Da Factura da Sorte, o sorteio de automóveis topo de gama pela Autoridade Tributária para incentivar o pedido de facturas pelos consumidores, já se disse quase tudo: que é ofensiva, rasca, insultuosa da cidadania, repugnante, pimba, que transforma os cidadãos em inspectores fiscais ou que é disparatada na medida em que muitos dos potenciais vencedores dos sorteios têm necessidades muito mais prementes e não terão sequer meios para manter os carros em questão. Concordo com quase tudo isto, mas além do mais acho que esta medida é, no longo prazo, contraproducente. E é contraproducente porque presume - erradamente - que a motivação adicional extrínseca que introduz é neutra em relação à motivação intrínseca.
Explico-me melhor. Motivação intrínseca é a que decorre de acharmos ou sentirmos que uma determinada acção é correcta ou desejável em si mesma. Motivação extrínseca é a que resulta de considerarmos que temos algo a ganhar, de forma certa ou potencial, como resultado "exterior" à realização da acção. Neste caso, a motivação intrínseca potencial consiste na disponibilidade de cada um para viabilizar o funcionamento de um sistema em que todos contribuam na medida do seu nível de rendimento ou consumo para financiar a provisão de bens públicos, bem como medidas de redistribuição determinadas por critérios de justiça social. A motivação extrínseca consiste na probabilidade (ínfima, naturalmente) de ganhar um dos automóveis sorteados. A Autoridade Tributária considera que ao introduzir esta medida está a reforçar a estrutura global de incentivos que leva os consumidores a pedir facturas, pois presume que aumenta a motivação extrínseca sem afectar a motivação intrínseca.
Porém, não é a verdade que a motivação intrínseca não seja afectada: ao dar um sinal directíssimo de que encara a disponibilidade cívica para viabilizar o contrato social como algo que é essencialmente determinado por uma análise tacanha dos custos e benefícios individuais por parte de cada um, a Autoridade Tributária está a fazer uma verdadeira campanha de sensibilização nacional em torno deste tema - mas no sentido contrário ao que seria desejável. De forma directa, televisionada e particularmente eficaz, está a desvalorizar a motivação intrínseca e a minar adicionalmente e de forma duradoura as bases do contrato social. Muitos, e neles me incluo, sentir-se-ão tentados a responder ao incentivo de forma contrária ao esperado, simplesmente como forma de manifestarem o seu repúdio face a esta extraordinária demonstração de venalidade. Muitos mais interiorizarão adicionalmente a ideia que contribuir para a viabilização financeira do contrato social é algo que só se faz a contra-gosto e mediante uma punição ou recompensa potenciais que o justifiquem.
Porém, não é a verdade que a motivação intrínseca não seja afectada: ao dar um sinal directíssimo de que encara a disponibilidade cívica para viabilizar o contrato social como algo que é essencialmente determinado por uma análise tacanha dos custos e benefícios individuais por parte de cada um, a Autoridade Tributária está a fazer uma verdadeira campanha de sensibilização nacional em torno deste tema - mas no sentido contrário ao que seria desejável. De forma directa, televisionada e particularmente eficaz, está a desvalorizar a motivação intrínseca e a minar adicionalmente e de forma duradoura as bases do contrato social. Muitos, e neles me incluo, sentir-se-ão tentados a responder ao incentivo de forma contrária ao esperado, simplesmente como forma de manifestarem o seu repúdio face a esta extraordinária demonstração de venalidade. Muitos mais interiorizarão adicionalmente a ideia que contribuir para a viabilização financeira do contrato social é algo que só se faz a contra-gosto e mediante uma punição ou recompensa potenciais que o justifiquem.
Que há coisas - muitas coisas - que são feitas principalmente por motivação intrínseca é um facto bem conhecido de todos nós. E é também sabido que a introdução de motivações extrínsecas afecta a motivação intrínseca, podendo reduzi-la significativamente. O estudo clássico nesta matéria é o de Lepper, Greene e Nisbett, que numa experiência dividiram as crianças de um jardim infantil em três grupos a quem distribuíram papel e marcadores. A todas as crianças foi assim dada a oportunidade de realizarem uma actividade - desenhar - por elas considerada lúdica e agradável, isto é, carregada de motivação intrínseca. Mas a um dos grupos de crianças foi adicionalmente dada uma recompensa previamente anunciada (um certificado), enquanto o segundo grupo não recebeu qualquer motivação extrínseca e o terceiro grupo (de controlo) recebeu a recompensa sem anúncio prévio. Como previa a hipótese, as crianças do grupo a quem fora previamente anunciada a recompensa demonstraram menos interesse na actividade do que as restantes - ou seja, a motivação extrínseca reduziu a motivação intrínseca.
Este efeito de corrupção da motivação tem até um nome: chama-se efeito de superjustificação. Outro exemplo bem conhecido é o da doação de sangue, acto de civismo e generosidade por excelência: a oferta de um pagamento monetário como contrapartida pela doação de sangue pode motivar alguns doadores adicionais, mas corrompe a motivação intrínseca dos doadores altruístas e, em termos agregados, tende a reduzir a oferta de sangue. A obra seminal nesta matéria é The Gift Relationship, de Richard Titmuss, mas este efeito foi subsequentemente comprovado empiricamente numa variedade de contextos. É o principal motivo pelo qual a Organização Mundial de Saúde recomenda que a doação de sangue não seja remunerada.
Curiosamente, o livro de Titmuss deu origem a um aceso debate teórico no início da década de 1970 em torno do efeito de corrupção da motivação, em que Robert Solow e Kenneth Arrow (ambos vencedores do "prémio Nobel" da Economia) assumiram um lugar de destaque. Tanto um como o outro procuraram argumentar, contra Titmuss, que a motivação extrínseca, seja ela qualquer for, deveria simplesmente adicionar-se à motivação intrínseca pré-existente. No caso do sangue, o aumento do preço deveria conduzir sempre a um aumento da oferta, em consequência de uma lei universal do comportamento humano. Só que o comportamento humano, felizmente, é mais complexo e diverso do que presume o modelo do homo oeconomicus. Não só existem almoços grátis, como existem almoços que só são servidos de graça.
Aliás, é significativo que aqueles que menos disponibilidade têm para o entender sejam precisamente os economistas formatados na ideologia da prossecução estreita e tacanha do interesse próprio. Em numerosos estudos de economia experimental em que economistas ou estudantes de economia foram comparados enquanto sujeitos com grupos de controlo (não economistas), os primeiros mostraram-se consistentemente mais propensos a porem em prática o tipo de comportamento auto-interessado, não-cooperativo e egoísta previsto e afirmado pela teoria - revelando que esta, apesar de errada, é performativa, pois transforma a realidade no sentido postulado.
Regressando à Factura da Sorte, o que isto tudo nos diz é que é muito provável que a introdução deste esquema de incentivos por parte da Autoridade Tributária, além de politica e eticamente repugnante, seja também contraproducente devido ao efeito de corrupção da motivação. Para aferi-lo, não basta dizer, por exemplo, que o número de facturas emitidas com NIF aumentou 45% em Janeiro de 2014 face ao mês anterior, pois o efeito da motivação extrínseca perdura apenas enquanto dura o esquema de incentivos, enquanto que o efeito de corrupção da motivação é potencialmente muito mais duradouro.
Para promover eficazmente a cidadania fiscal, o que é necessário é introduzir verdadeira justiça fiscal, de modo a que todos sintam que todos contribuem na medida do que podem, bem como maior rigor e utilidade social na afectação da despesa pública, de modo a que todos sintam que o que pagam é justificado. O que a Factura da Sorte vem confirmar mais uma vez, a despeito dos indícios de que se trata de uma má ideia mesmo em termos de eficácia, é que vivemos no tempo da corrupção geral e da venalidade universal, em que tudo se tornou objecto de troca e do comércio mais rasteiros. Entre estes decisores políticos, os banqueiros caídos em desgraça das primeiras páginas dos jornais e outros corruptores activos e passivos, há diferenças de grau, mas não de qualidade.
(publicado originalmente no Expresso online)
(publicado originalmente no Expresso online)
Está na perfeita medida do modelo ideológico de quem governa. Se tínhamos dúvidas está aqui escarrapachado neste cretino concurso.
ResponderEliminarEu gosto de pagar impostos , não gosto de dar esmolas seja a quem for ou pelo motivo for. Contudo, vejo-me obrigada a fazê-lo, apesar da altíssima taxa de imposto que servem de pouco para o efeito que deveriam ter.
Ivone Melo
Eu exigia sempre facturas, por uma questão de principio cívico. E sentia-me ofendido quando me sugeriam que sem factura pagava menos 23%.
ResponderEliminarMas estes "senhores" fizeram-me mudar a minha posição.
Continuo a defender o pagamento de impostos, e estou mais exigente quanto ao que espero em troca, ou seja estado social.
Mas impostos justos e progressivos.
O IVA não é justo nem progressivo.
Por causa deste imposto, um quarto do meu ordenado liquido vai para os cofres do estado. fosse eu um banqueiro ou um trabalhador a ordenado mínimo.
Assim , deixei de pedir facturas desde que esta fantochada do carro começou, e sempre que puder não colaborarei com o estado na cobrança de um imposto que acho injusto.
E apesar de continuar a defender o pagamento de impostos, tudo farei para que este imposto seja boicotado.
NÃO PEÇO FACTURAS, O DINHEIRO DO IVA MESMO QUE NÃO FIQUE NO MEU BOLSO , SEMPRE FARÁ MAIS FALTA AO COMERCIANTE DO QUE AOS GATUNOS QUE NOS GOVERNAM.
Muito bom. E muito bem documentado. Parabéns.
ResponderEliminarDe
Eppur si muove...
ResponderEliminarA propósito dum "enigmático" "Eppur si muove", que todavia soa a desculpabilização dos fautores da "factura da so,rte" e defesa deste modelo de sociedade podre e corrupta apetece dizer em defesa da verticalidade e dos princípios que a diferença de posturas (cívicas mas não só) entre os diversos actores das questões sociais é abissal.
ResponderEliminarAs posições de Ivone Melo e de Álvaro de Campos contrastam fortemente com um habitual crítico de tudo o que seja publico e de tudo o que seja cidadania,precisamente o utilizador da frase atribuída (provavelmente de forma errada) a Galileo Galilei
Por exemplo, podia ler-se aqui há uns tempos um comentário do sr jose em que se defendia a fuga aos impostos de tubarões como Soares dos Santos nestes termos:
""Se enganou alguma vez o fisco - o que é muito provável - não lho levo a mal, porque conhecendo que no destino dos impostos se inclui o sustento de muito corrupto e muita malandrangem, tenho-o por medida de legítima auto-defesa".
Ricardo Salgado curiosamente defendeu e praticou o mesmo, embora hipocritamente (sejamos benévolos) defendesse o contrário para cidadão ouvir quando afirmava que "as pessoas têm de aprender que devem pagar impostos".
Depois foi o que se viu e vê.
A "malandragem e a corrupção" foi apanhada no virar da esquina da realidade e dos factos.
O eppur si muove move-se de acordo com os altos princípios de quem os pratica.
De
Muito bom texto
ResponderEliminarA.Silva
Há uma falácia no raciocínio do Álvaro de Campos. O IVA não leva XX% do rendimento líquido dele e do banqueiro, de assim fosse não seria um imposto cego. O IVA leva XX% do valor de um produto, e esse valor tem um peso distinto no rendimento líquido do Álvaro e do Banqueiro.
ResponderEliminarImaginemos uma bica que custe 1,00€ s/IVA. Com XX% a bica fica a 1,XX%. Esse XX será diferente quando comparado com o rendimento líquido do banqueiro ou do Álvaro. Daí que a verdade de o IVA não ser progressivo ser verdadeira. Daí que seja um imposto cego, que depriva de rendimentos em diferente grau quem menos recebe (mais deprivado) e quem mais recebe (mais deprivado).
Quanto às incoerências da direita sobre o dinheiro a dar para as contribuições sociais, e as abébias a dar às impresas, recomendo este vídeo do Daily Show de Março (http://thedailyshow.cc.com/videos/v9wjc4/fox-news-welfare-academy)
Lá como cá, a treta é a mesma.
alem do mais ninguem precisa de me controlar.
ResponderEliminarO pedido de fatura não deixa de ser um controlo ao contribuinte.
Comentei os comentários.
ResponderEliminarComentando o texto: a percepção de que todos ganham se todos pagarem é uma evidência intrínseca que se opõe à intrínseca certeza de que quem consegue não pagar tem uma vantagem que ninguém desdenharia obter se pudesse fazê-lo em segurança e conforto.
Mais do que os prémios, todo o processo 'desconforta' o infractor e assegura a íntrínseca certeza de que é meu direito que todos e cada um pague os impostos que lhe cabem, por forma a que eu tenha a extrínseca vantagem de vir a pagar menos - isto caso abrande a sanha distributiva e o decaia o credo do tudo a todos.
Ideias com pré-disposições em relação ao comportamento humano, ainda por cima sem dados empíricos, só poderão ser erradas. Portanto o teu achismo que se uma pessoa poder não pagar não paga, está certamente errada no total do contexto humano.
EliminarCaro Anónimo,
ResponderEliminarO pedido de factura com número de contribuinte (aquela que abilita malta sem carta a carros) pode ser visto como um controle ao contribuinte singular(*).
O pedido de factura sem número de contribuinte já se torna mais complicado de justificar como tal.
(*) - assumindo a generalização que todos os que passam factura são colectivos e todos os que recebem são singulares.
O tema do post é muito claro e passa pelo denunciar do cariz de pendor neoliberal duma medida governamental que ofende a cidadania e que mostra a sua marca "corruptiva e venal ".
ResponderEliminarEscrito com a limpidez das coisas pensadas e sustentado com o rigor do que é estudado, este texto tem uma outra preciosíssima qualidade. Põe em questão de forma directa uma frase popularizada por Friedman e seguida a preceito por um dos mais beatos (sob vários aspectos) da nossa praça.
(Permita-se a afirmação, uma pequena bofetada na prosápia feita de certezas axiomáticas entre as certezas de pés de barrro do neoliberalismo insane).
O resto é perfeitamente secundário, assuma o resto o dar o dito pelo não dito ou exercícios intrínsecos e extrínsecos que fogem ( mais uma vez) do fundamental do que se diz no post e do que se debate.
De
E para evitar falsas leituras do que digo, explicito que quando falo em "intrínsecos e extrínsecos" no meu comentário anterior, não me refiro às "motivações intrínsecas e extrínsecas", referidas tão acertadamente no texto de Alexandre Abreu.
ResponderEliminarDe
Eh pá, um pequeno à parte. Estava a reler os meus comentários e reparei num número espatafúrdio de gralhas:
ResponderEliminarNo comentário de 26 de Agosto de 2014 às 13:27 onde está:
-"de assim fosse", deve ler-se "se assim fosse";
-"a bica fica a 1,XX%", deve ler-se "a bica fica a 1,XX€"
-"a dar às impresas", deve ler-se "a dar às empresas".
No de 27 de Agosto de 2014 às 10:53, onde está "abilita" deve ser "habilita".
'achismo que se uma pessoa poder não pagar não paga, está certamente errada no total do contexto humano.»!!!!
ResponderEliminarEm situação de conforto e segurança?
Pressupondo naturalmente um ganho significativo para i contribuinte?
Do 'bom selvagen' ao 'cidadão exemplar' a saga do irrealismo....
Olha, ó R.B. NorTør (27 de agosto, 19:03), já agora faz a errata da errata. Logo na primeira linha "um aparte" (substantivo, pegado) em vez de "um à parte" (locução adverbial, separado).
ResponderEliminarMas deixa estar, estamos a cagar nas gralhas e nos erros gramaticais, inofensivos quando não alteram o sentido.
Dedica-te é às coisas sérias.
Subscrevo o que diz o anónimo de 28 de Agosto de 2014 às 00:43.
ResponderEliminarO que importa é mesmo a substância e esta é coerente e pensada.E progressista.
Como recompensa secundária vale
dar uma valente gargalhada de quando em quando, quando um ou outro tenta emendar a mão pelo conforto dado outrora ( ainda agora, ainda agora) aos grandes transfugas dos impostos. A memória é uma coisa tramada e as reescritas ao lado em jeito de fuga são já um clássico.
De