sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Meias verdades do Instituto +Liberdade: inflação, lucros privados e receitas públicas

 

O Instituto +Liberdade decidiu entrar no debate sobre quem está a ganhar com a escalada da inflação. Para defender as grandes empresas, os liberais publicaram um gráfico em que comparam o aumento nominal dos lucros registado nos setores da energia, retalho e banca (perto de 900 milhões de euros) com o aumento total das receitas do Estado (5262 milhões) no 1º semestre do ano. A conclusão é a de que não faz sentido defender a tributação dos lucros extraordinários das empresas, visto que quem está a ganhar mais é o Estado. Só que há 4 problemas que tornam o argumento falacioso.

1. Os números apresentados escondem a escala. Olhar para aumentos nominais diz-nos muito pouco sobre a evolução das diferentes receitas, sobretudo quando falamos de agentes de dimensões tão diferentes como Estado e empresas. Os liberais condenam o aumento de 30% da receita do setor público no 1º semestre de 2022 (face ao mesmo período de 2021), omitindo que as grandes empresas têm registado aumentos bastante superiores dos lucros. Os cinco principais bancos viram os seus lucros disparar quase 80%, ao passo que, no retalho, a Sonae teve um aumento de 89%. Já no setor da energia, a Galp registou um crescimento dos lucros superior a 150% neste período.

2. Há uma diferença de fundo no comportamento dos diferentes agentes. O enorme aumento dos lucros das grandes empresas resulta de aumentos significativos dos preços que estas cobram aos consumidores, fruto do poder de mercado que lhes permite aproveitar períodos de crise para aumentar as margens. Pelo contrário, as receitas públicas não cresceram devido a aumentos de determinados impostos (alguns, como o ISP, até foram reduzidos), mas sim por causa do efeito da inflação na receita total obtida, já que a subida dos preços dos bens e serviços faz aumentar automaticamente a receita associada a impostos indiretos como o IVA.

3. A tributação dos lucros extraordinários serve, entre outras coisas, para desencorajar a prática de preços especulativos. A medida, sugerida pelas instituições internacionais mais insuspeitas (Comissão Europeia, OCDE, FMI) e aprovada em vários países europeus, pode ser combinada com a regulação de preços e/ou margens, como aconteceu em Portugal no início da pandemia, quando o governo limitou as margens de lucro na venda de máscaras ou álcool-gel. Uma intervenção eficaz por parte do Estado acabaria até por atenuar o aumento das receitas públicas: se os preços dos bens e serviços não subirem tão acentuadamente, também não aumentará tanto a receita do Estado com impostos indiretos.

4. A publicação dos liberais condena o aumento da receita do Estado num contexto de "significativa perda do poder de compra dos portugueses". Neste contexto, é difícil justificarem por que motivo recusaram propostas que tinham como objetivo garantir uma aplicação mais justa dessa receita para proteger precisamente o poder de compra da maioria das pessoas. Na votação das propostas da esquerda para que o Estado promovesse aumentos salariais pelo menos em linha com a inflação, mantendo o poder de compra de quem trabalha no setor público e estabelecendo um referencial para os aumentos no setor privado, a IL aliou-se ao PS para as rejeitar.

Está longe de ser a primeira vez que o Instituto +Liberdade constrói argumentos a partir de meias verdades ou da omissão dos factos que não encaixam nestes: já aconteceu aqui, aqui, aqui, aqui ou ainda aqui. Ainda não é desta que teremos um contributo para “melhorar a literacia financeira e económica no país”, como o site prometia.

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