quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Há ciganos na Estrela?

Os resultados das eleições presidenciais geraram múltiplas análises, vários mitos e múltiplos aproveitamentos políticos.

Permitam-me partilhar um texto do Francisco Melro, economista e ex-funcionário do organismo estatístico nacional, o INE, ex-colunista no jornal Público e ex-director da CMVM. 

Na justificação do sucesso do Ventura nas Presidenciais de 2021 têm-se vulgarizado dois fundamentos: o descontentamento dos deserdados do sistema e os problemas causados pelos ciganos nas comunidades, escandalizando pelos subsídios públicos de que beneficiam. Com base nestas premissas, fui à procura dos deserdados e dos ciganos da região de Lisboa que votaram nos candidatos da direita e particularmente no Chega. 

Embora surjam vestígios de deserdados e de ciganos nas freguesias menos favorecidas de Lisboa, fui encontrá-los especialmente nas freguesias tidas por mais ricas. Deparei-me com acampamentos clandestinos de ciganos e com deserdados nos lares e arredores dos residentes das freguesias de Belém, da Estrela e das Avenidas Novas. 

 Essa descoberta é visível no gráfico acima, em que se somou os resultados dos candidatos da esquerda (Ana Gomes, Marisa e João Ferreira), por um lado, e os da direita (Ventura e Mayan), pelo outro, encontrando-se aquela distribuição de resultados nas freguesias de Lisboa.

Ou seja, o Ventura e o Mayan obtêm em conjunto entre 25% e 28% dos votos nas freguesias da Estrela, Belém e Avenidas Novas, freguesias onde o conjunto dos candidatos da esquerda obtém os resultados mais baixos, entre 22% e 25%. Os mesmos candidatos da direita obtêm os seus resultados mais baixos (entre 11% e 13%) nas freguesias da Penha de França, Santa Maria Maior e São Vicente que eram tidas como menos favorecidas, sendo nestas, afinal, abastadas freguesias que os candidatos da esquerda obtêm os melhores resultados (entre os 34% e os 38%). Quem diria que por detrás e à volta das paredes dos palacetes da Lapa, das vivendas do Restelo e dos apartamentos das Avenidas Novas se escondia tanta miséria e alastravam tantos acampamentos de ciganos! Que inveja deve ter a malta do Restelo da malta que mora na Ajuda… 
Poderão pensar que pode haver falta de rigor nesta mistura dos candidatos da direita incivilizada (Ventura) com a da mais civilizada (Mayan), mas parece que, no essencial, as freguesias que gostam muito de um gostam também muito do outro, tendo ambos os melhores resultados no mesmo tipo de freguesias. Com uma ligeira diferença, algumas freguesias, até agora, tidas por menos favorecidas gostam mais do Ventura do que do Mayan, especialmente o Beato, Marvila e Santa Clara. Nas restantes freguesias, os resultados de ambos os candidatos distribuem-se ao longo da mesma linha de tendência.

Mas surge ainda uma surpresa maior.

 

Quando identificamos os partidos em que estas freguesias costumam votar, concluímos que os votos dos candidatos presidenciais da direita, supostos representantes do descontentamento com o sistema, são os que votam tradicionalmente mais à direita, na mesma proporção do que votaram nas presidenciais, como se conclui dos resultados nas últimas legislativas em Lisboa do conjunto do PSD, CDS, Iliberal e Chega.

 

Então? Não percebo! Os votos da direita não vieram dos votantes da esquerda descontentes com o sistema? Então os votantes do PSD e do CDS não votaram no Marcelo? 

O que parece é que nas eleições presidenciais uma parte significativa da direita virou as costas ao PSD e ao CDS indo procurar asilo em alternativas mais liberais ou/e mais musculadas, sobretudo nestas. Uns querem menos Estado na economia e menos impostos, outros querem isso e mais porrada e menos liberdades (é uma questão de grau e às vezes de tempo, como se viu no Chile). Pelo menos, é isto que se conclui da análise dos resultados nas eleições de Lisboa. Não fui ver no resto do País. Não por falta de dados, que estão disponíveis, mas porque dão muito trabalho a registar à mão (não encontrei nenhum ficheiro com dados prontos a trabalhar). 

Há evidência em Lisboa, nas freguesias menos favorecidas, de que o Ventura, ao contrário do Mayan, entra bem em muito eleitorado menos favorecido. Parece acontecer o mesmo no resto do País. Mas está a entrar sobretudo muito bem, tal como o Mayan, nos apoiantes tradicionais do PSD e do CDS. O Rio que se cuide.

5 comentários:

JE disse...

Dá muito trabalho desmontar as narrativas primárias que nascem dos opinion makers já com a opinião formada

"O que parece é que nas eleições presidenciais uma parte significativa da direita virou as costas ao PSD e ao CDS indo procurar asilo em alternativas mais liberais ou/e mais musculadas, sobretudo nestas. Uns querem menos Estado na economia e menos impostos, outros querem isso e mais porrada e menos liberdades (é uma questão de grau e às vezes de tempo, como se viu no Chile). Pelo menos, é isto que se conclui da análise dos resultados nas eleições de Lisboa"

Jose disse...

Que alívio!
O problema é à direita, a esquerda continua confortável...

jmx disse...

Muito bom. Parabéns pelo artigo.
Tenho sentido que existe falta de literacia matemática e estatística na comunicação dos resultados e na análise que é feita pelos ditos opinadores onde nunca se fazem análises deste tipo. E faz falta, pois os dados dizem muita coisa.

Será desleixo ou haverá alguma intenção?

Anónimo disse...

O problema é à direita?
O problema são os factos e as análises que são feitas
Quando os factos desmentem as atoardas, o que fazer?
Ê simples. Acho que até o José deve saber que não vale a pena essa vitimizaçao de coitadinho, como ele costuma dizer

Aires da Costa disse...

Concordo que grande parte, mesmo uma grande parte, dos votos no Ventura vieram dos partidos da direita ( e de pessoas que não costumam votar), mas a hostilidade aos ciganos ( e não é uma questão de RSI) também deve ter tido influência, nomeadamente em localidades como Moura, Mourão e Elvas.