domingo, 15 de março de 2020

Da miséria editorial


É há muito evidente para qualquer pessoa minimamente atenta que os principais órgãos de comunicação social são controlados por uma tropa-fandanga neoliberal. É preciso dar nomes às coisas. Vejamos então dois editoriais, oriundos de jornais que se dizem de referência, de ontem: o Expresso, dirigido por João Vieira Pereira, e o Público, dirigido por Manuel Carvalho.

Pereira reconhece que o SNS foi fragilizado pela política de austeridade; política de que sempre foi um dos defensores, lembrem-se. A falta de memória acompanha a mais pura ofuscação, quando Pereira fala “da guerra ideológica, entre público e privado, fomentada pelos partidos de esquerda” em torno do decisivo SNS; um serviço que só estes partidos aprovaram, lembrem-se.

Tomando os leitores por idiotas, Pereira defendeu a necessidade de “colaboração” público-privada, quando todos os que se dão ao trabalho de ler tal jornal sabem da guerra ideológica que aí tem sido movida contra sector público, em nome da entrada do capital num sistema de provisão crucial: “clusters” da saúde, com muita publicidade aí misturada com escasso jornalismo. A austeridade, agora criticada com desfaçatez, tem sido só um meio.

De resto, não é de colaboração que hoje se trata, mas sim de requisição urgente de recursos ditos privados para os colocar ao serviço de toda a comunidade por puro pragmatismo, ou seja, por pura funcionalidade. A catástrofe eminente não se combate só com apelos, mas sobretudo com autoridade e planificação públicas.

Carvalho, por sua vez, deu francamente conta das dificuldades dos neoliberais com a actual situação, falando de “responsabilidade individual” ameaçada e de outras vulgaridades a que já nos habituou, como a do mercado livre numa banca totalmente irresponsável. Carvalho tem a obrigação de saber que só há responsabilidade individual no quadro de um propósito colectivo, num contexto de segurança social. A ofuscação do mercado livre serve apenas para desresponsabilizar quem tem poder económico.

Contrastem esta miséria ideológica com a original, ou seja, com a britânica The Economist, uma revista que condensava semanalmente os melhores argumentos neoliberais sobre tudo que é humano, tendo uma forte influência em Portugal. Já na semana passada tinha dado conta da desestabilização ideológica em curso. Sabemos da melhor história intelectual e política que isto é temporário.

Seja como for, esta semana continua com dois editoriais surpreendentes, onde se podem ler coisas destas: “ sistemas universais, como o britânico Serviço Nacional de Saúde, devem conseguir mobilizar recursos e adaptar regras e práticas de forma mais fácil do que sistemas privados”; “o desafio é o de fornecer dinheiro às empresas (...) isto é mais fácil na China onde o Estado controla os bancos”.

A banca pública, suportada pelo poder de um banco central, num regime com controlos de capitais, gera mais segurança: é claro que esta revista jamais colocará em causa o imperialismo de comércio livre, de que é um dos arautos desde 1834, mas menos integração para melhor integração deve estar claramente no horizonte de qualquer pessoas sensata, depois de mais uma crise gerada pela globalização.

É claro que tais heresias raramente aparecem na comunicação social deste país, vulnerabilizado pela conversa das exportações de tudo e mais um par de botas; vulnerabilizado sobretudo pela perda de soberania no campo da política económica. Se até Mário Centeno reconhece que “acção política está nas capitais”, então reconheça-se que o drama das capitais é a falta de soberania monetária, de suporte na escala adequada para uma política orçamental discricionária, a única capaz de fazer face à incerteza. É por esta e por tantas outras que o consenso de Bruxelas-Frankfurt é uma relíquia bárbara.

Entretanto, é claro que isto é uma emergência. Depois virá a fase da crise como oportunidade para a selvajaria editorial a que estes jornais já nos habituaram, com a ajuda preciosa da UE, mas isto só se os povos dos Estados deixarem. Talvez não deixem, talvez: no meio da catástrofe, ronda por aí uma energia moral, alimentada pela bateria da comunidade nacional, pela potência do “reconhecimento da realidade da sociedade”, bem mais do que um somatório de indivíduos, que é um perigo para os euro-liberais de todos os jornais...

3 comentários:

Anónimo disse...

Concordo com tudo o que escreve, excepto o último parágrafo. Lá pelo final do verão teremos regressado ao business as usual. É da tragédia dos comuns.

JRodrigues

Jose disse...

A peste é o ambiente natural para as virtualidades de «uma política orçamental discricionária», e se faltar moeda usem notas de crédito fiscal.

Passada a peste há que regressar às liberdades e responsabilidades individuais, e os grandes planificadores que regressem à suas habituais frustrações.

Anónimo disse...

José está muito confiante que a sua visão ideológica individualista e darwinista vai sobreviver à prova real de uma pandemia que exige acção colectiva responsável e solidariedade. Quando a tormenta passar prevejo que a crista ideológica do José estará muito mais abatida.

Confiar na "imunidade de manada" (herd immunity) é capaz de se revelar desastroso. Pelo menos para +-2 ou 3% da "manada" corre o risco de ser mortal. Se o caos italiano fôr replicado pode chegar aos 6.8%.

https://www.independent.co.uk/news/health/coronavirus-herd-immunity-uk-nhs-outbreak-pandemic-government-a9399101.html

É que a "imunidade de manada" tem uma aparência colectiva mas esconde as vantagens individiais dos possidentes em se protegerem e o resultante darwinismo social. Tudo gente bem-pensante e de grande sentido ético e humano.