Economia: baixar impostos e esperar que chova
A grande aposta da Iniciativa Liberal é a redução de impostos. A IL defende um corte substancial dos impostos sobre as famílias e sobre as empresas, garantindo que este trará crescimento económico robusto. No entanto, nos debates eleitorais, Rui Rocha tem difundido informações falsas sobre os impostos pagos em Portugal. Vale a pena olhar com algum detalhe para as várias componentes deste choque fiscal.
Para o IRS, a IL recupera a célebre proposta da flat tax: uma taxa única de 15% para todos os rendimentos, aplicada sobre a parte do rendimento que exceda o Salário Mínimo Nacional. A promessa da IL é que todos pagarão menos, mas a verdade é que a proposta beneficia muito mais quem ganha mais. Isso é, de resto, reconhecido pelas próprias contas do partido: no exemplo apresentado no programa, uma pessoa com um salário de €900 teria um ganho equivalente a menos de 5% do seu rendimento bruto, ao passo que uma pessoa com salário de €2500 ganharia algo equivalente a 11% do seu rendimento e alguém com salário de €4000 teria um ganho equivalente a 15% do seu rendimento (e por aí fora). À medida que o rendimento aumenta, o ganho aumenta de forma exponencial. Se pensarmos nos salários milionários dos CEOs, a poupança seria de várias centenas de milhares de euros. No fundo, os liberais acenam com poucas dezenas de euros para a maioria dos trabalhadores em Portugal para esconder enormes borlas fiscais aos mais ricos.
Há dois argumentos que a IL utiliza para defender a proposta: o de que a taxa única beneficia a atividade económica e o de que reduz a complexidade do sistema fiscal. Mas os resultados da experiência nos poucos países que a aplicaram – como a Rússia (ironicamente) ou alguns do Leste europeu – desmentem ambos: nem existem evidências de que a complexidade tenha diminuído nos poucos países que têm uma taxa única, uma vez que o que torna o imposto complexo são as deduções à coleta que a IL diz que quer manter, como não há sinais de que tenha produzido os resultados económicos prometidos.
O que sabemos é que este tipo de medidas tem como consequência um aumento da desigualdade. Um dos estudos mais influentes do economista Thomas Piketty e dos seus co-autores, que analisaram a evolução da progressividade entre 1960 e 2010 em diversas economias, mostra que, nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada aos 1% mais ricos foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por estes mais aumentou. Por outras palavras, foi nesses países que o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo. Reduzir a progressividade do IRS é minar a sua função redistributiva, o que é especialmente problemático num país que continua a ter níveis de desigualdade acima da média europeia.
A premissa descrita no programa é que “temos um nível de tax wedge [peso dos impostos e contribuições para a Segurança Social num salário bruto] muito elevado, onde o Estado leva em média 42% do que a empresa paga por um trabalhador”. É mais uma meia-verdade liberal: por um lado, o tax wedge em Portugal está abaixo de vários dos países para onde os jovens portugueses emigram (Bélgica, Alemanha, França) e é muito semelhante ao de outros destinos da emigração (Espanha ou Luxemburgo); por outro lado, mais de metade deste valor não são impostos, mas sim contribuições para a Segurança Social, que garantem que o trabalhador tenha direito a proteção social na doença, em caso de desemprego e para que tenha direito a uma pensão de reforma. O Estado não “leva” nada; os trabalhadores descontam para ter direito a proteção e não ficarem sem qualquer rendimento quando ficam doentes, quando são despedidos ou quando se reformam. De resto, a taxa média efetiva de IRS – o que é mesmo pago ao Estado como contrapartida de bens e serviços públicos – é de apenas 13,2%.
A IL também quer reduzir substancialmente a tributação do capital, propondo que se reduza o imposto sobre os seus rendimentos para 14,5%, apesar de Portugal já ser dos países da OCDE que favorece mais o capital e prejudica os salários na tributação. Além disso, propõe a eliminação do adicional ao IMI. O AIMI, conhecido como “imposto Mortágua”, chegou a ser descrito no comentário político nacional como um “ataque à classe média”. No entanto, a verdade é que só é pago por uma pequena fração dos mais ricos. Em 2022, foi pago por 84 mil contribuintes, dos quais 70 mil eram pessoas coletivas (empresas) e apenas 13 mil eram pessoas singulares, segundo os dados da Autoridade Tributária. Trata-se de uma taxa modesta aplicada apenas a imóveis cujo valor patrimonial (que costuma ser bastante inferior ao valor de mercado) exceda os €600.000. A medida, que tributa essencialmente propriedades de luxo, permite arrecadar todos os anos cerca de 150 milhões de euros para o orçamento da Segurança Social. A IL opõe-se porque combate todas as formas de redistribuição de riqueza.
Para as empresas, a IL defende um corte substancial do IRC para 12%. Novamente, as grandes empresas são quem mais ganha com esta proposta: 40% das empresas não paga IRC e, entre as que pagam, as pequenas (que constituem a maioria do tecido económico português) já pagam taxas reduzidas. Metade da receita do IRC é paga por apenas 0,3% das empresas.
O partido vai mais longe e defende a criação de Zonas Económicas Especiais (ZEE) de baixa fiscalidade no interior do país “para atrair empresas”. Portugal já tem um caso semelhante: a Zona Franca da Madeira, que ofereceu às empresas que lá estabelecessem a sua sede fiscal isenções de IRC e outros benefícios. As promessas de criação de emprego na região nunca se materializaram, mas o arquipélago tornou-se um offshore que facilita a evasão fiscal e onde não faltam indícios de fraude e corrupção.
Apesar de a IL frequentemente se apresentar como o partido que domina as questões da economia, as contas sobre o impacto deste choque fiscal não são muito claras: o líder da IL tem dito que a redução de impostos custaria €4 ou €5 mil milhões de receitas ao Estado, embora, no passado, a estimativa do impacto só da flat tax (excluindo tudo o resto) fosse de mais de 3 mil milhões. A estimativa parece bastante otimista e o impacto real poderá ser de mais de €9 mil milhões.
Como a IL também assume o compromisso de manter Orçamentos do Estado com excedentes, é preciso perceber como é que ambas as promessas se compatibilizam. Inicialmente, o partido agarrou-se à promessa de que a redução de impostos levará a níveis de crescimento económico muito acima da média das últimas décadas (chegando aos 4% no final da legislatura). O problema deste argumento é que não passa de uma crença: os estudos empíricos existentes não nos permitem afirmar que baixar impostos traria mais crescimento. No que diz respeito às empresas, uma revisão de literatura recente analisou dezenas de estudos publicados e concluiu que, ao contrário que se costuma pressupor, não há evidência empírica que nos permita afirmar que os cortes de impostos sobre as empresas promovem o crescimento económico. Já sobre os rendimentos individuais, um outro estudo de economistas da LSE e de King’s College analisou todos os cortes de impostos para os mais ricos aprovados em 18 países da OCDE ao longo de 50 anos e concluiu, sem grande surpresa, que também não promovem o crescimento.
Nos debates eleitorais, de forma mais realista, o líder da IL já tem admitido que serão necessários cortes. O programa inclui a privatização da TAP, da Caixa Geral de Depósitos, da RTP e de outras empresas públicas, apesar dos péssimos resultados das privatizações no país, que minaram a capacidade de investimento e inovação do Estado e entregaram negócios lucrativos aos privados. Além disso, Rui Rocha diz que é altura de o Estado fazer “um pequeno esforço” de redução da despesa. No fundo, a ideia é a mesma da Troika: cortar nas “gorduras do Estado”, mesmo que a despesa pública em Portugal se encontre abaixo da média europeia na maioria das categorias.
Habitação: baixar impostos e esperar que chovam casas
A Iniciativa Liberal diz que o problema dos preços da habitação se deve à falta de oferta. O programa que apresenta é simples: reduzir impostos – IMT, imposto de selo, IMI, IVA da construção, taxa sobre rendimentos prediais –, rever regulações e esperar que o mercado “funcione”. O problema deste raciocínio é que ignora as dinâmicas de mercado realmente existentes. O setor imobiliário está cada vez mais virado para o setor de luxo, uma vez que responde ao padrão da procura que se tem intensificado nos últimos anos: fundos imobiliários e não-residentes ricos que não procuram casas para viver, mas sim como ativos para especular e gerar mais-valias. Em Portugal, o preço pago por compradores com domicílio fiscal no estrangeiro (ou seja, por não-residentes no país) é 43% superior ao dos compradores nacionais. O mercado já funciona… em benefício dos grandes proprietários.
Além disso, os liberais não parecem ver qualquer problema na expansão do turismo nos últimos anos. A IL quer reforçar a aposta no setor, apostando em “dar liberdade aos investidores”, “oferecer segurança fiscal” – leia-se, impostos baixos – e “liberalizar a legislação de alojamento, incentivando a diversidade e a inovação em ofertas turísticas”. No programa, quer voltar a diminuir os impostos sobre o alojamento local e reverter os limites ao registo de novos empreendimentos, numa altura em que já existem mais ALs per capita em Lisboa do que em Nova Iorque. A IL quer manter este mercado a funcionar de forma disfuncional, mesmo que ele não funcione para quem cá vive.
Desengane-se quem pensa que a IL quer “menos Estado”. Tanto no mercado de compra como no de arrendamento, o partido quer pôr o Estado a subsidiar os ganhos dos proprietários, aumentando as deduções em IRS do pagamento de rendas e juros do crédito à habitação (sendo que a suposta preocupação com a simplificação fiscal desaparece neste ponto).
Novamente, os liberais colocam as fichas na redução de impostos e no seu suposto potencial de aumentar a construção. No entanto, se não se restringir a procura especulativa e a pressão turística, mesmo que a oferta aumente, continuará a ser absorvida por esta franja e os preços da habitação dificilmente diminuirão para valores comportáveis.
Trabalho: voltar à página da Troika
O programa da IL para o trabalho é um autêntico regresso à agenda da Troika. Sob a capa da “flexisegurança”, aquilo que os liberais defendem é o aprofundamento da precarização do trabalho: facilitação de despedimentos, redução da proteção laboral dos trabalhadores (remetendo aspetos como o período experimental, o tempo de trabalho e “aspetos relativos à extinção dos vínculos” para negociação individual ou coletiva) e desregulação dos horários, nomeadamente através da reintrodução da hipótese de recurso a bancos de horas por negociação individual (podendo o horário normal de trabalho ser aumentado até duas horas por dia, 50 horas por semana e 150 horas por ano).
Além disso, a IL quer “evoluir para um modelo setorial de negociação de salário mínimo em vez de uma imposição estatal igual para todas as atividades”. O partido sempre teve uma relação difícil com o salário mínimo, tendo já defendido que este deveria ser municipal e agora que deve ser setorial, aparentemente para evitar a definição de um patamar mínimo por parte do Estado.
Sobre pensões, a IL propõe uma profunda reforma com a “introdução de um pilar de capitalização obrigatório e incentivo ao pilar de capitalização de contribuições voluntárias”, abrindo a porta a que sejam os privados a gerir estes fundos e a investi-los nos mercados financeiros. É uma proposta antiga de quem pretende privatizar a Segurança Social. Embora não o explicite desta vez, no programa de 2022 defendia também o fim da TSU (contribuição paga pelas empresas por cada trabalhador). Mais uma vez, beneficia-se as empresas, reduz-se a redistribuição de rendimento e ainda se entrega um fundo de milhares de milhões de euros aos privados para investirem na bolsa, omitindo os riscos associados.
Os truques liberais não funcionam
O programa da IL combina um choque fiscal (sem contas credíveis) à aposta nos privados para a maioria dos serviços essenciais, da saúde à educação e aos transportes. Este é o principal truque dos liberais: acenar com pequenas reduções de impostos enquanto se corta nos serviços públicos e se contratualizam mais serviços com os privados. Serve de pouco reduzir impostos se o desinvestimento no Estado Social empurrar as famílias para serviços privados mais caros.
Se a preocupação fosse mesmo com a melhoria dos rendimentos das famílias, algumas medidas aprovadas durante a Geringonça, como os passes sociais (que reduziram drasticamente o preço dos transportes) ou os manuais escolares gratuitos, foram bem mais significativas para famílias de rendimentos médios e baixos do que a redução de impostos prometida pela IL.
A “mudança” proposta pela direita é o regresso a um passado de má memória no país: precarização laboral, redução dos direitos dos trabalhadores e privatização de serviços públicos, agora aliada a uma redução de impostos regressiva que beneficia essencialmente a pequena franja dos que já ganham mais. A direita não está a falar para a maioria das pessoas. Está a falar para os ricos.
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