segunda-feira, 16 de março de 2020

Sem munições


Ontem, o primeiro-ministro explicou aquilo que os cidadãos sentiram como um atraso na decisão para conter o surto Covid19. Disse ele que era preciso evitar o cansaço na aplicação das medidas que se repercutiria em ineficácia.
É um momento duradouro, não podemos gastar as munições todas imediatamente.
Ora, não se entende muito bem esta lógica no caso do fecho de fronteiras com os países com maior probabilidade de contágio. Não há dois momentos para evitar a entrada de um surto. Houve efectivamente uma hesitação, com custos na saúde pública. Pior: não se entende a decisão de se ter fechado com a Itália (ineficazmente!) e só agora com Espanha, quando já era visível e previsível a importância de Espanha na sua propagação junto de Portugal.

Como se pode ver no gráfico acima, construído com os dados facultados pela Direcção Geral de Saúde, os casos importados tiveram uma importância crucial na expansão em Portugal do vírus. A 3 de Março, metade dos casos infectados (2 em 4) veio de Espanha (1) e Itália (1). No dia seguinte, já havia mais 4 casos importados (1 de Espanha e 3 de Itália). E a evolução foi exponencial. A partir de certa altura, o vírus acabou por se propagar independentemente dos casos importados. Ontem, os casos importados contavam com apenas 20% dos casos.


Mas não poderia esta situação ter sido evitada? Veja-se o que se passou.


A China estava a braços com o vírus desde Janeiro. E tinha sido possível adoptar medidas mais drásticas para evitar a sua entrada. Mas nada foi decidido nesse sentido. A 26 de Fevereiro, quando se deu a primeira divulgação de estatísticas em Portugal sobre o Covid19, já havia 25 casos suspeitos em Portugal, mas nenhum infectado. O primeiro relatório refere:

Oito novos casos foram registados nas últimas 24 horas, cinco no Hospital de São João, dois no Hospital Curry Cabral e um no Hospital Dona Estefânia. Todos os cidadãos são provenientes do norte de Itália. (...) Tendo em conta a situação epidemiológica mundial, é necessário considerar a hipótese da importação de casos de doença de cidadãos provenientes da China ou de outras áreas com transmissão comunitáriaativa. De acordo com a informação atual, o risco para a saúde pública em Portugal é considerado moderado a elevado. (Esta frase última seria repetida até o relatório mudar de formato a 3 de Março e desapareceu então).


Nessa altura, a China já tinha registado 78.487 pessoas infectadas, das quais 43.258 ainda activos, 32.495 curados e 2744 mortos. Em Itália, já havia 470 casos de infecção, com 12 mortos. Na França, havia 14 infectados e já dois mortos. No dia seguinte, o relatórios da Direcção Geral de Saúde volta a referir os casos italianos:

26 novos casos foram registados nas últimas 24 horas. Todos oscidadãos são provenientes do norte de Itália (27 de Março); e volta a frisar-se o risco moderado a elevado.

Portugal veio a registar oficialmente, a 3 de Março, os primeiros infectados - 4 pessoas. Desses, dois foram importados - um de Espanha e outro de Itália. E mesmo nessa altura, nada foi decidido. Talvez já fosse tarde demais. Mas se era já tarde, para quê fechar os voos de/para Itália a 10 de Março e agora para Espanha?

Fonte: DGS
A primeira decisão foi tomada a 10/3 com os voos para Itália, e mesmo assim de forma inconsequente. Recordo mais uma vez o caso do português que chegou anteontem de Turim, via Alemanha, desembarcou no Porto, ninguém o parou no aeroporto e foi para casa. Como se pode ver no 2º gráfico, os casos importados de Itália continuaram a subir depois dessa data.

Mas mesmo nessa altura, já foi tarde. Nesse dia, a Itália já tinha 10 mil infectados e 631 mortos.

Agora veja-se o caso de Espanha. Quando o Governo decidiu fechar os voos de/para Itália, havia apenas 41 infectados em Portugal, e 5 casos importados de Itália. Nesse mesmo dia, a 10/3, já havia em Espanha quase 1700 infectados e 36 mortos. E a tendência era a de uma subida exponencial. Essa evolução reflectiu-se no número de casos importados de Espanha que passou de 2 a 11 de Março para 16 quatro dias depois. Foi nesse contexto que o Governo anunciou a possibilidade de fecho da fronteira com Espanha...

Ou seja, parece haver dois pesos e duas medidas. Em Itália, havia 5 casos importados desse país em 13 infectados. Para Espanha, já há 16 casos importados de Espanha com 245 infectados.

Qual foi o critério?

Agora, veja-se o seguinte. Entretanto, neste período mais recente, já surgiram outros casos: nomeadamente de França (de 5 casos a 13 de Março para 9 a 15 de Março). Ou da Suíça. A França já tem mais de 4400 casos e 91 mortos, e a Suíça mais de 2200 infectados e 14 mortos.

Veremos quando é que o Governo decide adoptar medidas semelhantes em relação a esses países. E o que dirá então.

14 comentários:

Jaime Santos disse...

Quantos casos importados é que foram trazidos por turistas e quantos é que se referem a cidadãos nacionais ou a estrangeiros residentes a quem não pode ser negada a entrada no País?

Pode discutir-se se se deveria ter colocado em quarentena aqueles que chegaram, como fez Macau creio eu, mas isso é uma questão distinta da questão de se saber se deve fechar fronteiras...
E cabe lembrar, como dizia o Daniel Oliveira, que é preciso confiar nos técnicos sabendo que eles cometerão erros porque mesmo sabendo, sabem pouco...

É a música do acaso a tocar...

Muito provavelmente as fronteiras serão fechadas por pressão política da opinião pública (a decisão de encerrar escolas foi tomada contra a opinião de especialistas, e bem, entendo eu, devido sobretudo ao grau de alarme social que estava a gerar) não porque os técnicos estivessem de acordo relativamente a ela (os técnicos nacionais eram contra, a malvada da UE a favor).

O que me parece é que já há muita gente a tentar utilizar o que está a suceder para alavancar posições políticas que raiam a xenofobia e o leninismo político de todas as cores.

Aconselha-se o artigo do vosso colega Paes Mamede no DN sobre a aprendizagem de como viver sob a absoluta incerteza. Não foi o capitalismo per si, João Ramos de Almeida, a primeira entidade que decretou que 'tudo o que é sólido se dissolve no ar'. Muito antes dele foi o Tempo...

Muito longe das certezas que caracterizam os diferentes tipos de extremismo político...

Aconselha-se ainda a leitura do conto de Allen Poe, 'A máscara da morte vermelha', referido por Pacheco Pereira. É que no fim a morte, seja vermelha, negra ou de outra cor qualquer, apanha-nos a todos no final...

José M. Sousa disse...

https://www.dn.pt/pais/aeroporto-de-lisboa-passageiros-violam-medidas-restritivas-da-direcao-geral-de-saude-11933596.html


https://www.ana.pt/pt/lis/voos-e-destinos/encontrar-voos/chegadas-em-tempo-real

A irresponsabilidade não tem limite. Basta acompanhar o nº de voos que têm chegado de Espanha, Suiça, Grã-Bretanha e outros, países com grande número de infectados ou sem medidas de controle. É preciso notar que o nº infectados real é muito superior ao oficial porque há sempre um hiato entre o momento da infecção e o seu diagnóstico. E, entretanto, o pessoal vai circulando nos aeroportos, cinco dias depois da OMS ter anunciado a existência de pandemia e de pessoas como este director de uma faculdade de medicina ter apelado ao PM para fechar ao país https://www.publico.pt/2020/03/14/sociedade/opiniao/senhor-primeiroministro-feche-pais-saude-1907801

Querem ver que ainda decretam o Estado de Emergência e continuam com os aeroportos abertos.

A oposição está caladinha com medo de criticar o governo nesta altura? Vão deixar para o Ventura?

Anónimo disse...

Xenofobia? Leninismo? Como é possível escrever tantos disparates juntos, Jaime Santos?

Não se podem encerrar fronteiras? Quem diz?

https://www.france24.com/en/20200316-germany-imposes-border-controls-with-five-countries-in-virus-fightback-afp

Quando se é mais papista que o papa fazem-se essas figuras tristes.

João Ramos de Almeida disse...

Caro Jaime,

Tudo deverá ser transparente.

Se os especialistas são contra o encerramento de escolas ou fronteiras que o expliquem frontalmente e todos compreendemos. O que não se compreende é o que não tem lógica.

Importar casos - nacionais ou estrangeiros - sem quarentena, apenas pode ser compreensível caso se queira - até por boas razões (vidé caso Reino Unido) - contaminar a população.

Tudo pode ter uma explicação técnica. Mas o que não faz sentido é estar usar-se "munições" apenas para gerir o ambiente social. Porque é demasiado perigoso: quando a acumulação de incongruências for excessiva, ninguém vai acreditar em ninguém. E alguém aproveitará.

Anónimo disse...

Como vem aí o bom tempo, o melhor mesmo é fazer campismo, ou como os americanos são condicionados a abraçar o retrocesso civilizacional.

https://www.zerohedge.com/health/covid-19-sun-lesson-1918-influenza-pandemic

Parece que caímos numa daquelas séries americanas de "prepers" e survivalistas.

Entretanto recorde-se que os hospitais pré-fabricados chineses estavam equipados com ventiladores, que por sinal, como já não precisam, mandaram para Itália.
O sarcasmo está incluído, para que não restem dúvidas.

José M. Sousa disse...

https://www.forbes.com/sites/davidnikel/2020/03/14/norway-closes-all-airports-to-foreigners-as-coronavirus-cases-mount/#560299231913 O caso da Noruega:

«Just 48 hours after implementing the most drastic emergency measures ever seen in peacetime in Norway, the Norwegian Prime Minister Erna Solberg has announced several additional restrictions. From 8am CET on Monday, March 16, all Norwegian airports and seaports will no longer allow foreigners who are not residents of Norway to enter the country.»

Parece que pululam mercenários nestas caixas de comentários...

José Cruz disse...

As incongruências e perplexidades que são descritas,com abundância de registos,parecem não apontar qualquer razão lógica.A valorização ,quase exclusiva,da contaminação a partir de Itália e a displicência com que foram ignorados os casos com origem em infectados,na vizinha Espanha,têm uma justificação que reside no facto de,a coberto de Schengen,o Estado português,ao longo dos anos e dos sucessivos governos,ter adoptado uma postura de eliminação,na prática,da única fronteira terrestre que o país possui,com a desactivação total e redução dos custos correspondentes,nos serviços afectos ao SEF e às forças de segurança.Este facto,é comprovado pela reportagem de um dos canais de TV,generalista,que durante o dia de hoje,desde Quintanilha ao Caia,não encontrou qualquer controlo nos postos fronteiriços. A lógica do liberalismo,em qualquer forma que assuma,é a da supressão, eliminação o redução dos serviços básicos,da responsabilidade exclusiva que tem para os cidadãos, com o objectivo único de prover poupança,naqueles serviços, para manter o desiqulíbro na apropriação e distribuição de recursos,que concede ou concessiona ao sector privado.É assim na Saúde,é assim no Controlo de Fronteiras aéreas e terrestres.
Para terminar,deixo só está nota final:se não fosse a presença do Luís Sepúlveda,na Corrente de Escritas,na Póvoa do Varzim,ter sido confirmado como portador do Coronavírus-19,no regresso às Astúrias,quem teria olhado para Espanha como importante origem da infecção?

Anónimo disse...

O que se torna cada vez mais evidente é que foram feitas escolhas a nível dos governos dos países ocidentais que implicam a aceitação de níveis de mortalidade que talvez um público informado não estivesse disposto a aceitar.

No caso de Itália contam-se 27980 casos e 2749 mortos. Fazendo as contas são 9,8%, o que indicia que o número de infectados está subestimado.

A estratégia é tanto mais arriscada quanto menos recursos o país disponha para enfrentar os casos graves. Por exemplo Portugal tem 4,2 camas de cuidados intensivos por cada cem mil habitantes. A Alemanha tem 29,2.

Mesmo admitindo a sinistra opção de ser uma forma de os países se livrarem da "peste grisalha", haverá comparativamente mais sobreviventes alemães do que portugueses. Eu a este tipo de manobras chamo genocídio diferencial.

"Face à ces doutes logiques, que personne n’est aujourd’hui en mesure de trancher, la stratégie de la pandémie contrôlée présente au moins quatre certitudes :

1 On accepte l’idée que des millions de personnes seront contaminées par le virus, en partant du présupposé que les systèmes sanitaires publics seront capables de réduire considérablement les dégâts, dans l’attente que se déclenche l’immunité collective et/ou qu’on trouve un remède.
2 On accepte donc que des milliers, peut-être même des centaines de milliers ou de millions de personnes meurent, parce qu’on considère que les coûts (économiques, politiques et peut-être sanitaires) d’une stratégie de contraste radical du Coronavirus seraient plus élevés ; On accepte que ceux qui paieront le prix fort de ce choix stratégique soient en particulier certains groupes de la population, plus vulnérables par rapport à la maladie : les personnes âgées et les immunodépressifs en premier ;
3 On accepte de mettre en péril les systèmes sanitaires des pays voisins qui, en Europe et surtout hors de l’Europe, ne sont pas aussi avancés et qui, très difficilement, seront capables d’adopter la stratégie de la « pandémie contrôlée » ;
4 On compromet les efforts des pays, l’Italie en premier, qui sont en train d’essayer, au moyen d’efforts colossaux, de contrôler la diffusion du virus."

"Les choix que sont en train de faire, ces jours-ci, les principaux dirigeants politiques européens se présentent sous couvert de considérations de caractère technico-scientifique. Il s’agit, en réalité, de choix éminemment politiques.

En outre, ils font mine de passer pour les choix les plus raisonnables et modérés, alors qu’ils présentent, il me semble, un degré de risque et de radicalité très élevés."

Ver a totalidade do artigo:
https://legrandcontinent.eu/fr/2020/03/15/la-pandemie-controlee-et-les-non-dits-des-apprentis-sorciers/

Anónimo disse...

Olha! Um grupo de economistas portugueses decidiu fazer uma petição ao ECB:

https://voxeu.org/article/european-union-and-democracy-must-deliver#signatories

Não é claro que tipo de motivações move este grupo. Se alguém tiver mais informações...

Gonçalo Avelãs Nunes disse...

considero que neste momento devemos ser exigentes mas ao mesmo tempo compreender que ninguém tema a verdade e devemos ser ponderados nas opiniões e criticas no combate ao covid já que mesmo ao nível dos especialistas existem divergências profundas. considero que mal ou bem não seu o governo confiou no Cons Nacional de saúde publica e eu pergunto é censurável por isso?
Vamos ter contenção e calma nesta matéria muito especifica e melindrosa e vamos exercer os nossos direitos democráticos em sede das respostas económicas e sociais á crise que já aí está e aí sim muito podemos dizer criticar e censurar ao Governo mas principalmente à UE

José M. Sousa disse...

Não concordo com esta posição do Gonçalo. As autoridades estão a levar com muita ligeireza este problema, menos ligeireza com do que nos EUA, Brasil e Reino Unido, mas ainda assim com ligeireza. Não há coordenação entre as diferentes autoridades, os turistas passeiam-se pelo país como se nada fosse. etc. Ainda agora me contaram um caso de colega regressado do Brasil e o controlo foi zero. Não se percebe como é que os voos, por exemplo, para o Reino Unido e o Brasil não foram ainda suspensos.

Anónimo disse...

Vamos lá a ver se a gente se entende.

Foi feita uma opção cujas consequencias vão ter que ser assacadas a quem a tomou.

As condições para DETER a propagação do virus são conhecidas e têm um preço económico. Claramente o conselho europeu e o governo cá do protectorado não quiseram pagar esse preço. Além disso consideraram que como o virus afecta sobretudo aqueles que representam despesa para o estado, a longo prazo a "razia dos velhos" pagava.

Esta decisão de optar pela "herd immunity", "imunidade de manada", não foi discutida públicamente.

Parece-me justo que quem sofra com a doença ou perca familiares ou amigos em consequência de tão odiosa decisão responsabilize claramente os seus autores.

Ainda está para se ver se as consequências económicas desta estratégia de "apenas evitar o pior" e pagar um preço "mais baratinho" não terá custos mais elevados do que a opção adoptada na China, Taiwan, Singapura e Coreia do Sul.

Uma coisa é já certa. Ao sabotar os esforços de contenção da China, torna necessário que esta agora crie um cordão sanitário que impeça que o virus volte a entrar na China.

O exemplo do que se está a passar em Itália demonstra que o laxismo da "imunidade de manada" é uma treta que vai ter gravosas consequências. E eu espero que aqueles que forem afectados saibam a quem devem pedir responsabilidades.

Nunca pensei que as autoridades europeias com os seus pergaminhos humanistas se viessem a conportar como verdadeiros bárbaros e incivilizados. Estão avisados. Estamos avisados.

José M. Sousa disse...

https://theamericanscholar.org/who-should-we-blame-for-coronavirus/#.XnDibKj7SUm


How Global Agriculture Grew a Pandemic
The COVID-19 crisis was preventable—if only we’d listened to the epidemiologists sounding the alarm

José M. Sousa disse...

É melhor reconsiderar a ideia tão generalizada de que isto só toca aos velhos :

Covid-19 - taxas de mortalidade por idade, sexo e condições de saúde

https://www.worldometers.info/coronavirus/coronavirus-age-sex-demographics/

40-49 years old
0.4%
30-39 years old
0.2%
20-29 years old
0.2%
10-19 years old
0.2% Querem arriscar os vossos filhos, também?