sábado, 21 de março de 2020

Tratamento político


Os números na Europa explodiram hoje.

Só hoje mais 1575 novos mortos. Itália mais 793. Espanha mais 285. Irão mais 123. França mais 112. Reino Unido mais 56. Estados Unidos mais 32. Holanda mais 30. Suíça mais 18. Alemanha mais 15. Portugal mais 6. Em França, surge a polémica de as autoridades estarem cientes do risco do vírus e de não terem actuado a tempo. Quanto mais o tempo passar, mais coisas se irão descobrir. E vai ser útil descobrir porque foi que, nalguns países, o vírus provocou tantos mortos e tantos infectados.

Há uns dias a RTP passou uma muito interessante Grande Entrevista a Filipe Froes, pneumologista. Mas no fim a entrevista derivou para a abordagem política ao combate à doença em ditaduras e democracias. Os dois concordaram que era bem melhor ser tratado em democracia do que em ditadura.

Susana Peralta, uma jovem economista, escrevia a 14/2/2020 no Público.
“Os autocratas não respondem perante o eleitorado e por isso são péssimos gestores de catástrofes (...) A hipótese de que as democracias evitam crises de fome generalizada foi avançada nos anos 90 por Amartya Sen, que ganhou o prémio Nobel da economia em 1998. Tim Besley e Robin Burgess mostraram em 2002 no artigo The Political Economy of Government Responsiveness: Theory and Evidence from India que os estados indianos onde a imprensa é mais livre respondem com mais ajuda alimentar quando há crises agrícolas causadas por inundações. Em 2005, Matthew Kahn publicou o artigo The Death Toll from Natural Disasters, onde mostra que as catástrofes naturais como terramotos, ondas de calor, inundações ou aluimentos de terras causam menos vítimas em democracias. As democracias não evitam as catástrofes, mas limitam o seu potencial mortífero.” 
Afinal, eram só artigos. Ou então, se calhar, a imprensa livre escasseia. Mas isso levar-nos-ia muito longe sobre o que dizer, nos dias de hoje, sobre as democracias.

Esta abordagem política redutora ofusca muitas realidades distintas e acaba por baralhar aquilo que poderia ser um debate sobre a eficácia do combate a este tipo de epidemias. Ou sobre a organização dos cuidados de saúde nos países que temos por democracias. Porque se se quiser seguir a mesma metodologia de análise política do tratamento da doença, então teriam de ser retiradas rapidamente conclusões sobre os malefícios das democracias e sobre os benefícios do funcionamento da ditadura. E talvez acabássemos por perceber melhor que facetas ditatoriais existem nas democracias ao conduzir a números tão elevados de infectados e mortes.

Porque, por muito vigiados e endurecidos que certos regimes sejam, no final não há ditadura maior do que o regime que condena a uma pena sem recurso, como é a morte, por crime que não se cometeu.

E não, com isto não se está a pedir mais ditadura política na democracia, mas menos ditadura social da democracia.  E que se acabe com a imposição desta falsa dicotomia redutora, que nada explica.

Prossiga o debate.

15 comentários:

Anónimo disse...

Longo artigo sobre o processo decisório no UK sobre o combate ao coronavirus.

"But data from Italy — presented to the government before it was published by experts at Imperial College on Monday — changed all that. Their report confirmed the earlier fears of the epidemiologists who had been calling for more drastic action.

It showed that the NHS would indeed soon be overwhelmed if the UK’s “mitigation” strategy continued. The country had to move right away to a “suppression” approach with much more social distancing and restrictions on normal life, Imperial concluded.

Vallance and Johnson accepted the chilling findings and the prime minister finally advised social distancing on Monday. The experts who had been demanding this for days wondered what the lost time would mean in terms of deaths."

Recorde-se que a opção pela chamada "herd immunity" foi denunciada por um grupo de académicos que apontou os erros de raciocínio de tal opção com base no caso italiano. A questão, longe de dispicienda e que vai tornar mais logo, difícil e mortal o combate à pandemia já foi abordado em comentários neste mesmo blog.

https://www.buzzfeed.com/alexwickham/10-days-that-changed-britains-coronavirus-approach

Anónimo disse...

Excelente posto, excelente.

Anónimo disse...

Infelizmente, e é com grande pesar que o digo porque sou adepto de estritos direitos de privacidade, o segredo do combate ao coronavirus não é tanto o autoritarismo versus democracia de que se fala no post.

O que mais ajuda nesse combate é a tolerância à invasão de privacidade e controle dos movimentos das pessoas por meios informáticos. Isso viu-se tanto na China como na Coreia, sendo que formalmente uma é considerada ditadura e a outra uma democracia.

Este artigo explica essas escolhas:

https://theconversation.com/coronavirus-south-koreas-success-in-controlling-disease-is-due-to-its-acceptance-of-surveillance-134068

Jaime Santos disse...

Há um conjunto interessante de questões que é necessário colocar... Qual a eficácia das medidas de confinamento de natureza repressiva usadas pela China? Qual a eficácia do número de testes realizado em cada País, sendo que a Coreia do Sul parece ter tido bons resultados com uma estratégia que combinou isolamento social e até 10.000 testes por dia? Qual o peso do número de camas de CI na taxa de mortalidade (a Alemanha, tal como a dita Coreia do Sul tem mais camas que o RU ou a Itália)? Qual o peso real da estrutura demográfica de cada País? E depois há aquela coisa do azar...

Mas de uma coisa podemos estar certos. Foram a inépcia e o secretismo inicial das autoridades chineses que fizeram com que perdêssemos tempo precioso na contenção de algo que agora é uma pandemia (o atitude assumida posteriormente pelos cientistas chineses foi por outro lado exemplar).

Eu já sei que Trump e Bolsonaro referiram isto. Só que, desgraçadamente, têm razão...

E disto, as pessoas que se apressam a fazer louvaminhas à resposta da China e inclusive à ajuda recente que tem dado e bem, até porque a recebeu antes, parecem esquecer-se... Chama-se a isto usar uma crise profunda para alavancar ideias políticas bem pouco recomendáveis...

O debate por cá há de prosseguir, se Deus quiser. Já na China não prossegue e quem se atreve a contestar a resposta das autoridades desaparece... Como dizem nos EUA, só cogumelos crescem no escuro. Isso e pelos vistos pandemias...

É uma abordagem política? Pois é, mas não tenta esconder com racionalizações idiotas a diferença fulcral entre a Democracia Liberal Ocidental, limitada e imperfeita, pois claro, e um regime dito comunista...

Realmente, há coisas tão evidentes que só um intelectual não as vê (ou quer ver)...

Anónimo disse...

Mais um dado para a discussão:


Outra crise que estas democracias, que vão dando cada vez mais sinais que se precisam de reinventar, irão ter de gerir é que a maioria abordou politicamente a epidemia através da utilização de instrumentos constituicionais mais "ditatoriais" que "democráticos", vejamos, as medidas mais musculadas só conseguiram ser implementadas munindo a governação de poderes mais ditatoriais, através do uso dos estados de emergência, e isso é também, mais um, sinal da fragilidade deste modo de representação.

Jose disse...

O culto dos camaradas dirigentes, ascendendo orgânica e burocraticamente validados nos meandros do poder, é transversal no pensamento da esquerda como gerador de inevitável qualidade, e base da 'verdadeira' democracia.
O corretês é a versão publicada desse processo que nas democracias 'não verdadeiras' é construído por uma miscelânea de partidos e núcleos esquerdalhos.

É de norma, em toda a oportunidade, questionar a fortaleza da democracia 'não verdadeira'.
Menos do que responsabilizar os 'camaradas dirigentes' dessas democracias, importa questionar-lhes os fundamentos.

Qual o regime político da Coreia do Sul?

Anónimo disse...

É preciso dizê-lo claramente, a abordagem das lideranças europeias vai ser responsável por uma calamidade humana à escala planetar.

A chamada "herd immunity" ou "imunidade de manada" implica a liquidação de uma percentagem considerável da população.
Paradoxalmente, como o professor Steve Keen afirma em video no YouTube, em breve o país mais seguro de todo o mundo onde se pode estar será a China. E isto porque teve a coragem de implementar medidas visando a supressão em vez da mera travagem na progressão da pandemia.

O documento chave para reverter a estratégia da chamada "herd immunity" foi este (pdf):
https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College-COVID19-NPI-modelling-16-03-2020.pdf

É preciso que fique claro também que esta opção que irá custar centenas de milhar senão milhões de vidas humanas foi tomada com base na avaliação dos custos económicos e portanto dando prioridade ao aspecto finaceiro em detrimento do aspecto humano da questão. E é por isso que esta opção é fundamentalmente repunante pela sua inumanidade.

É também por isso que as autoridades na origem desta opção, que foi dissimulada do público através de medidas avulsas, insuficientes e desastradas, devem ser responsabilizados políticamente.

Ainda por cima todo este preço em vidas humanas pode ser completamente inútil se se der uma mutação genética do virus, o que tornaria inútil a imunidade adquirida por parte da população.
Recorde-se que é o que se passa com o virus da gripe, com estirpes diferentes a atacarem em anos sucessivos.

Foi uma decisão economicista que vai ter consequências desastrosas para milhões de seres humanos, não só pelas mortes e sofrimento envolvido mas também pelas rupturas económicas profundas que vai produzir.

Ver o video do professor Steve Keen que é muito claro quanto a isso.

https://www.youtube.com/watch?v=HE-44ngyYoA

Anónimo disse...

Jaime Santos como de costume quer estar do lado errado da história e da humanidade.

Bolsonaro simplesmente nega que o coronavirus vai ser um problema de saúde público e prepara-se para conduzir o Brasil a um desastre sanitário sem precedentes. Se é esse o exemplo que Jaime Santos tem para apresentar, bem, estamos conversados.

Quanto a Trump, basta ver um video com as suas diferentes afirmações ao longo do tempo para se perceber que a sua gestão foi muito mais gravosa do que o inicial encobrimento dos chineses.

Versão curta:

https://www.youtube.com/watch?v=Zm0lcZ4RsjI

Versão longa, para masoquistas:

https://www.youtube.com/watch?v=HvE9hCZ-jaU

Bolsonaro é demasiado repugnante até para ver em vídeo.

Anónimo disse...

Jaime Santos, me "espilica" a grande diferença entre o autoritarismo da China e a declaração do estado de emergência nos seus efeitos práticos para o combate ao coronavirus...

Anónimo disse...

Uma explicação de como o virus escapou ao controle, pelo NYT:

https://www.nytimes.com/interactive/2020/03/22/world/coronavirus-spread.html?action=click&module=Spotlight&pgtype=Homepage

...Mas onde não é explícito porque razão os fluxos de infectados na Europa e nos USA não foram detidos, quando pela informação epidemiológica já era evidente o risco dos movimentos de pessoas.

Filipe Marques disse...

Mais importante que tudo o resto: a China e a Coreia do Sul näo se importaram com a economia, e mandaram o pessoal para quarentena RAPIDAMENTE. Mortos e doentes são pouco produtivos... os orientais sempre a pensar no médio/longo prazo.

O governo chinês enconbriu no início, fez mal, mas desde que passaram a informac,äo para o exterior até que se iniciaram medidas de contenc,äo demoraram... 3 semanas? 4 semanas? porque "ai e tal, e as consequências para a economia, ai as bolsas" e o camandro... os ocidentais sempre a pensar no curto prazo.

Parafraseando:
E não, com isto não se está a pedir mais ditadura política na democracia, mas menos ditadura ECONÓMICA da democracia.

Jose disse...

Já não é possível saber o que seria dito se a UE fechasse fronteiras em meados de Janeiro e condicionasse os movimentos internos...mas adivinha-se o restolho!

Anónimo disse...

Este post do senhor Ramos é uma defesa hipócrita do totalitarismo pois serve-se duma epidemia nascida na própria China para retirar falsas vantagens ou benefícios do totalitarismo contra a democracia.
Porque o ataque do estado chinês há actual epidemia que é visível apenas na pessoa do senhor Jiping representa, precisamente, a face do totalitarismo pois este tanto serve para, sem mais nem menos nem qualquer discussão ou opinião pública expressa, atacar uma epidemia como para calar, atacar, prender ou matar quem se lhe oponha.
A imediata brutalidade de prender à força a população em suas casas revela, exactamente, do poder arbitrário do regime, poder esse que usa de forma idêntica contra qualquer ideia ou organização política que se lhe oponha.
E a defesa do senhor Ramos é puramente hipócrita porque quer tirar dividendos pelo nº de mortos e pela economia dum lado conta o outro; comunismo e democracia.
Acerca do nº de mortos vamos fazer contas no fim porque se na UE o caso ainda vai no adro na China também ainda não terminou.
Ó meu caro então a China não teve em conta a economia e só as pessoas? Então o senhor quer-nos impingir tal enormidade: Numa economia capitalista traçada à força da selva tal com Marx a viu em Inglaterra no Séc. XIX o que facilitou o crescimento económico galopante da China em competição com os USA ao ponto de em meio Séc. se tornar a 2ª potencia económica do planeta, diz o senhor Ramos que o regime só olhou para as pessoas e não para a sua economia?
Ou teria sido ao contrário, o regime olhou repentinamente para as pessoas por causa da economia? Tal como Marx viu invertida a dialéctica de Hegel o senhor Ramos vê invertida(dá-lhe jeito para a sua tese) a ideia de que o regime viu as pessoas em detrimento da economia. Sabe-se que sem pessoas nas fábricas à frente das máquinas não há produção nem economia, quer à maneira dos USA quer da China. A China é um pais continental e dado seu regime totalitário pode perfeitamente isolar uma região fechando as pessoas em casa para manter o grosso da "fábrica do mundo" a funcionar.
O que o senhor Ramos toma neste caso como um "valor acrescentado" do totalitarismo do estado chinês face às democracias europeias não passa de uma tentativa de criar um sentimento de ilusão sobre o valor da liberdade; eu também tenho na minha proximidade alguém que me diz que "não come liberdade".
Pois, mas sem ela só come o que os outros querem, quando querem e como querem e se refilar não come nada.

jiose neves

Jose disse...

A ditadura económica nas democracias é a ditadura das expectativas: sempre a crescer rumo ao 'tudo a todos'.
A esquerdalhada só se conforma com todos ricos ou todos pobres (excepto os queridos líderes, naturalmente).
A direita faz de conta que acredita poderem ser todos ricos e pelo caminho nem torna a riqueza estável nem sustentável.

Anónimo disse...

Não vamos ser naifs ao ponto de pensar que a preocupação dos dirigentes chineses foi com "as pessoas" em abstracto.

A doutrina chinesa pauta-se por um realismo e um pragmatismo à escala do país. Se numa primeira fase a burocracia tentou abafar as notícias da epidemia, quando "o poder", ou seja o PCC percebeu a magnitude e o poder disruptor do virus, rápidamente mudou de linha de actuação.

Esta mudança de linha de actuação não tem uma base humanista mas é inteiramente baseada no pragmatismo: Se se deixa avançar a propagação, não são só os mortos, é também a disrupção social a transmitir-se à produção, à economia e ao sistema político. Os dirigentes chineses perceberam que estavam perante uma linha de dominós em que se um caia essa queda se transmitia ao seguinte e assim sucessivamente até ao caos. Caos esse que não beneficiaria ninguém.

Independentemente da ideologia, foi esse mesmo o abismo para que Boris Johnson e Trump olharam e os forçou a alterar a sua estratégia de "herd immunity". Quando os "plebeus" descobriram a sorte que lhes estava destinada e puseram em causa essa estratégia, BJ e Trump foram forçados a, no mínimo, fazer de conta que se importam com as pessoas. Exactamente como os dirigentes do PC chinês.

Quem conheça a dimensão das cidades chinesas sabe que o seu gigantismo obriga a uma enorme disciplina mesmo em tempos ditos normais. A segurança e a vigilância são apertadas até pelo risco de ataques terroristas de radicais islâmicos oriundos de uma região ocidental do país. A suposta vantagem de uma sociedade autoritária é só que, uma vez tomada uma decisão, os canais de comando instalados tornam mais fácil a sua implementação até ao cidadão.

Mas nenhum sistema politico é bom se não tiver maneira de encontrar feedback de boa qualidade.
Nesse aspecto há o testemunho de um investigador ligado à OMS, que foi abordado por um membro do PC chinês que lhe disse qualquer coisa como: Esqueça com quem está a falar. Explique-me o que tem que ser feito e porquê. O investigador explicou as medidas necessárias à contenção do AIDS e essas medidas foram implementadas na China. Lamento mas não consigo localizar a fonte desta informação, pelo que escrevo de memória.

O ponto fundamental é que o virus não escolhe ideologia. Quando muito a resposta pode ser ideológicamente motivada. Só que, por preconceito ideológico se verificou que as chamadas democracias liberais têm gerido a questão de forma irresponsávelmente incompetente, como o caso da EU ao insistir na liberdade de circulação de pessoas quando a contenção da pandemia exigiria rigoroso isolamento. Esta tentativa de sobrepor a ideologia à necessidade de criar cordões sanitários vai ter consequencias catastróficas.