domingo, 20 de março de 2022

Leituras adversativas


«Estudar história não é apenas importante para conhecer o passado. É também indispensável para perceber o presente e até para planear o futuro. Os comentários mais interessantes sobre o presente conflito, decorrente da invasão da Ucrânia pela Rússia, vieram precisamente de quem sabe história, a dos países envolvidos, a dos vizinhos como a Polónia e até a de outras negociações de paz, mostrando como a humilhação excessiva dos vencidos pode virar-se contra os vencedores. É aí que a discussão tem saído da bolha emocional das redes sociais.»

Maria Manuel Leitão Marques, Saber história

«A transmissão principalmente nas televisões, o meio mais poderoso na sua comunicabilidade e empatia, de 24 horas por dia, levanta sérias dúvidas de qualidade do jornalismo e da sua função de dar a todos, em democracia, informações para poderem ter opinião e decidirem. Uma guerra é um tema emocionalmente forte, e 24 horas de guerra por dia presta-se a dois efeitos aparentemente contraditórios: um, o efeito de viciação; outro, do cansaço. Quer num caso, quer noutro, o rasto comunicacional torna-se essencialmente emotivo e pouco racional, o que o deixa muito propício à manipulação. No contexto atual de mentalidade cultural, social e política, torna-se mais um factor agravante da radicalização numa sociedade em que já o é em demasia. Numa democracia, as emoções têm um papel decisivo e tudo as favorece, enquanto a necessidade da razão tem uma vida difícil. As emoções moldam a opinião pública com facilidade. E a razão, não.»

José Pacheco Pereira, Razão, excitação, cansaço, desintoxicação

«A invasão russa da Ucrânia provocou uma tempestade emocional, em alguns dos nossos comentadores da imprensa e do audiovisual, que está a atingir os limites da decência. Mesmo sem fazer nenhum esforço de pesquisa para tal orientado, já surpreendi estrategistas instantâneos a corrigirem militares profissionais, por escritos ou entrevistas televisivas, ou a censurarem cronistas como Miguel Sousa Tavares, ou académicos como Boaventura Sousa Santos, pelo simples facto de estes tentarem oferecer aos seus espectadores e leitores uma visão mais alargada e historicamente contextualizada da complexidade de causas e problemas que nos conduziram à actual guerra. Repare-se que nenhum dos visados deixou de condenar o ataque de Putin, e de sentir solidariedade com as vítimas da ofensiva russa. Para aqueles plumitivos censores, traindo esse obscuro conformismo que também mora na nossa tradição cultural, tudo o que não se acolhe na sua grelha bicolor e binária, que arruma os contendores em demónios e anjos, implica uma cedência indesculpável ao "putinismo"...»

Viriato Soromenho Marques, A guerra das paixões

«Novamente nesta guerra se revela a nossa incapacidade de problematizar, de fazer uma reflexão para lá do óbvio que nos é servido. A recusa de grande parte dos europeus em aceitar que se faça uma contextualização da guerra, que se apontem as falhas da governação ucraniana, que se diga que existe ali um problema de extrema-direita (…) mostra que continuamos com pés de barro. A forma como tratamos os refugiados ucranianos em comparação com os restantes e a comoção com as vítimas desta guerra comparativamente às de outras guerras revelam uma falha na compreensão do significado dos direitos humanos. Qualquer questionamento que se faça à narrativa é interpretada como um apoio a Putin e à própria invasão. As pessoas não toleram que se pense. Quem não adere na íntegra à versão Hollywood desta guerra é desconsiderado. (…) É claro que a invasão da Ucrânia deve ser condenada e é certo que nada a justifica. Mas em que é que mais uma fábula pode ser útil?»

Carmo Afonso, Os falsos defensores das democracias ocidentais

«Sobre a guerra na Ucrânia e o seu horror, agora quero apenas dizer o mesmo que venho dizendo desde o primeiro texto que sobre ela escrevi, muito antes de começada e quando ainda acreditava que não aconteceria: que a paz acabe por se impor, pois que, além das razões óbvias, não vejo razão determinante que a impeça. Espero veementemente que, por estes dias, os únicos que continuam os esforços reais para encontrar um entendimento que leve à paz – e que, significativamente, são os beligerantes – consigam lá chegar. E à data de hoje, quarta-feira, não obstante as imagens de morte e destruição que continuam presentes e não obstante as cirúrgicas provocações que nestas alturas vêm sempre do lado de cá, há também sinais de esperança para a paz mais fortes do que nunca antes. Porém, não consigo afastar esta sinistra suspeita de que, fora da Ucrânia martirizada, há muitos que não a desejam.»

Miguel Sousa Tavares, O clube liberal

3 comentários:

Anónimo disse...

No último minuto de uma mensagem presidencial agora divulgada

( https://www.youtube.com/watch?v=oKW2yOwVvtQ, com legendas em inglês ),

o simpático presidente-actor anunciou que passam a estar banidas as actividades de 11 (ONZE) partidos ucranianos: "Opposition Platform - For Life" (1), "Left Opposition", "Union of the Left Forces", "Progressive Socialist Party", "Socialist Party of Ukraine", "Socialists Party", etc. (Outros, como o Partido Comunista ucraniano, já tinham sido banidos há vários anos, na sequência do "Euromaidan").

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(1) Este foi o segundo partido mais votado nas últimas eleições legislativas na Ucrânia, em 2019. Quando a invasão russa se iniciou, o líder do partido estava em prisão domiciliária, com pulseira electrónica (desde Maio de 2021).


A. Correia

Anónimo disse...

A facilidade com que um povo é levado, por um simples líder, a envolver-se numa guerra de agressão parecia coisa dos tempos mediavais.
Na modernidade "o espaço vital germânico", o "para Angola agora e em força", este "libertar os ucranianos dos nazis" -para não mencionar outros triste exemplos mais ou menos constatados- assentuam a facilidade com que um líder exercendo o poder sem capaz control democrático, pode expôr o seu povo a discutíveis (des)aventuras militares.

José Cruz disse...

A invasão da Ucrânia está longe de poder ser considerada um episódio adicional de uma estratégia de expansão ,iniciada com a tomada da Crimeia,em 2014,ou de defesa de limites e territórios que integraram a ex-URSS.A arremetida militar contra a Ucrânia e a intensidade dos combates,de que nenhum dos lados abdica,é a manifestação de uma nova identidade da liderança político-militar,que secunda e apoia Putin em que o nacionalismo crescente se alimenta de uma idéia pan-eslavista do poder partilhada com a influência social e cultural da Igreja Ortodoxa de Moscovo.