quinta-feira, 26 de março de 2020

Guião para o absurdo


Sobre esta crise tem-se dito que teve a capacidade de transformar muitos políticos e economistas conservadores em keynesianos. Mas não se trata apenas disso: tornou-os num tipo muito específico de keynesianos – aqueles que rejeitam o agente representativo e a maximização intertemporal do consumo como aspetos fundacionais do pensamento económico.

Chegado o momento de crise, tornam-se frequentes os raciocínios baseados na propensão marginal ao consumo e nos efeitos multiplicadores no seio da economia. Todos estes efeitos são baseados em efeitos de rendimento de injeção/subtração de procura do circuito económico. Não nos efeitos de substituição em reação a choques no problema de maximização do consumidor.

Este é um movimento curioso, porque a macroeconomia dominante nos últimos 30 anos assume como patamar de legitimidade o facto de ser microfundada no comportamento otimizador de agentes representativos. Quem quer fazer modelação e ser respeitado tem de respeitar essa regra. Mas tudo isso colapsa quando se tem de explicar um raciocínio ou desenhar política económica: seria impossível convencer alguém explicando os mecanismos de um modelo de maximização intertemporal, porque eles soam absurdos. As limitações do instrumentalismo, enquanto guia metodológico que ignora a realidade das premissas enquanto enfatiza a capacidade de explicar factos estilizados, fica bem clara neste momento.

Imagine-se alguém que apenas tivesse estudado por livros de referência de macroeconomia para mestrado/doutoramentona maioria das instituições, como o livro de David Romer ou outro semelhante. Ou que teria a dizer sobre as medidas de resposta a esta crise? Pensemos só num pequeno exemplo.

Num modelo em que um agente representativo maximiza o seu consumo ao longo da vida, não há nenhum incentivo para alterar o seu padrão de consumo se considerar que está perante o um choque temporário como o que estamos a ultrapassar. Se o mercado de crédito for completo, não existindo restrições de liquidez, e um corte temporário no rendimento será compensado com recurso a crédito durante o período do choque, sem que isso afete a sua escolha de consumo a longo-prazo.

De igual modo, sem restrições de liquidez, qualquer transferência do Estado para os cidadãos não terá a capacidade de estimular o consumo privado no presente: como os consumidores maximizam o consumo ao longo da sua vida, o perfeito cálculo do futuro leva-os a saber que as transferências no presente serão compensadas por maiores taxas de imposto no futuro (num contexto em que a economia não está em pleno emprego tal não tem que ocorrer, mas o modelo assume que não existe desemprego involuntário).

A única forma de transferências para as famílias financiadas pelo Estado terem impacto no consumo presente passa por assumir que parte dos agentes têm restrições de liquidez. Ou seja, que não têm acesso ao crédito em momento de corte temporário de rendimento. O que, na realidade, são a maioria dos agentes. Quem é que pode, ou quer, contrair um crédito pessoal num momento de crise?

Imagine-se que este economista crente no agente representativo era convidado a comentar as respostas de política económica para enfrentar esta crise. O que poderia ele dizer? Algo como: “Devemos esperar uma subida pronunciada do crédito pessoal durante este período. O Estado deve assegurar que os bancos garantem liquidez à maioria dos agentes, o que prevenirá a sua necessidade de intervenção. A disponibilidade de crédito torna ineficaz e desnecessária as transferências socais do Estado. Mais disponibilidade de crédito ao consumo poupará recursos a todos nós”.

O verdadeiro guião para o absurdo.

Pode argumentar-se que eu não estou a ser honesto intelectualmente: na verdade, ninguém está a defender esta posição e, mesmo os economistas que ensinam e fazem modelação sustentada nestas proposições, reconhecem que não podem transpor a realidade estilizada dos seus modelos para analisarem uma crise real. Mas isso conduz-nos a uma outra questão: que sentido faz que uma área de conhecimento insista em basear os seus modelos em proposições que não têm adesão na realidade e em que os choques e às reações de política económica se propagam por mecanismos implausíveis? E que sentido faz que, quando têm de analisar crises reais, recorram aos mecanismos de quadros teóricos (como o multiplicador keynesiano) que tão ferozmente combatem no seio da sua disciplina? Pensemos sobre isso.

1 comentário:

PauloRodrigues disse...

Esta crise sanitária apenas coloca de novo em evidência os modus operandi das elites: os 1% ficam com o lucro e os 99% ficam com o prejuízo.
Tudo está a correr como o previsto.