A crise energética continua (e continuará) na ordem do dia. Como
aqui se procurou explicar, avizinha-se um inverno gelado, sobretudo na Alemanha, que apela à solidariedade dos países menos dependentes do gás natural proveniente da Rússia, como é o caso de Portugal.
A semana passada, Olaf Scholz, Chanceler da Alemanha, lamentou a inexistência de um corredor de gás natural que ligue Portugal, Espanha e França à Europa Central, instando à construção de um gasoduto a partir do território nacional. Perante as ameaças à segurança de abastecimento, e uma vez que não possui terminais de gás natural liquefeito (GNL) em terra, a Alemanha beneficiaria da sua regaseificação na Península Ibérica, nomeadamente, no porto de Sines, e do seu transporte através de gasoduto.
Afinal, bastou uma Alemanha em apuros para que um impasse de mais de uma década nesta periferia energética se transformasse num imperativo europeu, para regozijo daqueles que, como Manuel Carvalho, diretor do Público, fazem questão de relembrar que este gasoduto já tinha sido defendido por Pedro Passos Coelho.
A concretização deste projeto transnacional implicaria, do lado português, a construção de uma terceira interligação à rede de gás natural espanhola, uma ambição antiga de Governos do PSD e do PS que esbarrou sucessivamente contra os pareceres desfavoráveis da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (alegando incertezas quanto aos avanços das infraestruturas em Espanha e França, e antecipando potenciais aumentos nas faturas dos clientes portugueses) e da Agência Portuguesa do Ambiente (devido aos impactos ambientais na paisagem protegida do Alto Douro Vinhateiro).
O objetivo era que Portugal, através do terminal do porto de Sines, se tornasse na porta de entrada do gás natural norte-americano na Europa, contribuindo para contornar a dependência em relação à Rússia. O plano para a criação de um corredor Portugal-Espanha-França parecia ter sido definitivamente derrotado em fevereiro de 2019, quando os reguladores espanhol e francês chumbaram a interligação de gás natural entre Espanha e França através dos Pirenéus (que era condição para a construção de um novo gasoduto até Espanha, passando por Trás-os-Montes), considerando que os custos ultrapassariam os benefícios para os seus consumidores.
Portugal ficou ainda mais isolado e impossibilitado de exportar gás natural através de gasoduto para lá de Espanha. A Península Ibérica é, virtualmente, uma “ilha energética”, devido precisamente à escassez de interconexões com o resto do território europeu. Este processo de periferização energética da Península Ibérica serviu os interesses de França, por exemplo, que sempre resistiu à construção de um gasoduto transpirenaico – receava a concorrência, embora se refugiasse em argumentos de cariz ambiental (obviamente, legítimos) –, mas foi arrastando as negociações diplomáticas com Portugal e Espanha.
Ora, neste momento, os planos para diversificar as fontes de abastecimento da União Europeia (UE) e para assegurar o fornecimento de gás natural à Alemanha já passam por Portugal. A crise energética levou a Comissão Europeia e a Alemanha a falar de “solidariedade”, “união” e “partilha de esforços”.
Na sua habitual diligência, António Costa afirmou que “a Alemanha pode contar 100% com o empenho de Portugal para a construção do gasoduto”, que, de acordo com o Primeiro-Ministro, teria a duração de quatro anos e um custo de 330 milhões de euros (desejavelmente subsidiados pelo Mecanismo de Recuperação e Resiliência), com a mais-valia de poder ser reconvertido para o transporte de hidrogénio verde no futuro. Nada disto está garantido.
Porém, muito para lá da viabilidade económica e tecnológica, do impacto ambiental e do traçado do gasoduto, ou seja, os entraves do passado que teriam de ser novamente avaliados pelas entidades competentes, parece que se instalou uma amnésia coletiva em relação às alterações climáticas e à urgência em cessar a dependência dos combustíveis fósseis – a designada “neutralidade climática” que colocaria a UE na vanguarda da transição energética, lembram-se? As metas climáticas e energéticas de Portugal e da UE já eram manifestamente insuficientes antes da guerra na Ucrânia, a diferença agora é que já não há dissimulação.
Outro detalhe: uma infraestrutura que estaria operacional (no mínimo) daqui a quatro anos jamais ajudaria a Alemanha a mitigar a crise energética que se perspetiva para o próximo inverno. O desvio de navios metaneiros do porto de Sines para a Alemanha e a regaseificação do GNL em alto mar, a alternativa provisória, é inviável. O que está em causa é, pois, o papel atribuído a Portugal na segurança de abastecimento do Norte e Centro da Europa nas próximas décadas, quer se trate de gás natural, ou de gases renováveis.
No editorial do Público de 14 de agosto, Manuel Carvalho refere que “tudo o que aproximar o país do centro de gravidade das decisões europeias é bom para Portugal” e reforça o seu “papel estratégico” na Europa. Quais são os indícios de que tal esteja verdadeiramente a acontecer? Estarão a ser secretamente negociadas contrapartidas altamente vantajosas para o nosso país? O que sabemos até ao momento aponta precisamente na direção oposta: a Alemanha precisa urgentemente de encontrar alternativas ao gás natural russo e Portugal é um peão nesse jogo de xadrez geopolítico, um intermediário que asseguraria que não faltaria energia ao “coração industrial e demográfico da Europa”, como o próprio afirma.
Ao contrário do que Manuel Carvalho assevera, o gasoduto não tornará Portugal “mais europeu”, nem é, tampouco, “matéria de amplo consenso”. A construção de uma infraestrutura desta envergadura no contexto da crise climática desencadearia efeitos perversos que não podem ser ocultados: o prolongamento da dependência em relação aos combustíveis fósseis, mais especificamente, em relação ao gás natural dos EUA; a expansão do capitalismo fóssil, motor das alterações climáticas.
O “estatuto de país periférico” de Portugal, reconhecido pelo próprio Manuel Carvalho, só se reverte com soberania energética, jamais sacrificando territórios, seja para expandir o capitalismo fóssil, ou em nome da transição energética.