terça-feira, 26 de agosto de 2014

Lágrimas de crocodilo (pela insustentabilidade induzida da Segurança Social)

António Bagão Félix fez as contas: o proclamado défice da Segurança Social deve-se essencialmente a dois factores. Por um lado, «ao desiquilíbrio da CGA, em que o Estado empregador forçou o Estado aposentador a ter mais despesa e menos receita». Por outro, «às consequências do elevado desemprego, que retiram à SS cerca de 8 mil milhões de euros», um valor que é a soma de três parcelas: «despesa com subsídio de desemprego, perda de receitas (TSU dos desempregados subsidiados e dos não-subsidiados, que são mais de 50% do total) e o efeito do princípio da equivalência contributiva, em que a SS continua a acumular direitos formados para as futuras pensões de desempregados sem receber as correspondentes contribuições».

Sendo evidentes os efeitos directos e indirectos da austeridade na degradação das contas da Segurança Social, o governo prefere contudo continuar a concentrar o foco no branqueador «argumento demográfico» e na fraudulenta narrativa das «forças de bloqueio» e dos «direitos adquiridos», assim procurando instigar, sempre que pode, o «conflito entre gerações». Foi isso que sucedeu na Festa do Pontal, onde Passos Coelho se queixou, com incendiária ironia, que «só os jovens e aqueles que estão hoje a começar a sua vida é que podem perder direitos, os outros não podem», acrescentando, num ataque mal disfarçado ao Tribunal Constitucional, que essa é «uma estranha forma de ver a equidade, uma estranha forma de ver a solidariedade».

É porém muito curioso constatar que este discurso, de aparente preocupação com a sustentabilidade financeira da Segurança Social, seja feito apenas um mês depois da aprovação, na Assembleia da República (com os votos favoráveis dos partidos da maioria), de um diploma que «autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico da exploração e prática do jogo online» e que significa na prática, como assinalou oportunamente o José Vítor Malheiros, escancarar as portas «à privatização dos chamados jogos de fortuna e azar, como a lotaria, o totobola e o euromilhões, com a desculpa aldrabona de que é preciso regulamentar o jogo online e que isso passa pela sua liberalização».

Não é difícil antever as consequências desta iniciativa governamental: ao permitir a entrada dos privados na esfera dos jogos sociais, destruindo assim «aquela que tem sido a argumentação do Estado português na União Europeia em defesa do monopólio do jogo por parte da Misericórdia [de Lisboa] - o seu objectivo social, a necessidade de não promover o vício do jogo, etc...», estamos perante «um gesto contra a Segurança Social, que mina uma fonte essencial do seu financiamento; um gesto contra os pobres, que beneficiam dos serviços da Misericórdia; e um gesto em favor das grandes empresas de jogo», como lembra, e bem, o José Vítor Malheiros. É quando a diversificação das fontes de financiamento se converte num pressuposto cada vez mais incontornável de uma qualquer reforma credível e responsável da Segurança Social que o governo decide alienar uma das suas fontes de receita. Para de seguida verter, com a costumeira hipocrisia, lágrimas de crocodilo pela insustentabilidade do sistema.


Sublinhe-se aliás (como mostra o gráfico), que não é apenas o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social que beneficia das receitas dos jogos sociais (detendo cerca de 2/3 do montante total dessas receitas, na média anual dos últimos anos). Os domínios da Educação, Saúde, Cultura, Desporto e Juventude são igualmente beneficiários dos resultados líquidos dos jogos sociais. O que significa que não se trata apenas do desvio de fundos para o combate à pobreza e à exclusão, ou para o apoio social a famílias, crianças, idosos e deficientes. O que está em causa é igualmente substrair recursos que têm financiado, entre outras áreas: a protecção civil, emergência e socorro; o fomento das actividades e infraestruturas desportivas; a actuação em áreas de diferenciação na saúde (como a oncologia, a saúde mental, as dependências aditivas, as doenças raras ou os cuidados continuados) ou o fomento cultural e as políticas de juventude.

7 comentários:

  1. Caro Nuno,

    Não podia estar mais de acordo como expresso e repetido neste artigo. Acho até que seria interessante ver como o Governo, na sua sanha privatizante tem sistematicamente decidido "alienar uma das suas fontes de receita".

    Foi aqui bastante explorada a situação dos CTT (já nos teremos todos esquecido?), mas no fundo pode ser aplicado a tudo. Começando na EDP, onde ao vender tudo aos chineses abdicou da sua fracção dos lucros da companhia (1000 milhões o ano passado não foi?), é o caso chocante da REN e de tudo o que é infra-estrutura.

    No fundo, este privatizar sem estratégia é a estratégia.

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  2. Sou leitor assiduo do ladroes de bicicletas mas não posso concordar com esta teoria. leu o pedido de authorização legislativa ?
    Cumprimentos

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  3. os jogos sociais continuarão a ser um exclusivo da santa casa e não serão explorados por privados. as velhinhas poderão continuar a queimar os euros nas raspanhinhas à vontade para ajudar na caridadezinha.

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  4. Caro «experiencia»,
    Li na íntegra o diploma aprovado pela Assembleia da República. Em nenhuma passagem do documento é explicitamente referido que o mesmo exclui os jogos sociais.
    Mas mesmo que essa clarificação tivesse sido feita (e não o foi), a questão essencial é a da «inoportunidade» (no mínimo) desta iniciativa governamental: no momento em que está se está a discutir, com a Comissão Europeia, a preservação do monopólio público dos jogos sociais, o governo decide fragilizar os argumentos (que o José Vítor Malheiros expõe no seu artigo) que permitem sustentar a posição de defesa do interesse nacional (e social).
    E talvez convenha que nos recordemos como certos processos começam e tendem a acabar (basta ver como evoluíram as justificações para o recurso a taxas moderadoras na saúde e propinas no ensino superior).
    Quanto às velhinhas, podem continuar a esturrar euros em jogos idênticos às raspadinhas, mas geridos por privados (a que se terá que somar, forçosamente, o lucro das actividades que começarem a desenvolver).

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  5. "escancarar as portas «à privatização dos chamados jogos de fortuna e azar, como a lotaria, o totobola e o euromilhões,"

    Olhando para o documento aprovado:

    "Artigo 2:

    2 -Encontram-se excluídos do âmbito de aplicação do RJO:

    b) A Lotaria Nacional, regulada pelo Decreto-Lei n.º 40 397, de 24 de novembro de
    1955, alterada pelos Decretos-Leis n.ºs 43 399, de 15 de dezembro de 1960, e
    120/75, de 10 de março, e pelo Decreto-Lei n.º 479/77, de 15 de novembro,
    alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 11/88, de 15 de janeiro, 96/91, de 26 de
    fevereiro, e 200/2009, de 27 de agosto;
    c)Os concursos de apostas mútuas regulados pelo Decreto-Lei n.º 84/85, de 28 de
    março;
    d) O Joker, regulado pelo Decreto-Lei n.º 412/93, de 21 de dezembro, alterado pelos
    Decretos-Leis n.ºs 225/98, de 17 de julho, 153/2009, de 2 de julho, e 200/2009,
    de 27 de agosto;
    e)A Lotaria Instantânea, regulada pelo Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de dezembro;
    f)O Euromilhões, regulado pelo Decreto-Lei n.º 210/2004, de 20 de agosto, alterado
    pelo Decreto-Lei n.º 44/2011, de 24 de março;
    g) Os jogos sociais do Estado regulados pelo Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de
    novembro; "

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  6. "Li na íntegra o diploma aprovado pela Assembleia da República. Em nenhuma passagem do documento é explicitamente referido que o mesmo exclui os jogos sociais."

    Artigo 2 do diploma:

    "
    2 -Encontram-se excluídos do âmbito de aplicação do RJO:
    b) A Lotaria Nacional (...)
    c)Os concursos de apostas mútuas regulados pelo Decreto-Lei n.º 84/85, de 28 de
    março;(...)
    d) O Joker, (...)
    e)A Lotaria Instantânea(...)
    f)O Euromilhões,(...)
    g) Os jogos sociais do Estado (...)"

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  7. Caro Carlos Guimarães Pinto,

    Talvez esteja enganado, mas presumiria que estamos a falar do «Decreto da Assembleia 272/XII», aprovado a 30 de Julho de 2014 [http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=18212].

    Se assim for, o número 2 do Artigo 2.º não tem - como se pode constatar - a redacção que o Carlos referenciou nos comentários anteriores.

    E sublinhe-se, já agora, o número 10 do Parecer elaborado pela SCML em relação à Proposta de Lei n.º 238/XII [disponível aqui: http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=38562]:
    «10. Com a aprovação desta proposta, o Estado Português deixará de poder invocar as razões imperiosas de interesse geral referidas em 5., em futuros pleitos, para a manutenção de direitos exclusivos de exploração das lotarias e apostas mútuas pela SCML. A jurisprudência do TJUE tem sido muito clara sobre esta matéria, decidindo sistematicamente pela incompatibilidade com o direito comunitário dos modelos dos Estados Membros que alargam muito a oferta e as oportunidades de jogo a dinheiro, por um lado, e por outro mantém direitos exclusivos invocando a protecção da ordem públoica, dos consumidores e das famílias.»

    Por último, não deixa de ser curiso que esta tenha sido uma iniciativa da Secretaria de Estado do Turismo (Ministério da Economia) e não do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social.

    Cumprimentos

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