À luz do que sabemos sobre a incidência global da pobreza monetária, dificilmente esperaríamos que África estivesse há décadas a financiar o resto do mundo. Em 1990, quase 57% da população da África Subsariana auferia um rendimento (em paridade de poder de compra) inferior a 1,25 dólares por dia. Em 2011, apesar do forte crescimento económico entretanto registado, a incidência da pobreza monetária medida segundo esta linha de referência era ainda de 46,8%. Cerca de 400 milhões de pobres: um terço do total mundial .
À luz do que sabemos sobre a ajuda internacional, também dificilmente esperaríamos que fosse esse o caso. Afinal de contas, a Ajuda Pública ao Desenvolvimento total (bilateral e multilateral) com destino ao continente africano ronda os 55 mil milhões de dólares anuais. E a este montante acrescem as remessas dos emigrantes africanos no exterior, que nos últimos anos ultrapassaram em montante a própria ajuda internacional e ascendem actualmente a cerca de 67 mil milhões de dólares .
À luz do tema frequentemente glosado do perdão da dívida dos países africanos, e das iniciativas que têm sido lançadas nesse sentido geralmente acompanhadas por condicionalidades políticas e económicas de diversos tipos (como por exemplo a iniciativa HIPC, que abrange principalmente países africanos), esperaríamos com certeza que o continente africano fosse um devedor líquido do resto do mundo, não um credor.
E à luz da teoria económica ortodoxa mais simples, que postula que a produtividade marginal dos factores de produção é proporcional à sua escassez, pelo que a rendibilidade do capital deverá ser mais elevada onde este for mais escasso, esperaríamos assistir a fluxos de capital predominantemente em direcção aos países menos desenvolvidos, em busca dessa elevada rendibilidade - e não o contrário.
Pois apesar de tudo isto, é o contrário que se verifica - e há já várias décadas. Segundo um relatório do ano passado do Banco Africano de Desenvolvimento e da Global Financial Integrity, o saldo líquido acumulado dos fluxos de capital envolvendo o continente africano entre 1980 e 2009 foi qualquer coisa como -1,4 biliões de dólares em termos ajustados à inflação, o que significa que a soma dos fluxos em direcção ao exterior ultrapassou nesse montante o total dos fluxos em direcção ao continente (incluindo a ajuda internacional, o investimento directo estrangeiro e as remessas dos emigrantes). Trata-se de um valor sensivelmente equivalente a quatro vezes a dívida externa total do continente africano, de onde a conclusão que África é, na verdade, credora líquida do resto do mundo.
Esta transferência líquida de recursos assenta num conjunto de fluxos lícitos e ilícitos, que incluem a transferência de rendimentos obtidos através de corrupção, evasão fiscal e actividades criminosas, mas também a transferência lícita ou ilícita de rendimentos de actividades legais. E os principais actores neste processo nem sequer são os ditadores e presidentes corruptos, mas sim as empresas multinacionais responsáveis por cerca de 60% desta sangria através de transferências de recursos e mecanismos contabilísticos diversos.
Com a frequente cumplicidade das elites e contra a vasta maioria da população, são largos milhares de milhões de dólares encaminhados para paraísos fiscais e outros destinos fora do continente. Milhares de milhões de dólares gerados em África mas em geral não tributados - e indisponíveis para financiar o investimento, a criação de emprego ou a criação de infraestruturas sociais no continente.
Esta é uma questão essencial para entender os aparentes paradoxos do impacto, ou falta dele, da ajuda internacional. É também mais uma prova de que o mundo não é plano, e que os postulados elegantes da teoria dominante e os discursos encantatórias dos entusiastas da globalização são incapazes de explicar as dinâmicas realmente existentes da economia global. E é mais um bom motivo para que defendamos um mundo substancialmente mais desglobalizado, sem paraísos fiscais e com fluxos de capital fortemente regulados, em que a economia esteja ao serviço das pessoas e não as pessoas ao serviço dos lucros.
(publicado originalmente no Expresso online)
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