa se fixasse nos 130,2%, sendo que o Orçamento do Estado, apresentado em outubro de 2013, previa uma dívida pública de 126,6% do PIB, no final de 2014».

E em artigo no Expresso, a 23 de Agosto, Jorge Nascimento Rodrigues assinala que «a subida de quase 7,8 mil milhões de euros desde 31 de Dezembro de 2013 empurrou o rácio da dívida pública líquida em relação ao PIB para 122% (...), mais 3,6 pontos percentuais do que no final de 2013». O que significa, portanto, «um disparo da subida da dívida líquida no segundo trimestre».

Mas não se preocupem, está tudo sob controlo. Palavra de Miss Swaps.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Debater a banca

Numa recente tarde de Agosto, a Attac Portugal organizou um debate sobre a recente crise da banca em Portugal com a Eugénia Pires, João Galamba e eu. Ficam aqui os três vídeos:






quarta-feira, 27 de agosto de 2014

C'est toujours la même histoire?

Para quem tem acompanhado a trajectória de Arnaud Montebourg desde as últimas primárias do PSF para decidir o candidato à Presidência, onde apresentou uma interessante plataforma favorável à desglobalização, o seu afastamento do governo francês de Jean-Baptiste Say só causa admiração por ser tão tardio. Montebourg já andava a fazer um pouco figura de idiota cada vez menos útil há algum tempo. Fartaram-se e fartou-se.

Consolidam-se duas clarificadoras derrotas: os que não desafiam as regras da integração europeia acabam a praticar as políticas neoliberais que nela estão inscritas e, num exemplo de como as preferências políticas podem ser adaptativas, a achar que isso é o melhor que há a fazer; os que, como foi o caso de Montebourg até agora, colocam na “Europa” o peso da construção de uma alternativa desglobalizadora, que não autárcica, claro, estão condenados à impotência, já que a globalização neoliberal é o outro nome da construção europeia. As coisas são como são feitas, como as estruturas são feitas.

A França mostra a Portugal o seu futuro político e de forma diluída, já que ainda está longe da violência da austeridade periférica. Por aqui, o destino político parece então certo enquanto não houver sinais de qualquer possibilidade ou vontade em desafiar as estruturas com escala europeia. A mensagem para a esquerda que não desiste não pode ser mais clara em França ou em Portugal: só a unidade em torno de uma plataforma política que, entre outras dimensões, mobilize e dê densidade programática a um saudavelmente realista eurocepticismo, de resto crescentemente popular, pode a prazo construir uma alternativa com peso e que pese na vida das classes populares. O resto é adaptação e impotência, ou seja, a mesma história que já parece de sempre.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Lágrimas de crocodilo (pela insustentabilidade induzida da Segurança Social)

António Bagão Félix fez as contas: o proclamado défice da Segurança Social deve-se essencialmente a dois factores. Por um lado, «ao desiquilíbrio da CGA, em que o Estado empregador forçou o Estado aposentador a ter mais despesa e menos receita». Por outro, «às consequências do elevado desemprego, que retiram à SS cerca de 8 mil milhões de euros», um valor que é a soma de três parcelas: «despesa com subsídio de desemprego, perda de receitas (TSU dos desempregados subsidiados e dos não-subsidiados, que são mais de 50% do total) e o efeito do princípio da equivalência contributiva, em que a SS continua a acumular direitos formados para as futuras pensões de desempregados sem receber as correspondentes contribuições».

Sendo evidentes os efeitos directos e indirectos da austeridade na degradação das contas da Segurança Social, o governo prefere contudo continuar a concentrar o foco no branqueador «argumento demográfico» e na fraudulenta narrativa das «forças de bloqueio» e dos «direitos adquiridos», assim procurando instigar, sempre que pode, o «conflito entre gerações». Foi isso que sucedeu na Festa do Pontal, onde Passos Coelho se queixou, com incendiária ironia, que «só os jovens e aqueles que estão hoje a começar a sua vida é que podem perder direitos, os outros não podem», acrescentando, num ataque mal disfarçado ao Tribunal Constitucional, que essa é «uma estranha forma de ver a equidade, uma estranha forma de ver a solidariedade».

É porém muito curioso constatar que este discurso, de aparente preocupação com a sustentabilidade financeira da Segurança Social, seja feito apenas um mês depois da aprovação, na Assembleia da República (com os votos favoráveis dos partidos da maioria), de um diploma que «autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico da exploração e prática do jogo online» e que significa na prática, como assinalou oportunamente o José Vítor Malheiros, escancarar as portas «à privatização dos chamados jogos de fortuna e azar, como a lotaria, o totobola e o euromilhões, com a desculpa aldrabona de que é preciso regulamentar o jogo online e que isso passa pela sua liberalização».

Não é difícil antever as consequências desta iniciativa governamental: ao permitir a entrada dos privados na esfera dos jogos sociais, destruindo assim «aquela que tem sido a argumentação do Estado português na União Europeia em defesa do monopólio do jogo por parte da Misericórdia [de Lisboa] - o seu objectivo social, a necessidade de não promover o vício do jogo, etc...», estamos perante «um gesto contra a Segurança Social, que mina uma fonte essencial do seu financiamento; um gesto contra os pobres, que beneficiam dos serviços da Misericórdia; e um gesto em favor das grandes empresas de jogo», como lembra, e bem, o José Vítor Malheiros. É quando a diversificação das fontes de financiamento se converte num pressuposto cada vez mais incontornável de uma qualquer reforma credível e responsável da Segurança Social que o governo decide alienar uma das suas fontes de receita. Para de seguida verter, com a costumeira hipocrisia, lágrimas de crocodilo pela insustentabilidade do sistema.


Sublinhe-se aliás (como mostra o gráfico), que não é apenas o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social que beneficia das receitas dos jogos sociais (detendo cerca de 2/3 do montante total dessas receitas, na média anual dos últimos anos). Os domínios da Educação, Saúde, Cultura, Desporto e Juventude são igualmente beneficiários dos resultados líquidos dos jogos sociais. O que significa que não se trata apenas do desvio de fundos para o combate à pobreza e à exclusão, ou para o apoio social a famílias, crianças, idosos e deficientes. O que está em causa é igualmente substrair recursos que têm financiado, entre outras áreas: a protecção civil, emergência e socorro; o fomento das actividades e infraestruturas desportivas; a actuação em áreas de diferenciação na saúde (como a oncologia, a saúde mental, as dependências aditivas, as doenças raras ou os cuidados continuados) ou o fomento cultural e as políticas de juventude.

domingo, 24 de agosto de 2014

Almoços grátis e facturas

Além de insultuosa da cidadania, a Factura do Sorte é muito provavelmente contraproducente. E diz muito sobre o sentido cívico e o entendimento da acção humana por parte de quem nos governa.

Da Factura da Sorte, o sorteio de automóveis topo de gama pela Autoridade Tributária para incentivar o pedido de facturas pelos consumidores, já se disse quase tudo: que é ofensivarascainsultuosa da cidadaniarepugnantepimba, que transforma os cidadãos em inspectores fiscais ou que é disparatada na medida em que muitos dos potenciais vencedores dos sorteios têm necessidades muito mais prementes e não terão sequer meios para manter os carros em questão. Concordo com quase tudo isto, mas além do mais acho que esta medida é, no longo prazo, contraproducente. E é contraproducente porque presume - erradamente - que a motivação adicional extrínseca que introduz é neutra em relação à motivação intrínseca.
Explico-me melhor. Motivação intrínseca é a que decorre de acharmos ou sentirmos que uma determinada acção é correcta ou desejável em si mesma. Motivação extrínseca é a que resulta de considerarmos que temos algo a ganhar, de forma certa ou potencial, como resultado "exterior" à realização da acção. Neste caso, a motivação intrínseca potencial consiste na disponibilidade de cada um para viabilizar o funcionamento de um sistema em que todos contribuam na medida do seu nível de rendimento ou consumo para financiar a provisão de bens públicos, bem como medidas de redistribuição determinadas por critérios de justiça social. A motivação extrínseca consiste na probabilidade (ínfima, naturalmente) de ganhar um dos automóveis sorteados. A Autoridade Tributária considera que ao introduzir esta medida está a reforçar a estrutura global de incentivos que leva os consumidores a pedir facturas, pois presume que aumenta a motivação extrínseca sem afectar a motivação intrínseca.

Demagogia e desinformação sem limites



«Não entrámos na bancarrota em 2011 porque houve uma Europa Solidária, uma Europa composta de muitos países, muitos deles mais pobres do que Portugal. Com subsídios de desemprego que valem muito menos que os nossos; com um PIB per capita, com uma riqueza por cada cidadão, muito menor do que nós temos; com um Estado Social menos avançado do que o nosso - onde não há saúde para todos. Foram muitos desses países que nos ajudaram a vencer as dificuldades.»

(Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro, na Festa do Pontal)

A propósito deste excerto do discurso do primeiro-ministro na rentrée laranja, vale a pena ler na íntegra o artigo de Pedro Adão e Silva no Expresso de ontem (e que o Câmara Corporativa disponibiliza aqui). Aí se assinala, muito oportunamente, que:

a) No que concerne à Europa (excluindo portanto a contribuição do FMI), o resgate português foi financiado por dois mecanismos, o MEEF e o FEEF. O primeiro «assenta em fundos dos mercados financeiros garantidos pela Comissão, com o orçamento comunitário como colateral». O segundo mecanismo é assegurado pelos dezoito países membros da zona euro. O que significa, portanto, que «a solidariedade europeia é parcialmente assente numa garantia dada pelo orçamento da União, que tem como contribuintes líquidos doze estados-membros» (entre os quais a Dinamarca e a Suécia, que não pertencem ao euro). Isto é, Portugal beneficiou de um suporte financeiro, sob a forma de empréstimos, que é assegurado por dezoito «países membros da zona euro, mais dois países escandinavos».

b) Entre os vinte países que nos «ajudaram», apenas a Espanha e a Grécia (que também não são, tal como Portugal, contribuintes líquidos da UE) tinham, em 2011, taxas de pobreza superiores à do nosso país (18%). Em linha, aliás, com o PIB per capita: «enquanto a média da União é de 27.500 euros, em Portugal é de 19.400, a menor dos vinte países (inclusivamente inferior ao valor grego)».

c) Sendo a questão do subsídio de desemprego mais difícil de comparar (dada a significativa variabilidade dos esquemas de protecção), e «apesar de a relação salário/subsídio em Portugal ser generosa no contexto europeu (consequência dos baixos salários)», a verdade é que «mais de metade dos desempregados não têm protecção e o valor médio mensal do subsídio é muito baixo (€460)». E se «pensarmos em qualquer outra prestação social, Portugal perde na comparação».

d) No campo da saúde, todos os países da União Europeia têm sistemas universais, «apesar da diversidade de prestação de cuidados e dos modelos de financiamento (nuns casos impostos, noutros contribuições para a Segurança Social). Em Portugal, 66% do total da despesa em Saúde é assegurada pelo Estado, um valor mais baixo do verificado na UE27 (73%).»

Pedro Adão e Silva assinala, ainda, uma outra diferença: muitos dos países a que Pedro Passos Coelho se referiu no discurso do Pontal «têm primeiros-ministros que sabem do que falam». O que deixa no ar uma outra questão: quantos militantes e simpatizantes de outros partidos social-democratas europeus permitiriam este tipo de insulto, mesmo que em contexto de comício, à sua inteligência?

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Do esplendor da novilíngua

RTP1, 22 de Agosto, Programa Bom Dia Portugal:
«Uma das áreas onde houve um recuo de prejuízos no primeiro trimestre do ano foi a Saúde. Registou melhorias nos gastos operacionais em mais de 51 milhões de euros. Também houve poupanças nas áreas da Comunicação Social, Cultura e Requalificação Urbana. Com mais prejuízos estão os transportes, as infraestruturas e as empresas da Parpública.»

«Poupanças na Saúde», «recuo de prejuízos», «melhorias de gastos operacionais». O esplendor da propaganda e da novilíngua, num canal público de televisão. Zero de rigor e de pudor. Querem dar uma notícia ainda melhor da próxima vez? Peçam ao dono que corte pela raiz toda a despesa do SNS. Poderão então anunciar um recuo total nos «prejuízos» e uma melhoria absoluta nos «gastos operacionais».

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Sob chantagem da finança



As implicações da fórmula jurídica utilizada para lidar com a falência do BES mal começaram a manifestar-se. É bem possível que a desconfiança dos depositantes tenha crescido nos últimos dias e já esteja a pôr à prova a fleuma do governador do Banco de Portugal (BP) e da sua chefia em Frankfurt. Porém, a procissão ainda vai no adro, como sugerem as notícias que vamos recebendo sobre o Montepio e, pasme-se, sobre a integração do BES Angola no balanço do Novo Banco. Pelos vistos, as perdas causadas pelo regabofe financeiro de Luanda terão de ser "resolvidas" pelo banco que devia ter ficado apenas com a parte boa do BES. Carlos Costa vai ter de explicar melhor os seus critérios, a menos que se trate de uma decisão tomada por um primeiro-ministro a banhos na praia da Manta Rota.

Seja como for, a questão central é esta: será mesmo verdade que as perdas do sistema financeiro (do BES e de outros bancos, veremos) vão ser pagas integralmente pelo próprio sistema financeiro? Pela letra da lei que dá cobertura à intervenção do BP, a resposta é afirmativa. E se os bancos não estiverem em condições de solvabilidade para entregarem ao Fundo de Resolução as correspondentes contribuições extraordinárias, quem paga?

Como o caso do Montepio sugere, é bem possível que várias instituições financeiras não tenham condições para reforçar o Fundo de Resolução em montantes significativos. Dado que este é gerido pelo Banco de Portugal, até há quem diga que a dívida acabará por ficar a cargo do governo português, no quadro do empréstimo contraído junto das instituições da troika, ficando os bancos a pagá-la, suavemente, ao longo de muitos anos. Note-se que, num contexto de normalidade, o esquema de resolução até poderia funcionar e pouparia os contribuintes. Porém, o que estamos a viver é tudo menos normal. A deflação ameaça estender-se ao conjunto da UE, o que só agrava o crédito malparado de famílias e empresas e torna a dívida pública (ainda mais) insustentável, pelo que não parece que a finança tenha condições para se salvar a si mesma. Essa é a tarefa de um banco central.

Dado que a união bancária está a dar os primeiros passos, muito lentamente por imposição da Alemanha, ainda não existe um fundo de resolução de escala europeia para acudir aos bancos portugueses, ou outros. Assim, encaminhamo-nos para uma situação em que o Banco Central Europeu (BCE), uma vez mais, falha num papel que é próprio de qualquer banco central, o de garante da estabilidade do sistema financeiro. Note-se que os empréstimos do BCE aos bancos, seja através da sede em Frankfurt, seja pela sucursal em Lisboa, não envolvem qualquer risco para os contribuintes. É preciso não esquecer que, ao creditar uma conta de um banco em dificuldades, como ocorreu recentemente com um empréstimo de emergência ao BES, o banco central está a exercer a sua competência básica de prestamista de último recurso; não está a endividar o Estado.

Aliás, nenhum banco central vai à falência, ao contrário do que sugerem alguns "analistas", talvez mentalmente colonizados pela retórica do ordoliberalismo alemão. Como também não há bancarrota para um Estado que disponha de soberania monetária, pois, de uma forma ou de outra de acordo com o quadro jurídico em vigor, o banco central financia o Tesouro a uma taxa de juro quase nula. Pode acontecer que, em certas condições macroeconómicas, o financiamento monetário ao Estado não seja desejável, mas a verdade é que ele garante a reciclagem de qualquer dívida em moeda soberana no momento do seu vencimento.

Pelo contrário, dentro do euro, o Estado português está sob permanente chantagem dos operadores financeiros que, com o maior descaramento, indicam aos governos eleitos as políticas, o modelo de sociedade e até a Constituição que lhes agrada. Os europeístas da esquerda que defendem o euro, na prática, aceitam a ditadura da finança sobre o povo (ver Michael Pettis, "The war between workers and bankers"). Não foi por acaso que a extrema-direita deu um grande salto nas eleições para o Parlamento Europeu. O que mais será preciso para que a sociedade portuguesa abra os olhos?

(O meu artigo no jornal i)

sábado, 9 de agosto de 2014

E depois do BPN e do BES?


Ainda não sabemos quantos milhões de euros nos custou a bancarrota do BPN. Serão muitos, sobretudo porque o governo nacionalizou apenas o banco, deixando de fora a parte boa do grupo. Com a bancarrota do BPN por encerrar, hoje a pergunta mais frequente é esta: quanto nos irá custar a do BES? A resposta depende da capacidade do Estado de aplicar o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, convenientemente alterado no passado domingo. Se o Estado recuperar o montante que emprestou ao Fundo de Resolução, o custo directo da bancarrota do BES será nulo. Uma vez vendido o Novo Banco, provavelmente por um valor muito inferior aos 4,4 milhões de euros do empréstimo - a pressa em vender não ajuda nada -, o empréstimo de emergência feito pelo Estado será reembolsado pelo valor da venda, acrescido das contribuições extraordinárias dos bancos para perfazer a diferença. A contestação dos banqueiros já começou e anuncia um braço-de-ferro político interessante e de desfecho incerto. Mira Amaral já disse à comunicação social que, se o resgate correr mal, não quer perder o dinheiro. Os outros não dizem, mas pensam. Está em jogo a autoridade do Estado e a capacidade de encaixe do conjunto do sistema financeiro.

Ao mesmo tempo, também está em jogo o sucesso da primeira experiência de resolução de uma crise segundo o guião da união bancária, há poucos meses aprovada. Como explicou na altura Elisa Ferreira, negociadora por parte do Parlamento Europeu, "é um acordo que salvaguarda os contribuintes, que garante que o mecanismo será financiado pelos bancos". Foi assumido que as contribuições dos bancos para um fundo comum têm a natureza de um seguro obrigatório, tendo em conta que a actividade bancária comporta riscos para a sociedade que devem ser suportados pelo sector. Como é evidente, Mira Amaral e os restantes banqueiros não parecem dispostos a aceitar as regras da união bancária ainda em instalação. Querem continuar a criar moeda - é o que significa conceder crédito - com o menor constrangimento do Estado, mas com a garantia de que os custos financeiros, económico e sociais das bancarrotas são suportados pelo conjunto da sociedade.

Evidentemente, esta união bancária é um faz-de-conta. A Alemanha não quer gastar um cêntimo com as crises bancárias dos outros mas teve de ceder algo, até porque muitos dos seus bancos estão fragilizados. O Fundo de Resolução europeu virá um dia a dispor de 55 mil milhões de euros, o que mal dá para tapar um pequeno buraco no balanço de 2 biliões do BNP Paribas, o maior banco francês, "demasiado grande para falir" (ver Why are TBTF banks so happy with the EU Banking Union?). Por outro lado, os grandes bancos olham para este mecanismo de resolução como uma boa oportunidade para, à custa dos despojos aproveitáveis dos falidos, crescerem a baixo preço. Os grandes bancos espanhóis já começaram a falar com Carlos Costa sobre um possível contributo para o aumento da concentração no sector, ou seja, sobre as vantagens (para eles) em se tornarem demasiado grandes para falir.

Infelizmente, a esquerda perde-se no argumento da factura a pagar pelos contribuintes, enquanto omite o essencial: o sistema financeiro tornou a sociedade refém das suas bancarrotas. Quais são as propostas da oposição de esquerda para resgatar a sociedade portuguesa da sua captura pelo sistema financeiro? A questão é incómoda, sobretudo para os europeístas, porque rapidamente fica à vista que nada de sério pode ser feito enquanto a soberania monetária do país não for, também ela, resgatada. Permanecendo na zona euro, estamos condenados a pagar, de uma maneira ou de outra, as crises bancárias decorrentes da presente depressão, com mais ou menos polícia à mistura. Só quem não conhece a história da globalização financeira, ou quer desviar a discussão do papel que o euro nela desempenhou, reduz as bancarrotas a uma crise de supervisão e de ganância dos banqueiros. A bancarrota do BES torna visível a falta de uma esquerda socialista e eurocrítica que urge criar.

( O meu artigo no jornal i)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

De Espírito Santo a Zumbi






Do meu artigo na edição deste mês do Le Monde Diplomatique:

 

O ruído em torno do «caso Espírito Santo» torna o que se passa quase ininteligível ao comum dos mortais. Este era o «banco do regime», aquele que tinha sobrevivido à mais séria crise financeira internacional e nacional desde a Grande Depressão. Ao contrário da restante banca, não existia aqui a necessidade de injecção de fundos públicos, nem os casos de polícia que afectaram BPP, BPN ou BCP. 

Com interesses na economia portuguesa que iam das telecomunicações à saúde, passando pelo turismo, o Grupo Espírito Santo (GES) foi o resultado de uma extraordinária reorganização do capital nacional, iniciada com as privatizações do início dos anos 90 e devidamente apoiada por capital estrangeiro e pela integração financeira e monetária europeia. Num momento em que o pior da crise económica portuguesa parecia ter sido ultrapassado, todo o conglomerado implode sem que se perceba como nem porquê. Na verdade, a história da crise no GES é a história da crise de um modelo económico falido cujos efeitos negativos continuam a abater-se sobre todos nós. Perceber o que aconteceu é essencial para escapar à individualização de responsabilidades e para tentar repensar um novo modelo de desenvolvimento que retire o poder financeiro do centro da economia, desde logo nacional. 
(...) 

José Reis: «Um mundo financeiro que actua sem rei nem roque»



«De facto, não é nesta reparação que agora foi feita, dos problemas causados no BES, que está, porventura, o problema essencial. Todos os que temos uma grande perplexidade, pelo que está a acontecer, temos porventura que dar um passo atrás e perceber em que mundo vivemos. E na verdade nós vivemos num mundo em que as economias dos países, a vida das pessoas, as suas expectativas, o seu futuro, estão profundamente determinadas, porventura profundamente manipuladas, por lógicas financeiras poderosíssimas. Por lógicas financeiras que desequilibram estruturalmente o mundo em que vivemos. Não é um caso português, é um caso do mundo, evidentemente.
(…) Claro que perante problemas desta natureza, evidentemente que o regulador é, muitas vezes (como está a acontecer agora) alguém que esbraceja muito mas que na verdade faz, parece-me a mim, uma pobre e triste figura. Relembremos a posição do governador (e evidentemente não é o Dr. Carlos Costa que está aqui em causa, o que está aqui em causa é o Banco de Portugal, a regulação bancária e a lógica em que vivemos). Em Abril de 2011, o governador Carlos Costa dizia aos bancos portugueses, aconselhava-os (ou melhor, ordenava-lhes), que deixassem de financiar a dívida pública portuguesa. Porque eles eram a “parte sã”, enquanto a República era “o problema”. (…) Ou seja, o governador estava convencido que a banca portuguesa, o sistema bancário português (…), e dizia isso aos seus interlocutores banqueiros, eram a parte sã. Ora bem, hoje foi “o problema” quer dizer a República, a dívida pública, que teve que ir intervir, do modo que sabemos.
(…) Eu há muito tempo que clamo que a gestão pública, e a qualidade da gestão pública, pede meças à gestão privada. E pede meças em muitas circunstâncias e não é preciso chegarmos a este ponto, em que verdadeiramente estamos a falar de libertinagem. Eu acho que é este o termo que deve ser adequado para nos descrever aquilo que o governador do Banco de Portugal nos descrevia ontem. Eu acho que todos os que ouvimos ontem, em directo, apesar daquela solenidade, daquela bela tapeçaria que estava por detrás, daquele ar solene dos membros do Conselho de Administração (que são obviamente pessoas respeitáveis), o que ouvimos ontem – dito pelo governador – é verdadeiramente confrangedor. O que ele nos esteve a dizer foi que não foi capaz de ver o tamanho da montanha porque, em pouco tempo (de Junho para Julho), aquele Conselho de Administração que ele tinha mantido em funções, lhe tinha desobedecido, o tinha enganado, e porventura o tinha traído. E isso por quê? Porque há um conjunto de coisas que verdadeiramente saem do perímetro da regulação que o Banco de Portugal é capaz de fazer.
(…) O que está aqui em causa é que o mundo em que isto ocorre (…), um mundo financeiro que actua sem rei nem roque, porque é disso que se trata (nós ouvimos ontem, candidamente, o governador explicar-nos que havia uma série de coisas que lhe escapavam ao controle), (…) é um mundo estruturalmente desequilibrado, em que a regulação – houve muita gente que acreditou na regulação – [falhou].
(…) Ao que é que nós assistimos ontem? Assistimos a uma operação, para tapar um buraco, com uma tecnologia fácil. Isto é, se a si, ou a mim, dessem quase cinco mil milhões de euros, públicos, a bom preço, nós eramos capazes, evidentemente, de fazer uma boa parede, como o Banco de Portugal fez com esta solução. E eu desejo, muito sinceramente, que esta solução funcione (…), mas temo, justamente porque nós não sabemos muitas coisas. Como digo, usar dinheiro público deste modo é fácil, mas não sabemos contudo o que vem por aí. Até por uma razão muito simples: toda esta cultura, que é uma cultura profundamente danosa, devo dizê-lo, da financeirização, ocorre sobre uma grande iliteracia. Eu recordo-me que ainda há pouco tempo, há pouco dias quase, gestores de conta do BES me aconselhavam a comprar obrigações do BES.
(…) Eu acho muito bem que se possa gerar um clima de confiança, mas eu acho que é muito importante gerar um clima de prudência. De prudência para as pessoas e para as suas decisões. (…) [E há] uma absoluta urgência de uma revisão radical do modo como as economias, como o mundo financeiro está organizado.»

Da entrevista de José Reis à RTP2, no passado dia 4 de Agosto (a ver na íntegra)

Sob o nevoeiro que se dissipa

«Não será preciso muito para se chegar à conclusão de que a culpa (...) é do Governo e das instituições políticas europeias. Ou, ainda melhor, que a culpa é de uma ideia que ainda governa parte da Europa e, em particular, este desgraçado país. E essa ideia tem uma origem e um nome. (...) A origem está nos tempos de Bush II e o nome é trickle down economics (a economia do pingo). Trata-se da tese segundo a qual os grandes devem ter tudo pois, ao terem tudo, deixam pingar recursos para baixo, para o resto da economia. Se não forem tributados, se puderem amassar o máximo de massa possível, acumularão recursos que depois serão largados na economia. Uma ideia com tudo de falso, que esteve nas mentes da troika e do governo por ela assessorado, e que permitiu a Ricardo Salgado andar de um lado para outro sem que ninguém o incomodasse. É importante notar que essa ideia tem muitos apoiantes entre jornalistas, "economistas" (as aspas é que nem todos o são, verdadeiramente) e fazedores de opinião.»
Pedro Lains, O BES e o pingo que não pinga

«Nada há de menos transparente do que a origem e o fluxo do dinheiro numa economia. A opacidade não resulta só dos segredos que são a alma do negócio, mas também de uma má compreensão, teórica e prática, dos mecanismos de criação monetária, que afeta tanto o comum dos mortais, como os supostos especialistas. Parte da opacidade é deliberada. Uma frase, atribuída a Henry Ford, dá conta disso mesmo: "Ainda bem que a maior parte dos Americanos não sabe como na realidade funciona a banca, porque se soubesse havia uma revolução amanhã de manhã." Outra parte é consequência de ideias e teorias económicas erradas. Opacidade deliberada e ideias erradas concorrem para que a atividade financeira, incluindo a do Banco Central, decorra longe do escrutínio público. As decisões dos bancos privados e do Banco Central condicionam o destino coletivo, mas são tomadas à margem de qualquer controlo democrático porque são difíceis de entender e porque as instituições foram desenhadas para as eximir desse controlo.»

José Castro Caldas, Não há dinheiro?

«O escol neoliberal, onde pontifica Carlos Moedas, (...) recentemente agraciado com a comenda de comissário europeu, (...) "explica-nos", todos os dias, que o Estado não deve dispensar tantos recursos com a educação, a saúde, o rendimento mínimo ou o subsídio de desemprego. Pobre é pobre, não precisa de protecção. Também o senhor primeiro-ministro, quando o Tribunal Constitucional recusa propostas governamentais de diminuição de salários ou de pensões de reforma, vocifera contra os juízes e a Constituição. (...) Os exemplos desta "doutrina" são destilados todos os dias: O Estado não tem dinheiro para alimentar, com subsídios, desempregados que não querem trabalhar, como disse o ex-banqueiro Ricardo Salgado; ou os portugueses aguentam muito mais pobreza, como disse o banqueiro Fernando Ulrich. No entanto, o "Estado mínimo" (...), o Estado que não quer aturar gente pobre, nem "tem vocação para economia", está sempre disponível para salvar a banca privada. (...) Esta crise que tudo devora começou, há seis anos, a partir dos desmandos e fraudes do mundo financeiro. Ou se percebe que é aí que reside a maior podridão do sistema imoral em que vivemos ou não há cura que nos salve desta desgraça.»

Tomás Vasques, Imoralidades

Mesmo que se continue no essencial a não passar para lá da espuma das coisas, deixando praticamente intocado tudo o que as alimenta e perpetua, vão sendo cada vez mais perceptíveis, aos olhos de todos, as ideias e as estruturas que nos conduziram até aqui. Os romances sedutores que fizeram o seu caminho (como a «economia que pinga para baixo», quando liberta de interferências públicas e de mecanismos de escrutínio democrático, na senda da gloriosa supremacia dos mercados) e que foram protegidos por um manto, tão vaporoso como eficaz, de ideias falsas (como o «Estado ineficiente», a austeridade purificadora e o «viver acima das possibilidades»), estão a esboroar-se perante as opiniões públicas. Lentamente, demasiado lentamente, o nevoeiro que encobre essas ideias e estruturas vai-se dissipando, deixando assim crescentemente expostas, nas suas contradições, as malhas que de facto tecem, desde há muito, o nosso tempo.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Notas soltas


A crise do grupo Espírito Santo é um novelo intrincado. Apesar das revelações de comadres zangadas e de algum notável jornalismo de investigação, não dispomos ainda de uma noção clara e completa do que está em causa. Mesmo com a procissão no adro, porém, podemos desde já tecer algumas considerações acerca do seu significado mais amplo. 

1. Não se trata apenas de gestão danosa ou incompetente.
Não é ainda claro até que ponto é que a crise do BES envolve responsabilidades de natureza criminal, nomeadamente em termos de gestão danosa, mas há indícios de que efectivamente terá sido esse o caso. Por outro lado, coloca-se a questão de até que ponto é que a derrocada deste império financeiro teria sido evitável mediante uma gestão mais prudente ou sensata - em suma, mais competente. Seguramente, a queda em desgraça de Ricardo Salgado tem todo o atractivo da derrocada de um barão da finança, antes idolatrado, subitamente revelado demasiado humano na sua competência e probidade.
Contudo, reduzir esta crise aos seus aspectos criminais ou de competência de gestão obscurece o que ela tem de estrutural - e que a meu ver é o mais importante. Os casos do BPN, BPP, BANIF, BCP e BES, no que têm de distinto e de comum, não revelam um súbito acréscimo de incompetência ou propensão criminal entre os capitães da finança portuguesa nos últimos cinco ou seis anos. Revelam, isso sim, a vulnerabilidade da banca portuguesa no contexto da grande estagnação internacional e da crise económica portuguesa dos últimos anos. A estagnação do investimento produtivo em Portugal, a lenta deflação da bolha imobiliária, os níveis crescentes de crédito mal-parado e a cada vez maior imbricação entre o endividamento público e o endividamento bancário externo têm vindo a pôr cada vez mais em causa a viabilidade do modelo de negócio da banca portuguesa. Ainda que parcialmente compensado por tentativas mais ou menos bem sucedidas de diversificação internacional, é esta tendência que, em última instância, propicia comportamentos de gestão mais arriscados (de modo a salvaguardar os níveis de rendibilidade) e torna mais visíveis as consequências de opções incompetentes ou danosas.
2. O fim de uma era
O sector financeiro foi o pivô central da acumulação de capital na economia portuguesa desde a privatização do sector e a liberalização dos fluxos de capitais na década de 1980, permitindo a consolidação de grupos económicos que conseguiram posicionar-se à sombra do Estado para beneficiarem das principais dinâmicas da economia portuguesa nas décadas seguintes - da privatização de parte substancial da restante actividade económica ao recurso crescente às parcerias público-privadas, passando pela aposta na bonificação do crédito à habitação ou pela intermediação bancária entre o BCE e o estado português. A ajudar tudo isso, claro está, esteve sempre a forte promiscuidade entre os mundos empresarial e governativo, sobejamente ilustrada pelos 25 ministros e ex-ministros da república que nalgum momento passaram pelo BES.
Para o bem e para o mal, porém, esta era está a chegar ao fim. A vulnerabilidade económica destes "centros de decisão nacional", consequência dos constrangimentos estruturais com que se confronta a economia portuguesa como um todo, tem vindo a ser cada vez mais demonstrada - e sê-lo-á ainda mais à medida que o default soberano português se for tornando mais obviamente inevitável para todos, com o que isso implica em termos de imparidades para a banca portuguesa. No longo prazo, há duas grandes vias possíveis de resolução desta crise: a nacionalização da banca num contexto de ruptura com o quadro institucional europeu; ou a absorção dos centros de acumulação da economia portuguesa (e da banca em particular) pelo capital internacional num contexto de sangria arrastada da economia portuguesa.
3. "Não há dinheiro" quer dizer diferentes coisas em diferentes alturas.
O estado português prepara-se para injectar 4500 milhões de dólares com vista a viabilizar o "novo banco" resultante da divisão do BES em banco "bom" e banco "mau". Os contornos da operação ainda não são totalmente claros, mas a Ministra da Finanças alega que se trata de um empréstimo "sem risco". Porém, não deixa de ser legítimo que perguntemos: se é suposto que o banco "mau" concentre todos os activos tóxicos e imparidades, para que é que o banco "bom" precisa de uma recapitalização desta ordem de magnitude? Estamos a falar de um montante equivalente a mais de metade do orçamento anual para a saúde, várias vezes superior ao impacto orçamental dos chumbos do Tribunal Constitucional há poucos meses. Se o banco "bom" está assim tão necessitado de recapitalização, qual a garantia que temos que o buraco não continua a aumentar, como sucedeu no caso do BPN, e que os contribuintes não acabam por suportar as perdas? Se isso vier a verificar-se, desta vez nem sequer temos o direito de nos mostrarmos surpreendidos.
Vivemos na era do domínio da finança. Em Portugal, é um domínio com pés de barro, internacionalmente subordinado e totalmente dependente do Estado. Mas isso não o torna menos perigoso para todos nós.
(publicado originalmente no Expresso online; o cartoon é da Criada Malcriada)

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Dúvidas sobre o BES

Se percebi o novo balanço do BES (“banco mau”), este ficará com activos considerados tóxicos que serão compensados pelo capital dos accionistas, credores com dívida subordinada e depósitos dos seus grandes accionistas. Fica uma dúvida: se os valores destes últimos não chegarem, quem vai tapar o buraco?

No balanço do “Novo Banco” ficam os credores seniores, os restantes depositantes e o novo capital vindo do fundo de resolução. Ou seja, antes de reembolsar o fundo de resolução pelo seu capital, os credores dívida sénior (muita dela garantida pelo Estado) terão prioridade nas receitas de uma futura liquidação do “Novo Banco”, certo? Vale a pena lembrar que o BES nas suas operações quotidianas era ainda um banco com prejuízo. Estes 4 900 milhões não só podem ser curtos, como dificilmente reembolsáveis. 

Finalmente, imagino que os empréstimos do BCE ao “Novo Banco” tenham super-senioridade, certo?

Para melhor ilustrar as minhas dúvidas, fiz um boneco tosco com o que penso ser o balanço (obviamente simplificado) dos dois bancos.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Admirável Banco Novo

«Do nome do banco, já registado por outros, à coisa, tudo remendado, apressado, mal feito, enganador, enganador, enganador. As únicas preocupações evidentes foram a auto-justificação do Governador do Banco de Portugal e a elaboração de uma "narrativa" dolosa, destinada a impedir que se diga o que aconteceu: o BES faliu e foi nacionalizado. Vai ser "limpo" com o nosso dinheiro e depois vendido barato. Alguém vai lucrar e muito. Tudo o resto é propaganda.»

José Pacheco Pereira, O Navio Fantasma: Tudo feito em cima do joelho

A escolha de «Novo Banco», para designar a parte supostamente limpa e viável do BES, faz lembrar aquelas pessoas que ao chegar a uma entrevista de emprego - e sem que lhes tenha sido perguntado - se apressam a garantir que são «muito honestas».

ATTAC: A banca e o BES em debate


«A actual crise no Banco Espírito Santo é a maior de sempre no sistema bancário português. Com um resultado negativo recorde de quase 3 600 milhões de euros no primeiro semestre de 2014, o BES é mais um exemplo desastroso de uma crise financeira que se arrasta há quase seis anos. Em Portugal, nenhum banco saiu incólume. Só graças aos empréstimos de curto prazo do Banco de Portugal e aos fundos para a recapitalização da banca é que os bancos portugueses têm sobrevivido. Os apoios públicos não têm tido, no entanto, qualquer contrapartida por parte da banca, nem na gestão dos seus balanços, assumindo de vez as perdas totais de forma a permitir uma saudável retoma da sua actividade, nem nas suas prioridades de concessão de crédito, nomeadamente na urgente recuperação do investimento produtivo e criador de emprego.
Com uma banca que hoje só serve de lastro à economia portuguesa e um modelo de sistema financeiro que está na origem da actual crise económica, é urgente debater no espaço público o que realmente mais importa – as políticas públicas e a redefinição do sistema financeiro de modo a torná-lo compatível com o interesse público e o desenvolvimento económico e social do país. Sabemos da necessidade de um sector bancário saudável para uma economia saudável, mas não estamos dispostos a pagar a mera socialização das perdas privadas. A falência do actual modelo deve ser pois uma oportunidade para colocar a banca ao serviço do emprego e do progresso social.»

Organização: Attac Portugal

domingo, 3 de agosto de 2014

A «parte sã», «o problema» e o risco moral do Estado Social

«Ainda José Sócrates resistia à ideia de negociar um empréstimo com a troika, como a Grécia e a Irlanda tinham feito, em 2010, quando o Governador Carlos Costa chamou os principais banqueiros portugueses, ao terceiro piso da sede do Banco de Portugal, na Rua do Comércio, número 148.
No dia 4 de Abril de 2011, pelas 10h30 da manhã, Carlos Costa (...) aconselha os banqueiros: "Vocês não podem continuar a financiar [as emissões de dívida pública portuguesa]. O risco é afundarem-se os bancos, a parte sã, e a República, que é a parte que criou o problema". Era esta a visão do regulador do sistema bancário: os bancos eram a "parte sã", a República "o problema".
Vale a pena dar um salto no tempo, para o mesmo local, e ouvir o que tem, hoje, a dizer sobre "o problema" (...) o ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar: "Excesso de crescimento do crédito e da dívida privada; a persistência no défice orçamental excessivo; a exagerada transferência de recursos para sectores de bens não transaccionáveis; a diminuição da concorrência; a procura de rendas em sectores regulados e protegidos."
Nesta perspectiva, temos, então, cinco causas para o problema. Mas apenas uma delas, a segunda, (...) pode ser atribuída à República. E as outras? (...) Gaspar não o diz, mas (...) todas essas causas do problema nascem, precisamente, da "parte sã", como Carlos Costa apelidou os bancos.»

Paulo Pena, Jogos de Poder (pág. 15-16)

«Em 2008 Jardim Gonçalves era julgado em praça pública e, felizmente, na justiça, por vários crimes económicos. (...) Jorge Jardim Gonçalves era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal. (...) Em 2008 explodia o caso BPN, banco da confiança de altos quadros do PSD, entre eles Cavaco Silva. (...) José Oliveira e Costa era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal. (...) Meses depois, descobrimos o BPP. (...) João Rendeiro era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal.
(...) A administração Salgado, ontem destacada pela academia, respeitada pela comunicação social e sempre muito bem relacionada com o Estado, tornou-se no último bode expiatório. Onde esteve então a troika, que nos últimos três anos se ingeriu em todas as decisões democráticas do país, comentou e criticou cada direito laboral, cada nível salarial, sem nunca ter reparado nas imparidades que se avolumavam no GES/BES? (...) Ricardo Salgado é, hoje, o último banqueiro que é preciso julgar para que o sistema bancário possa, finalmente, voltar ao normal. Jorge, José, João e Ricardo. Todos foram os últimos a cair para que tudo pudesse ficar na mesma.
»

Mariana Mortágua, Ricardo Salgado, o último banqueiro?

«Não passa uma semana sem que se ouça alguém argumentar que a generosidade do Estado social comporta um risco moral, na medida em que dá incentivos perversos aos seus beneficiários. Os pobres encostam-se ao rendimento mínimo e os desempregados ao subsídio de desemprego, alimentando uma cultura de dependência com efeitos perversos para o conjunto da sociedade. Curiosamente, os mesmos que se apressam a falar de risco moral associado ao Estado social não aplicam a mesma bitola ao comportamento de banqueiros.
É sintomático e vale a pena colocar a questão em perspetiva. Portugal gasta hoje, por ano, com o RSI, perto de 300 milhões de euros, que servem para atenuar a pobreza de quase 250 mil portugueses; já com o subsídio de desemprego gastamos 2 mil milhões de euros, para cerca de 300 mil beneficiários. Agora comparem com o que temos tido de pagar para compensar os comportamentos moralmente inaceitáveis de muitos banqueiros. E, com o que se vai sabendo do universo BES, o futuro anuncia-se, a este propósito, muito sombrio.
(...) Há, contudo, boas razões para acreditar que a explicação para os escândalos é bem profunda e não resulta apenas da ação de uns quantos banqueiros, mas, sim, dos incentivos dados por uma cultura institucional que promove comportamentos moralmente inaceitáveis. O verdadeiro risco sistémico está no quadro organizacional e de regulação do sistema bancário. (...) Enquanto andámos entretidos na Europa a promover as miríficas reformas estruturais, que iriam devolver a competitividade às economias, ou a restaurar os Estados sociais, fomo-nos esquecendo onde estava o epicentro da crise. No sistema financeiro.»

Pedro Adão e Silva, Risco moral

sábado, 2 de agosto de 2014

Credibilidade e confiança (I)

 

«Não há nenhuma razão que aponte para que haja uma necessidade de intervenção do Estado num banco que tem capitais próprios sólidos, que apresenta uma margem confortável para fazer face a todas as contingências, mesmo que elas se revelem absolutamente adversas, o que não acontecerá com certeza. (...) A exposição que o banco tem ao Grupo Espírito Santo é hoje conhecida com detalhe, mas não implica a perda dos direitos que existem do banco sobre o grupo. (...) Os contribuintes portugueses não serão chamados a suportar perdas privadas, (...) [são os privados que] têm de suportar as consequências dos maus negócios que fazem. (...) [Os investidores] sabem que o Estado não intervém para, por exemplo, minimizar as perdas que possam estar associadas a maus investimentos, a más decisões, a maus projetos, a intenções que se revelam enviesadas face àquilo que são as regras de mercado.»

Pedro Passos Coelho, Primeiro-ministro de Portugal (11 Julho 2014)

«Em qualquer caso, é desejável que um accionista ou dois accionistas importantes mostrem interesse pelo banco, entrem no banco e reforcem o seu capital, mesmo que as contingências de risco se limitem ao mínimo. (...) O BES possui uma almofada de capital suficiente para acomodar possíveis impactos negativos, resultantes da exposição ao braço não financeiro do GES, sem comprometer o cumprimento dos racios mínimos de capital. Importa salientar que o Banco de Portugal não antecipa um impacto relativo relevante, na posição de capital do BES, resultante da situação da filial do BES Angola. (...) Foi identificada no final de Novembro de 2013 uma situação patrimonial grave, nas contas individuais da Espírito Santo International, a ESI, causada por um inusitado acréscimo de materialidade muito significativa do respectivo passivo financeiro. (...) Não conheço nenhuma instituição de supervisão europeia que tenha levado o nível de supervisão intrusiva ao ponto de ir inspeccionar as contas de clientes dos bancos.»

Carlos Costa, Governador do Banco de Portugal (18 Julho 2014)

«O Banco de Portugal tem sido peremptório e categórico a afirmar que os portugueses podem confiar no Banco Espírito Santo dado que as folgas de capital são mais que suficientes para cumprir a exposição que o banco tem à parte não financeira, mesmo na situação mais adversa. E eu, de acordo com a própria informação que tenho, do Banco de Portugal, considero que a actuação do banco e do governador, tem sido muito correcta. (...) Haverá sempre alguns efeitos, mas que eu penso não vêm do lado do banco, vêm da área não financeira. Se alguns cidadãos e investidores vierem a suportar perdas significativas podem adiar decisões de investimento ou mesmo alguns deles podem vir a encontrar-se em dificuldades muito fortes. Por isso, não podemos ignorar que algum efeito pode vir para a economia real, por exemplo em relação àqueles que fizeram aplicações em partes internacionais do grupo, que estão separadas do próprio banco em Portugal.»

Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República Portuguesa (21 Julho 2014)

«O Estado vai entrar no capital do BES, avançaram esta sexta-feira à noite a SIC e a TVI. A estação de Queluz diz que fontes oficiais do Governo confirmam que o modelo encontrado para resolver rapidamente o problema do BES passa pela entrada de dinheiro público no banco. A estação de Carnaxide acrescenta ainda que a decisão vai ser comunicada já no próximo domingo à noite. (...) A entrada do Estado no capital do BES "deverá ser feita por duas vias: uma entrada directa através da subscrição de acções pelo Estado português e um empréstimo em regime de capital contingente. Este regime consiste em obrigações que serão convertíveis em acções se não forem pagas no final do prazo previsto", destaca a SIC.» (Jornal de Negócios, SIC e TVI: Estado vai entrar no capital do Banco Espírito Santo).

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Pobres de nós

O facto da pobreza ser fundamentalmente relacional implica que todos os pobres sejam, em certo sentido, pobres de nós. Dizem-no as ciências sociais, mas também, de forma especialmente evocativa, a literatura.

A pobreza é um exemplo de um conceito com uma carga semântica muito ampla e que, em grande medida por isso mesmo, é objecto de múltiplas formas de definição e operacionalização no contexto das ciências sociais. Segundo diferentes tradições e abordagens, podemos encontrar a pobreza definida, operacionalizada e medida de forma absoluta ou relativa; em termos de rendimento ou consumo; face a um limiar de rendimento, a um limiar calórico ou a um cabaz de necessidades básicas; ou ainda enquanto conjunto multidimensional de privações definidas em termos de capacidades humanas consideradas fundamentais - e isto para referir apenas algumas das abordagens mais comuns.
Nenhuma destas abordagens é intrinsecamente mais correcta, já que traduzem aspectos distintos (e interrelacionados) da realidade social. Para determinados propósitos pode ser mais relevante a questão da incidência e profundidade da privação absoluta; para outros a questão da pobreza relativa, que na verdade não é mais do que outro nome da desigualdade.
Em todo o caso, a tendência das últimas décadas tem sido no sentido do entendimento da pobreza de forma crescentemente multidimensional e relacional. Multidimensional no sentido do reconhecimento da importância das privações em diferentes domínios materiais e imateriais (rendimento, saúde, educação, liberdade face à opressão, autonomia, dignidade,...). Relacional num primeiro sentido, de "relativo" (pois não se é pobre senão em relação aos referenciais da sociedade em que se vive), e num segundo sentido mais fundamental, de "produzido relacionalmente" (pois a privação é sempre gerada, enquadrada e perpetuada por processos sociais).
A este propósito, a mais notável definição de pobreza que alguma vez vi provém da literatura - e embora se encontre num livro publicado já em 2004 ("Bocas do Tempo", de Eduardo Galeano), encontrei-a pela primeira vez apenas há dias: "Pobres são os que têm a porta fechada". Eis como, com notável economia de palavras, se pode evocar verdades profundas: a multidimensionalidade (são várias e de diferentes tipos as portas que se nos podem fechar); os elementos intrínsecos de exclusão, impotência e ofensa à dignidade; e o carácter relacional (cada porta que se fecha é fechada por alguém - e há sempre quem entre e saia como lhe aprouver).
Há por isso muitas e diferentes formas de ser pobre. São pobres os 1,8 milhões de habitantes de Gaza bombardeados sem possibilidade de fuga após décadas de dignidade violentada. São pobres os migrantes que enfrentam todos os riscos em barcos apinhados para atravessarem o Mediterrâneo em busca de uma solução. São pobres os 10% de agregados familiares com crianças dos Estados Unidos que se revelam consistentemente incapazes de proporcionar uma alimentação adequada e nutritiva a essas mesmas crianças. Como são pobres os que, na Grécia, em Espanha ou em Portugal, perderam o emprego, a casa, o acesso a tratamentos de saúde ou a possibilidade de continuarem a estudar - e com eles a dignidade ou a esperança.
São-no todos na medida em que se deparam com diferentes tipos de portas fechadas - as quais resultam de processos políticos e arranjos sociais geradores de exclusão que, em última instância, ofendem a humanidade e a dignidade de todos nós.
(publicado originalmente no Expresso online)