sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Lado a lado


Nós, os humanos, somos chamados à vida, sem que o tenhamos programado e sem nos pedirem consentimento. Somos chamados por outros, como um fruto de convivência. Somos chamados à vida, mas não para qualquer vida, não para um qualquer modo de viver. Somos chamados para conviver como humanos, isto é, para partilhar um modo de ser criativo, convivial e responsável, tendencialmente feliz. Este ideal, que podemos classificar como de vocação humana nem sempre é possível de realizar e nunca é fácil. Os humanos têm a capacidade de faltar à confiança, de abusar dela e de mentir, degradando a convivência. Fala-se da degradação da convivência humana como ‘condição humana’, como se fosse ou tivesse de ser uma inevitabilidade, uma lei natural. Se a verdadeira amizade é uma raridade, ela existe, é possível, e deve expandir-se. É um objectivo da vocação humana. 

Excerto do texto “Os amigos – os chatos nossos prediletos”, da autoria de José Veiga Torres e que consta da brochura de homenagem a Jaime Ferreira (1944-2022). Esta acompanha, e bem, a sua retrospetiva de pintura e de desenho, que pode ser vista no Espaço 25 do Centro de Trabalho do PCP, em Coimbra, e a que já aqui aludi. 

Na capa está um dos quadros marcantes. Inicialmente foi um cartaz colado na República onde Jaime Ferreira vivia, assinado com o pseudónimo que usava na altura. Depois foi arrancado e colocado em tela. A CUF é hoje o capitalismo da doença, pelo que permanece de desgraçada atualidade. 

Entretanto, aos 93 anos, Veiga Torres continua em grande forma, como se pode ver pelo excerto sábio. Historiador, como Jaime Ferreira, este Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) é uma referência intelectual e moral. Padre em Angola, tomou posição contra a guerra colonial e partiu para o exílio na Bélgica e em França, onde se doutoraria, abandonando as funções eclesiásticas em 1970. Regressado a Portugal a seguir ao 25 de abril, torna-se professor na FEUC, desempenhando um papel crucial no desenvolvimento desta nova instituição. 

Destaco dois livros seus que me marcaram: a Introdução à História Económica e Social da Europa, um notável trabalho de síntese, revelando o seu enciclopédico conhecimento, paralelo à sua simplicidade, um feito; Ser Cristão?, um livro com responsabilidade na minha reaproximação ao cristianismo. Publicado aos 83 anos, é um testemunho de um percurso de pensamento vivido.

Vi estes dois amigos juntos, Jaime Ferreira e Veiga Torres, pela última vez num desfile do 25 de abril, em Coimbra. Já fragilizado, Ferreira ia bem junto a Veiga Torres, descendo a Sá da Bandeira. Diz-se que temos de nos colocar nos ombros de gigantes para fazer descobertas. Creio que também se pode ir ao lado deles. Foi o que fiz nesse dia.

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