quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Política monetária amorosa

Em fevereiro último soubemos que em Portugal, os lucros agregados dos quatro maiores bancos privados a operar no país somaram 3.153 milhões de euros em 2023, num aumento de 81,9% face a 2022.

Há um par de dias, ou assim, foi noticiado que, o “lucro semestral [no ano que corre] dos bancos portugueses supera todo o ano de 2022” e (…) entre janeiro e junho, 31% acima do valor do mesmo período do ano anterior.

Lucros da banca privada que são, em grande medida, o resultado de prejuízos no banco central, como se explica, aqui, aqui ou aqui. Só em Portugal, em 2023, estes prejuízos ascenderam a 1504 milhões de euros.

Lucros da banca privada que são também resultado das magras taxas de juro sobre depósitos que a banca oferece aos seus clientes.

A este propósito, no fim de Maio passado, o Governador do Banco (que não é) de Portugal e anterior ministro das finanças, Mário Centeno afirmou publicamente querer explicações da banca.

Os lucros excepcionais do setor financeiro agora tornados públicos mostram quão pífia e para inglês ver foi aquela pretensa demonstração de autoridade.

Amor com amor de paga e as demonstrações de afecto não se fizeram esperar.


É isto inevitável? Os banqueiros têm mesmo de se abotoar com lucros obscenos à custa de prejuízos do banco central e, por isso, do erário público, num romance pornográfico? Não, obviamente, não o é, como tentei explicar também aqui.

Ao contrário de Mário Centeno, Robert Holzmann, governador do banco central da Áustria e um dos mais conservadores membros do Conselho do BCE, tem defendido (aqui e aqui) medidas que, embora insuficientes, vão no sentido correcto e visam conter esta hemorragia, politicamente engendrada, de recursos públicos para o setor financeiro.

E Centeno, que não enjeita ser categorizado como um governador mais progressista, (uma pomba, diz certa imprensa), porque não toma posição pública e se escuda sonsamente no facto destes prejuízos terem atingido todos os bancos centrais do eurosistema, como se isto dissesse alguma coisa sobre a sua pretensa inevitabilidade?

E o governo? Porque se mantém calado e finge que nada pode fazer dada a alegada independência do BCE? Pergunta retórica, claro, porque sabemos bem quão conveniente é esta situação para a narrativa intrujona do ‘não há dinheiro’ que permite e protege o aprofundamento da reestruturação neoliberal em curso.

No Reino Unido, o problema é semelhante. A economista Daniela Gabor afirma que “[é] suposto o Banco [de Inglaterra] não se meter em assuntos orçamentais. No entanto, a sua mão invisível está agora a esgotar os cofres do Tesouro para aumentar os lucros dos bancos comerciais”.

William Mitchell, por seu lado, trata este assunto aqui, num texto simples, mas que requer paciência e que vale muito a pena. Permitir que a abundância plena de reservas no sistema financeiro, abstendo-se os bancos centrais de as remunerar, resulte em taxas de juro zero é a sua, boa, proposta.

Aqui no retângulo, numa versão requentada do que já está a suceder no Reino Unido, é só esperar pelo simulacro de discussão que vão oferecer-nos a propósito do próximo orçamento de Estado. Muito previsivelmente, seremos informados que andámos novamente a viver acima das nossas possibilidades. O que não deixa de conter alguma verdade: amor que se dedica aos banqueiros não pode ser simultaneamente devotado ao SNS.

De qualquer forma também não há razão para, neste momento, nos preocuparmos, digamos. Por assim dizer.

Repare-se que a Comissão Europeia, guardiã mor desta distopia que transforma o país numa quase colónia, está na fase de fingir que negoceia com o governo e ainda nem sequer nos informou quanto do nosso dinheiro, afinal, nos autoriza a usar.

De resto, se é certo que, quando a encenação acabar, saberemos, finalmente, que orçamento nos foi autorizado, não é o menos que nunca saberemos que pressupostos usou para chegar ao ditame. É segredo. Por design. De facto, por que razão havia de se permitir o escrutínio democrático das arbitrárias imposições de uma instituição supranacional com legitimidade indirecta e viés neoliberal se podemos escudar-nos na ideia, obviamente enganosa, de que se trata de pressupostos técnicos para os quais não há alternativa?

Daniela Gabor, no texto acima linkado, afirma que a ‘Grã-Bretanha está a passar por uma versão extrema daquilo a que a teórica política Wendy Brown chamou 'desfazer a democracia' (undoing the demos), em que tecnocratas não eleitos que controlam a dinâmica monetário-orçamental estão a obstruir os futuros governos na prossecução de agendas transformadoras’. O mesmo pode e deve ser dito relativamente a Portugal e à UE.

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