quinta-feira, 5 de março de 2020

Um ministro em PPP?

Foto publicada no site do jornal PÚBLICO, da autoria de Paulo Pimenta
Ele esteve na base das alterações legais relacionadas com o sector imobiliário, mesmo quando era público o seu interesse no sector. Mas nunca é chamado a pronunciar-se sobre essas alterações.

Ele já controla as funções da ministra do Trabalho (sua ex-secretária de Estado do Turismo) a ponto de ser ele quem coordena as reuniões da Comissão Permanente de Concertação Social e não Ana Mendes Godinho. Mas nunca é chamado a pronunciar-se sobre a situação laboral dos trabalhadores portugueses. Verdade se diga que a ministra tão-pouco fala.

É ele quem está na base da mudança do regime das Parcerias Público-Privadas (PPP) que se discute esta 6ª feira, 6/3/2020, no Parlamento, mas tudo faz por não aparecer.

Senão veja-se o que disse ao Público:
PÚBLICO: Tomou a iniciativa de propor alterações à lei das parcerias público-privadas (PPP), que foi lida como retirada da decisão ao Ministério das Finanças (MF), colocando-a no Conselho de Ministros (CM). O que é que pretendeu com essa alteração?
Pedro Siza Vieira: Essa iniciativa não foi minha. Eu colaborei nela, como colaborou o MF e a presidência do CM, em termos da formulação final do diploma. Não há nenhuma matéria relativa a PPP que vá ao CM sem ser proposta pelo ministro das Finanças. Portanto, não pode haver decisão do CM sobre PPP sem que o ministro das Finanças a proponha. Não há nenhuma diminuição do poder decisório do MF, há apenas depois uma responsabilidade colectiva maior do CM. Ao longo destes anos, houve renegociações e revisões de PPP, o MF tem experiência e foi essa experiência que foi acolhida nesta revisão. Não tenho responsabilidade maior do que ter colaborado nisto, mas julgo que não há aqui nenhuma diminuição da responsabilidade do ministro das Finanças.

É verdade? Não parece. Mas vamos por partes:


1. Origem
O diploma que consubstancia a 11ª alteração do regime das PPP - o decreto-lei nº170/2019 - foi, como se pode ver na foto, proposto pelo Ministério da Economia e Transição Digital, ainda que o seu emissor tenha sido a Presidência do Conselho de Ministros (PCM). Portanto, é falso que a iniciativa não tenha sido do ministro da Economia.

2. Desvalorização do ministro das Finanças
Pedro Siza Vieira afirma: "Não há nenhuma diminuição do poder decisório do MF". Até poderia ser uma decisão defensável. Por que razão se deve subordinar uma decisão política ao ministro das Finanças? Nesse caso, era mais transparente assumir essa decisão. Ora, o que parece estar em causa é mais uma tentativa - novamente - de querer uma política orçamental de contas certas e ao mesmo tempo contornar os seus efeitos reais, sem discutir a questão de fundo. E no caminho dar algo a beneficiar ao sector privado. Mas, de qualquer forma, nunca se diga que o ministro das Finanças não perdeu poderes.

Compare-se os diplomas em vigor (o DL18/2008 e o DL nº111/2012), com as alterações aprovadas.

Diz a lei alterada quanto aos contratos de PPP: ... "a decisão de contratar compete, conjuntamente, ao membro do Governo ou ao membro do Governo Regional responsável pela área das finanças e ao membro do Governo ou ao membro do Governo Regional da tutela setorial, consoante o caso". Diz a lei que alterou esse texto: ... "compete, conjuntamente, ao membro do Governo Regional responsável pela área das finanças e ao membro do Governo Regional da tutela setorial ou ao Conselho de Ministros, consoante o caso". Por outras palavras, a figura do responsável pelas Finanças no Governo desapareceu.

E veja-se a lista de poderes que o ministro das Finanças perdeu e, consequentemente, os poderes que foram ganhos por quem coordena o Conselho de Ministros, onde, já se sabe, Siza Vieira é o nº2 do Governo:

Delegação de poderes
Antes, o ministro das Finanças poderia delegar noutros membros do Governo. Agora, o facto de se passar a decisão para o CM inviabiliza qualquer delegação de poderes. A decisão compete inaleanavelmente ao Conselho de Ministros (artigo 109º, relativo à delegação de poderes).

Modificações de contrato
Mesmo as modificações de contratos de PPP passam a ser competência do CM, quando o eram do ministro das Finanças (artigo 340º do Código dos Contratos Públicos). Diz a versão alterada: "A modificação do contrato que configure uma parceria público-privada depende de decisão conjunta dos membros do Governo ou dos membros do Governo Regional responsáveis pelas áreas das finanças e da tutela setorial. Diz a versão que altera: ..."depende de Resolução do Conselho de Ministros ou de decisão conjunta dos membros do Governo Regional responsáveis pelas áreas das finanças e da tutela setorial.". Ou seja, novo eclipse do ministro das Finanças.

Subalternização do ministro das Finanças
O ministro das Finanças passa a ser subalternizado, já que a ele compete, sim: a fiscalização e acompanhamento dos custos/benefícios de uma decisão que não foi sua (artigo 340º, ponto 1 e que não foi alterado). Ao ministro das Finanças passa, sim, a caber a proposta de "outros contratos e natureza típica ou atípica cuja sujeição ao regime do presente diploma seja determinado por Resolução do Conselho de Ministros" (artigo 2º ponto 4, alínea b do modificado DL nº111/2012, relativo à Disciplina a intervenção do Estado na definição, conceção, preparação, concurso, adjudicação, alteração, fiscalização e acompanhamento global das parcerias público-privadas e cria a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos). O ministro das Finanças perde a incumbência de decidir sobre a parceria (artigo 14º do alterado DL nº111/2012, ponto 3), passando para o CM.

O ministro das Finanças parece passar a ser um intermediário entre a equipa de projecto e o Conselho de Ministros: A equipa de projecto submete aos membros do Governo com responsabilidade "pelas áreas das Finanças e do projecto em causa" o relatório fundamentado, que deve ser redigido de acordo com os termos da Resolução do CM e incluir certos elementos (a lei determina-os no artigo 14º, ponto 2), e o Conselho de Ministros decide. Nada está previsto que o ministro avalie esses documentos.

Inclusivamente, o ministro das Finanças deixa de poder realizar (artigo 6º do DL nº111/2012 com nova redacção):
* "Os estudos económico-financeiros de suporte ao lançamento da parceria, bem como os critérios de avaliação das propostas a apresentar pelos concorrentes", a saber, se "utilizam os parâmetros macroeconómicos relevantes definidos por despacho do membro do Governo responsável pela área das finanças".
* e deixa de verificar se determinam "designadamente, os aspetos gerais e específicos a considerar na fixação da taxa de desconto a adotar, para efeitos das respetivas atualizações financeiras".
(nova redação do artigo 6º do decreto-lei nº111/2012)

Interessante, não é? Nomeadamente a determinação da "taxa de desconto a adotar, para efeitos das respetivas atualizações financeiras".

Composição de júris
O júri que conduzirá o procedimento de formação do contrato deixa de ser designado pelo ministro das Finanças e passa a ser pelo Conselho de Ministros (artigo 17º, ponto 1, DL nº111/2012). Antes "um ou dois membros efetivos do júri, consoante seja constituído por três ou cinco membros", eram "indicados pelo membro do Governo responsável pela área do projeto em causa".  A nova redacção fez cair essa cláusula.

Autorização de despesa
A autorização de despesa passa do ministro das Finanças para o Conselho de Ministros que a determina por Resolução (artigo 18º, DL 111/2012). O ministro das Finanças deixa mesmo de poder determinar a criação de uma equipa para acompanhar a fase inicial da execução dos contratos que, pela sua "complexidade, valor ou interesse público" o merecessem ou fixar mesmo a sua missão. Essa incumbência passa para o Conselho de Ministros (artigo 19º da nova redacção do DL nº111/2012). Essa equipa deixa de ter de ser constituída nos termos da equipa de projecto.

Alterações unilaterais
Qualquer alteração uniletaral do contrato pela entidade pública carecia de "despacho prévio de concordância dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças e do projeto em causa". Agora, passa a fazer-se por proposta desses membros do Governo, que devem "estimar os efeitos financeiros decorrentes da determinação unilateral e verificar a correspondente comportabilidade orçamental". Mas não é sua a decisão.

Renegociação do contrato
Em caso de renegociação do contrato, antes era o ministro das Finanças quem decidia face a apresentação do relatório da comissão negocial. Agora, passou para a alçada do Conselho de Ministros. De igual forma, a equipa técnica fica sob a alçada do Conselho de Ministros para "prestar apoio técnico no desenvolvimento, contratação e acompanhamento de grandes projetos de infraestruturas, a que não seja aplicável o presente diploma".

De onde veio, pois, esta ideia de Pedro Siza Vieira de que não houve nenhuma diminuição do poder decisório do MF e que o importante é que "não há nenhuma matéria relativa a PPP que vá ao CM sem ser proposta pelo ministro das Finanças"? Parece coisa de advogado, a sublinhar um aspecto parcelar para - de forma ilusionística - fazer passar o essencial sem menção.

3. Desregulação das PPP
A par desta desvalorização do ministro das Finanças, as alterações aligeiram os mecanismos contratuais relativos às PPP. Sobre isso, estranhamento para quem votou como votou na Lei de Bases da Saúde quanto a PPP, o deputado e presidente do PSD teve um bom desempenho no debate quinzenal com o primeiro-ministro desta 4ªfeira (minuto 27:20) ao questionar a flexibilização do regime das PPP. E depois veja-se a fragilidade das respostas do primeiro-ministro (29:30).

A avaliação passa a ser feita caso a caso, como o admitiu o primeiro-ministro no debate. Deixam de ser instrumentos dessa relação contratual os:
c) O contrato de fornecimento contínuo;
d) O contrato de prestação de serviços;
e) O contrato de gestão;
f) O contrato de colaboração, quando estiver em causa a utilização de um estabelecimento ou uma infraestrutura já existentes, pertencentes a outras entidades que não o parceiro público.

E excluiram-se das PPP ..."as parcerias tendentes ao desenvolvimento de políticas de habitação, nos termos da respetiva Lei de Bases" ou as "as parcerias que não prevejam obrigações de pagamento de encargos pelo parceiro público ao parceiro privado, salvo pagamentos de natureza contingente ou sancionatória". Por que razão? É coincidência o ministro estar ligado ao imobiliário? O primeiro-ministro respondeu ser uma necessidade, dada a urgência em responder à falta de habitação, nomeadamente a promovida pelo poder local. Parece uma medida com a fotografia da Câmara Municipal de Lisboa.

Quando o Conselho de Ministros decide sobre contratos de PPP, o texto da sua Resolução deixa de estar obrigado a referir-se a diversos elementos que constavam do artigo 14º, ponto 3, nomeadamente as seguintes alíneas:
d) A análise das opções que determinaram a configuração do projeto;
e) A descrição do projeto e do seu modo de financiamento;
f) A demonstração do seu interesse público;
g) A justificação da opção pelo modelo de parceria;
h) A demonstração da comportabilidade e do impacte dos encargos e riscos decorrentes da parceria em função da programação financeira plurianual do setor público administrativo;
i) A declaração de impacte ambiental, quando exigível nos termos da lei aplicável.

A decisão de adjudicação nas mãos do Governo deixa de ter um prazo de 30 dias a contar da data de recepção do relatório elaborado pelo júri do procedimento.

A possibilidade de renegociação da partilha de benefícios entre a entidade pública e o privado fica mais cerceada. Antes, a renegociação poderia ocorrer quando "se verifiquem ou sejam invocados factos suscetíveis de fundamentar uma partilha de benefícios, ou a sua integral atribuição ao parceiro público, a reposição de equilíbrio financeiro ou a renegociação do contrato". Agora, a renegociação quase que fica apenas do lado dos privados. Para já, ela apenas acontece na "ocorrência de certo evento suscetível de ocorrer "nos termos da lei ou do contrato". Depois, o pedido de reposição do equilíbrio financeiro apenas pode acontecer do lado privado (artigo 21º do DL 111/2012).

Em resumo:
1. Por que acontece esta completa alteração no regime das PPP?
2. Porquê esta desvalorização do ministro das Finanças?
3. Porquê esta manobra por parte do ministro da Economia de se manter na sombra quando ele é já o nº2 do Governo?
4. Por que não quer o Parlamento ouvir o ministro Siza Vieira, já que foi ele o autor do diploma?

Aguardemos, pois, o debate parlamentar.

3 comentários:

Jose disse...

Comovente defesa do penacho do Ministério da Finanças, que supostamente conhece e participa na agenda do CM.

João Ramos de Almeida disse...

Caro José,
Como sabia eu que iria por aí?
E por que não tentar entender o que se está a passar no seio do Conselho de Ministros? Por que acha que PS e Centeno não respondem aos pedidos de deputados para ouvido seja ouvido? Por que razão Siza Vieira não se afirma e nega ter sido a fonte do diploma? Não faz sentido, pois não? Algo está errado em tudo isto ou faltam informações que não estão a ser dadas.





Guilherme Azambuja disse...

João, excelente escrutínio desta alteração que é no fundo uma clara desregulação e alteração de poderes. 2 perguntas se levantam,
1) o ministro das finanças claramente que perde poder, nomeadamente o de análise que visa informar a decisão, mas a sua participação continua garantida em sede de CM certo?

2) No que toca à taxa de desconto e às condições macroeconómicas, qual as implicações práticas desta alterações ?