Na Alemanha, as sondagens indicam que Angela Merkel pode ganhar as eleições de Setembro e formar com os liberais da actual coligação um novo governo com maioria absoluta. Relata ainda o Público (18 Agosto) que, quando Merkel subiu ao palco num dos comícios do arranque da campanha, “só disse duas frases gerais sobre a UE: “Precisamos de uma Europa forte” e “todos os países devem fazer o seu trabalho de casa”. […] O filósofo Peter Sloterdijk diz que Merkel preside a um período de "letargocracia" (contrapondo no entanto que ela está apenas a reflectir o que o eleitorado pretende). Já num artigo de opinião no Süddeutsche Zeitung (centro-esquerda), o jornalista Daniel Brössler ataca Merkel por ter "removido" a questão europeia do debate eleitoral. […] Mais: o quadro de "os laboriosos e poupados alemães que têm de pagar pelos despreocupados europeus do Sul" ficou tão embutido na consciência dos alemães que será difícil de desfazer, critica Brössler, notando que a Europa é um "tema tóxico" e que o partido que o abordar arrisca-se a ser paralisado por lhe tocar.”
O facto relevante é este: na Alemanha, está para durar a hegemonia da narrativa ordoliberal da crise do euro – “os despesistas do Sul sustentaram durante décadas um Estado social incomportável e assim criaram na zona euro uma crise da dívida soberana”. Entretanto, as diferentes esquerdas europeias continuam a não contrapor uma narrativa alternativa, ou porque se movem dentro do mesmo paradigma (a globalização é um dado, a moeda única é parte do caminho para os Estados Unidos da Europa) ou porque, desvalorizando a realidade nacional, aspiram à construção de um “euro bom”, a moeda de uma futura entidade política europeia, pós-nacional, dominada pelas classes trabalhadoras (ver a crítica desta ilusão no artigo de Frédéric Lordon “Sair do euro, mas como?”, Le Monde Diplomatique). O certo é que cada vez mais se sente a falta da contra-narrativa.
Falta-nos uma esquerda que apresente uma narrativa da nossa crise como parte do colapso do euro enquanto projecto do capitalismo financeiro em ascensão fulgurante nos anos noventa do século passado. Uma meta-narrativa mobilizadora das percepções populares, que integre as experiências vividas com o desemprego de massa, a erosão do Estado social, os escândalos políticos e da finança, a crise bancária e a crise das finanças públicas, que numa explicação simplificada atribua tudo isso à perda da soberania e à mão bem visível do dinheiro que tudo compra. Enfim, que aponte como causa última deste estado de coisas o colete-de-forças do euro e a tutela germânica da UE.
Como alguém escreveu, “Se uma conjuntura oferece a oportunidade para uma intervenção decisiva, antes de mais ela tem de ser percebida como um momento em que uma intervenção decisiva pode, e talvez deva, ser realizada. Mais ainda, ela tem de ser percebida como tal pelos agentes capazes de dar a resposta”. Enquanto isto não acontecer, permaneceremos numa situação de “catástrofe estacionária”, um conceito próximo do contributo de Gramsci, muito lembrado pelo João Rodrigues (por exemplo aqui).
4 comentários:
"Falta-nos uma esquerda ... que aponte como causa última deste estado de coisas o colete-de-forças do euro e a tutela germânica da UE."
Para ser 'assimilada', qualquer narrativa tem de apelar ao senso comum e corresponder à vivência da população. Não vai ser possível criar uma narrativa culpabilizadora da tutela germânica da UE quando uma parte muito substancial da população tem a percepção (e a experiência, muitas vezes em primeira mão) de que Portugal geriu mal os fundos que recebeu, que desperdiçou oportunidades, que apostou erradamente no betão, que privilegiou o novo-riquismo e a aparência em vez da substância, ...
E contra exemplos que cada um conhece em geral ou da sua própria experiência (FSE e negócio da formação inútil, auto-estradas mal planeadas, estádios vazios, TGVs e novos aeroportos, Novas Oportunidades, Magalhães, negócio dos subsídios europeus, renovação sumptuosa de escolas, construção desenfreada e especulação imobiliária,...) não é possível contrapor uma narrativa baseada em frases-feitas que culpabilize outros.
O problema é que, em Portugal, os actuais partidos do poder, PSD e CDS até parecem concordar com a leitura alemã da crise, "os laboriosos e poupados alemães que têm de pagar pelos despreocupados europeus do Sul".
E, o PS não anda muito longe...
O que é que podemos esperar quando o Sec Geral do PS dá, para ultrapassar a crise, caminhos que passam sempre por termos a ajuda e apoio da "Europa", i.e., da Alemanha.
E se a "Europa" não quiser ajudar? Em que é que ficamos? Seria útil que o PS apresentasse um plano B, um plano para o caso da "Europa" recusar-se a ajudar.
Lembro que nos anos de 1977/78 e 1982/83 não havia Euro, os bancos e as grandes empresas eram do Estado, o endividamento e das familias e do Estado era muitissimo menor que actualmente.
No entanto, nestes anos também tivemos que recorrer ao FMI, e por consequência, aplicar fortes medidas de austeridade.
Por isso, amigo Bateira, talvez o Euro e o capitalismo selvagem não sejam a principal causa dos nossos males.
Anónimo escreveu:
"No entanto, nestes anos também tivemos que recorrer ao FMI, e por consequência, aplicar fortes medidas de austeridade."
Primeiro as medidas de austeridade não foram tão violentas como as actuais.
Depois, em 1975, dois anos antes, Portugal recebeu centenas de milhares de refugiados das ex-colónias, alojo-os, alimentou-os e até lhes deu algum dinheiro para montarem negócios e sobreviverem.
Isto com a primeira crise do petróleo em cima e com a perca dos mercados coloniais.
O que é espantoso é que o país tenha sobrevivido só com umas ajudinhas do FMI.
O Sr. Anónimo faz comparações absurdas!
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