Como todas as crises sociais, a crise que estamos a viver é uma crise política e o seu resultado envolve perdas e ganhos para diferentes grupos ou classes. Contudo, os interesses em confronto são sempre entendidos e comunicados através de conceitos, de teorias, de ideologias. Ou seja, na luta política as ideias contam e contam muito. O projecto de reengenharia da sociedade portuguesa, promovido por um governo alucinado e em sintonia com o ordoliberalismo germânico, bem pode ter chegado a um impasse. Porém, é preocupante que algumas das suas ideias tenham sido acriticamente assimiladas por muitos dos que lideram a contestação. Mesmo que o plano global acabe derrotado, corre-se o sério risco de no futuro alguns elementos daquele projecto virem a ser concretizados, até mesmo por um governo das esquerdas. Vejamos apenas dois exemplos.
No que toca às pensões da função pública, uma das críticas mais fortes ao governo dirige-se à natureza retroactiva da alteração da fórmula de cálculo das pensões já em pagamento. Porém, uma crítica focada na inexistência de um tempo de transição implicitamente assume que o processo de convergência entre os sistemas público e privado é, em princípio, desejável. Porquê esta ideia de uniformizar por baixo instituída já em 2005? Importa lembrar que, para o neoliberalismo, os funcionários públicos eram privilegiados, não estavam sujeitos às regras de um mercado de trabalho que se desejava desregulamentado. Nessa ideologia, o trabalho é apenas uma mercadoria e o seu preço deve formar-se apenas através da interacção entre oferta e procura, tanto quanto possível sem intromissão do Estado. Não podendo, de uma só vez, transformar as políticas sociais em mecanismos de assistência aos pobres, o projecto neoliberal concentrou-se na eliminação da matriz distintiva do trabalho na administração pública, a cultura do interesse público apoiada pela estabilidade da carreira. O assalto das máquinas partidárias aos lugares de chefia tornou-se então ao mesmo tempo pretexto e instrumento desta “modernização” da administração pública. Para tornar o Estado mais pequeno e mais débil face aos interesses económicos e financeiros, converteu-se a relação laboral dos funcionários num contrato individual de trabalho e montou-se a farsa das avaliações. Criaram-se as condições geradoras do trabalho acrítico, da submissão silenciosa às irregularidades, do medo de ser mandado para o quadro de mobilidade. É esta convergência com o sector privado que devia estar a ser contestada pelas esquerdas.
Outro exemplo é a reconfiguração da percepção que os cidadãos têm da natureza e da sustentabilidade do nosso sistema de pensões. O governo justifica os cortes nas pensões com a sua pretensa insustentabilidade pela demografia, quando na realidade a verdadeira ameaça ao sistema reside no aumento do desemprego gerado por uma política económica que, submissa à globalização sem freio, há muito tempo abdicou do objectivo de pleno emprego, um dos pilares do Estado social. Neste contexto, o debate público foi sendo cada vez mais formatado pela lógica neoliberal, individualista – o direito aos meus descontos –, uma lógica que alguns críticos dos cortes nas pensões já assimilaram ao invocar um imaginário direito de propriedade em vez de invocarem a responsabilidade entre gerações que funda uma sociedade decente. Assim se legitima uma futura reconfiguração do sistema segundo uma lógica de poupança-reforma em que a pensão se torna uma variável de ajustamento à conjuntura económica. Entretanto, generosamente empenhadas na defesa do Estado social, as esquerdas quase deixaram cair o conceito de pensão como o direito a um nível de vida próximo daquele que os activos usufruem. Sinais dos tempos.
(O meu artigo no jornal i)
4 comentários:
Aproximar público de privado.
Harmonizar público com privado.
Igualar público com privado.
Etc., etc., etc...
Este linguarejar, de banqueiros como o do BCP e outros patrões como o Saraiva da CIP e certos sabujos comentadores, tem sempre um objectivo principal: sugar os rendimentos do povo a favor dos tubarões de sempre.
Até os cortes nas pensões fazem parte desse sistema de vasos comunicantes em que eles ficam sempre a ganhar: baixos salários, menos descontos para segurança social, necessidade de roubar os já reformados para sustentação do sistema.
E vêm eles com a conversa fiada da solidariedade intergeracional! Estou mesmo a vê-los preocupados com os jovens, a oferecerem 650 euros a médicos e engenheiros, a sugarem o seu trabalho, a continuarem a depauperar a segurança social, a continuarem a roubar os reformados.
Grandes pensões que eles estão interessados em garantir para as novas gerações!
Uma cambada de ladrões, não de bicicletas mas de vidas inteiras de trabalho.
Excelente análise!
De facto trata-se de uma farsa, a famigerada convergência do sector público ao sector privado, o nivelamento por baixo, o querer reduzir o serviço público a uma mera lei da “oferta e da procura”, como se o que estivesse em causa fosse a venda de mais “sabonetes, rolos de papel ou computadores”.
Nota alta, também, para a desmistificação da insustentabilidade do sistema de pensões com base na demografia.
Dos dicionários:
"convergir
con.ver.gir
(baixo-lat convergere) Dirigir-se, tender para um ponto comum"
Portanto se, como dizem as pensões do privado são piores do que as do público, o que devia acontecer era as do público piorarem um bocadinho e as do privado melhorarem um bocadinho.
Mas não, optou-se pelo nivelamento por baixo ignorando o nivelamento por cima.
Das três hipóteses, convergir, nivelar por baixo e nivelar por cima, optou-se pelo nivelamento por baixo mas isso nunca é dito, utiliza-se erradamente o termo "convergir".
Já agora, quando atacaram os vencimentos públicos explicou-se que era natural pois os funcionários públicos não podiam ser despedidos e, portanto, a diminuição dos vencimentos era a contrapartida desta vantagem. Isto é, uma data de mânfios explicaram na Comunicação Social, o meu salário não deve descer pois já houve quem, ao perder o emprego, se sacrifisse por mim...
Agora que vai haver despedimentos na Função pública não seria altura de acabar com os cortes que já houve aos vencimentos da FP?
Estou perfeitamente de acordo com o anónimo e com D.H.
A propósito de sustentabilidade dos regimes de pensões, leiam o livro "Torturem os numeros que eles confessam." que dá uma boa e importante achega sobre a questão.
De todo o modo, penso que o A.J.Seguro devia dizer - preto no branco -, que quando for governo, no dia seguinte revoga todas ou a grande maioria das decisões de terrorismo social tomadas por este governo de ladrões contra o povo português.
Só assim e cumprindo com a sua palavra o PS voltará a ganhar a confiança das pessoas.
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