quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A narrativa neoliberal não foi de férias


O discurso de Passos Coelho no Pontal foi mais um episódio de propaganda política, só possível porque as televisões perderam a vergonha. A pretexto de informação em directo, fizeram a transmissão na íntegra de um discurso de comício. Nada que espante, porque hoje a televisão desempenha um papel central na construção de uma narrativa hegemónica da crise, um discurso simples sobre as suas origens, os seus responsáveis e as transformações do Estado que nos farão sair dela. Para executarem o seu projecto político, os partidos que nos governam precisam, no mínimo, de uma generalizada resignação dos cidadãos. A forma mais eficaz de a produzir consiste em criar uma larga maioria de fazedores de opinião (jornalistas, economistas, politólogos, deputados, políticos senadores) que sustente nas televisões a mesma narrativa da crise, a narrativa neoliberal.

O buraco em que caímos - forte e prolongada quebra na produção, desemprego de massa, mais fome e pobreza, crescimento da dívida pública em bola de neve, redução de salários, pensões e prestações sociais, pesado aumento de impostos sobre as famílias - é um fenómeno de interpretação complexa. Aliás, não pode haver uma interpretação indiscutível desta crise, ou de qualquer realidade sociocultural, já que não temos acesso a essa realidade a não ser através de conceitos, teorias, valores, ideologias. Não sendo a realidade um produto das nossas mentes, como sugere um certo construtivismo pós-moderno, ainda assim a narrativa de uma crise é uma mediação essencial porque tem causalidade própria. Quando é politicamente validada, torna-se a fonte inspiradora das decisões de reconfiguração do Estado e das políticas que lançam a sociedade numa nova e duradoura trajectória.

O colapso que estamos a viver foi gerado ao longo de mais de uma década por mecanismos socioeconómicos criadores de endividamento público e privado (sobretudo este) que, num país de economia frágil e sem moeda própria, se tornaram insustentáveis. Por isso, a crise atinge mais a periferia sul da zona euro. A interpretação neoliberal deste processo explora o senso comum e faz sentido para a maioria das pessoas - "o nosso despesismo sustentou durante décadas um Estado social incomportável, o que nos conduziu a mais uma crise. Vamos na terceira intervenção do FMI, mas, agora dentro do euro, temos mesmo de fazer aquilo que já não é adiável, reduzir o Estado social focando-o nos mais necessitados".

Esta narrativa integra sem dificuldade alguns factos que chocam o cidadão comum (casos de endividamento para consumo, muita formação profissional ineficaz, obras públicas de duvidosa utilidade, distribuição de empregos no Estado e empresas públicas, corrupção de vários tipos, etc.) ligando-os a má gestão do Estado, "a causa" da crise. É uma narrativa muito forte porque é plausível para o cidadão comum sem formação específica. Assim sendo, seria de esperar que as esquerdas tivessem investido fortemente na elaboração de uma alternativa, até porque a política de austeridade que tem sido seguida produziu uma calamidade social. Infelizmente, apenas foram produzidas narrativas parcelares sem consistência global. Uma contranarrativa teria de explicar em linguagem simples e popular que o endividamento foi gerado pela perda do escudo e que isso conduziu ao crédito fácil e à desindustrialização do país. Teria de dizer que com o euro perdemos as políticas de que precisamos para ir mais além no desenvolvimento. Teria de dizer também que perdemos a liberdade para decidir sobre as diversas vertentes do Estado social porque essas escolhas já estão feitas e inscritas nos tratados, as que a Alemanha aceitou ou mesmo impôs. Teria de dizer que não temos futuro dentro do euro.

Em Agosto, a narrativa neoliberal não foi de férias.

(O meu artigo no jornal i)

8 comentários:

Nan disse...

Obrigada pelo excelente post. É isto, exactamente. Infelizmente a esquerda parece mais preocupada em devorar-se a si mesma. Estamos tramados, não estamos?

henriquedoria disse...

Claro que têm de falar no despesismo para esconderem a verdade da crise: o latrocínio, a corrupção, a fuga aos impostos

Anónimo disse...

"Uma contranarrativa teria de explicar ..."
Esta frase e as frases seguintes, espelham na perfeição a dificuldade em produzir a tal contranarrativa que preconiza porque:
1 - não integra "alguns factos que chocam o cidadão comum", o que lhe retira credibilidade e dificulta a aceitação;
2 - utiliza expressões vagas ("perdemos as políticas de que precisamos para ir mais além no desenvolvimento"), desligadas de exemplos concretos;
3 - utiliza expressões que não se dirigem certamente ao "cidadão comum sem formação específica" ("o endividamento foi gerado pela perda do escudo e que isso conduziu ao crédito fácil e à desindustrialização do país");
4 - utiliza expressões ("crédito fácil") que remetem para algum julgamento moral associado precisamente à narrativa neo-liberal!

Em resumo. O seu post, e a tentativa que faz no final para delinear uma contranarrativa, falha os objectivos enunciados e mostra, mais uma vez, que a narrativa neo-liberal está para ficar.
O seu esforço veio até aumentar a minha dúvida: será mesmo possível construir uma contranarrativa eficaz?

Alvaro disse...

"reduzir o Estado social focando-o nos mais necessitados"

E, à medida que a pobreza aumenta, os mais necessitados tenderiam a aumentar. Mas o Estado Social não aumentará. A próxima narrativa será simples, o Estado Social é inviável e quem quiser saúde, educação, etc., que a pague. Se não tem dinheiro para a pagar é porque é um mandrião e o resto da sociedade não tem que o sustentar!

Unknown disse...

Sendo o senhor um sábio, porque não previu e denunciou a tempo, que os políticos que nos governaram durante os últimos 20 anos nos iam meter neste buraco como fez Medina Carreira ?

Lowlander disse...

"porque não previu e denunciou a tempo, que os políticos que nos governaram durante os últimos 20 anos"

Que fizeram os partidos e economistas politicas de esquerda em Portugal desde pelo menos Maastricht?
Nao se lembra que eram tao chatos e repetitivos que ate lhes chamavam de "cassetes"?

"como fez Medina Carreira ?"

LOLOLOL

Jorge Bateira disse...

Caro Anónimo das 00:47

O seu comentário baseia-se num equívoco: supõe que o texto avança com algum esboço de uma narrativa alternativa. Ora o que o texto diz é que é preciso investir (gastar muitas horas de trabalho) na construção de uma narrativa global. É que não é simples usar metáforas equivalentes à da economia doméstica para falar daquilo que se "teria de dizer".
De facto o texto dirige-se a um público instruído que regra geral conhece os meus artigos e o que se publica neste blog. Aí pode informar-se sobre o que significa crédito fácil (exemplos gritantes de imoralidade e ilegalidade -> BCP e BPN) e políticas sem as quais um país não se desenvolve.

Anónimo disse...

Caro Jorge Bateira:

Antes da esquerda divulgar e publicar aquilo que designa como "contranarrativa" teria de ter onde o fazer. Uma coisa é ter o horário nobre das televisões generalistas e as capas dos jornais para expor a "narrativa". Outra, bem diferente, é ter a "contranarrativa", a pouca que existe, no cabo ou nos blogues. A disparidade das audiencias é enorme.
O problema da esquerda em desmontar a "narrativa" passa por aqui. Querer usar os media do sistema para fazer passar uma mensagem anti-sistema. Isso nunca acontecerá.