quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Diário do Orçamento I - Se fosse o Zandinga, era mais científico...

Um dos aspectos mais enigmáticos do Orçamento do Estado que foi apresentado pelo Governo é o seu cenário macroeconómico, que parece desafiar a imaginação dos mais cépticos. O Governo avança com números ousados, para dizer o mínimo, do ponto de vista do crescimento. Sobretudo quando os comparamos com os de outras variáveis.

O Governo prevê que o consumo privado passe de um crescimento de 2,0% em 2010 para uma contração de 0,5% em 2011. O consumo público, de 1,9 para -8,8%. O Investimento Privado, que contraiu -2,0 vai continuar a diminuir, mas de forma mais acelerada (-2,7%) e agora acompanhado de um corte de 20% no Investimento Público. O cenário de crescimento das exportações, sendo bem mais optimista que o do Banco de Portugal (7,3 contra 4,1%), prevê mesmo assim uma desaceleração em relação a 2010.

Mesmo assim, o Governo prevê que a economia cresça em 2011. Crescimento marginal, mas crescimento. E que o desemprego apenas cresça apenas 0,2%. O grande argumento parece ser o de que no ano passado as previsões de crescimento falharam (portanto, agora é à confiança) e que as exportações irão carregar a economia.

Mas será razoável esta expectativa? O Governo tem feito muitas referências à evolução económica da Alemanha e o seu efeito de arrastamento. Mas a Alemanha representa 13% das nossas exportações. A Espanha que representa 27%, ou seja, mais do dobro, acabou de aprovar um plano de austeridade que visa reduzir o défice de 11 para 3% em 3 anos, avançou já com corte de salários e facilitou os despedimentos. Numa Europa marcada por Planos de Austeridade cada vez mais severos e que incidem fortemente no consumo privado de vários dos nossos parceiros comerciais privilegiados, será razoável esperar que a Alemanha compre a toda a gente?

Neste contexto, é de registar que o Governo fala muito dos erros de previsão sobre o crescimento (acima das previsões em 2010) mas não se alonga tanto sobre os erros de previsão sobre o desemprego (revisto em alta em 0,8% para 2010, pelo próprio Governo em relação às suas estimativas).

Sendo compreensível que o Governo se centre nas boas novidades, começa a ser irritante a sua tendência para tomar as pessoas por parvas. Mesmo que o Governo acredite que vai ter 0,2% de crescimento (o que seria preocupante), pensar que, depois de um ano com 1,3% de crescimento e mais 1,1% de desemprego, vai ter no ano seguinte 0,2% de crescimento mas apenas mais 0,2% de desemprego, é abusar da credulidade mesmo dos mais ingénuos.

A toda esta tragédia, o PSD resolveu acrescentar um pequeno apontamento de farsa. Pedro Passos Coelho mostrou-se preocupado com os efeitos recessivos destas medidas e as suas consequências no desemprego (Deve ter ouvido na televisão e como discurso da despesa já não cola...). E propôs uma solução para o carácter recessivo deste orçamento. Congelar todas as obras públicas! É da sensatez e sentido de responsabilidade destas pessoas que depende o futuro do país. Tenham medo.

8 comentários:

Miguel Fabiana disse...

A direita diz: "Sintam culpa." para poder baixar salários, aumentar os impostos sobre o trabalho e manter a banca e os especuladores longe dos problemas (leia-se impostos).

Os Outros dizem: "Tenham medo."

... por isso é que eu quando tenho que escolher, escolho algo que não esteja relacionado com "culpa" ou com "medo": prefiro a "esperança"; mas também sei que a política, em tempos difíceis não pode cair em sentimentos politicamente incorrectos!

Tenho "esperança" que esta discussão deixe de ser tão medieval (heliocentrismo/socialismo versus geocentrismo/capitalismo), porque 300 anos depois de J.Smith e 200 anos depois de K.Marx a coisa já devia ter outros conteúdos que não fossem apenas sucedâneos e derivados das ideias destes dois "magos" do pensamento social.

...e que tal algo completamente novo, original que vá além da "Taprobana" e "por mares nunca dantes navegados"?!?

José Guilherme Gusmão disse...

E sobre o assunto, alguma coisa? Ou só leu a última frase?

Miguel Fabiana disse...

Quem cala consente, meu caro (agora tratamo-nos por "você"?!?)!!!

Excelente artigo, excepção feita à última frase (que também li; não só, mas também com muita atenção!

Abraço,
Miguel

José Guilherme Gusmão disse...

Ok Miguel,

O "Tenham medo" é irónico. Visa mostrar a qualidade das criaturas que chegam ou podem chegar a primeiros-ministros neste país... Eu não acho mesmo que as pessoas devam ter medo. Pelo contrário, acho que têm de perdê-lo...

Miguel Fabiana disse...

Zé Gusmão,

Por isso é que eu não me sento em "certas e determinadas" cadeiras: para não ter que pesar todas as minhas palavras.
Mas já que aí estás "sentado", faz isso mesmo ie, não as peses mas também não assustes os mais incautos com frases dessas, mesmo que sejam irónicas e sem intenção de assustar ninguém.

...é que "deste lado" só se ouve "medo", "culpa" e ainda ninguém se lembrou de mudar a "cassete" da desgraça!

Em 2008 perderam-se oportunidades ÚNICAS/SINGULARES de mudar TUDO, mas em vez de agirmos e actuarmos, demos preferência ao aprofundamento do "debate" (deslumbramento, por se poder, pela primeira vez, ser ouvido sem chacota?) e... eles voltaram à carga e ... desta vez.... com uma força nunca antes vista!
Não estou a falar de questões pragmáticas... estou a falar de questões paradigmáticas!

O debate é civilizado, mas eles não debatem e ... de civilidade em civilidade, vamos cedendo o espaço, o tempo e os recursos... a quem não os partilha nem muito menos os cede!

De qualquer das formas, fica o desafio (espera-se por outro colapso sistémico??): e que tal algo completamente novo, original e que vá além da "Taprobana" e "por mares nunca dantes navegados"?!?

Manuel Rocha disse...

:) Então quer dizer que há "futuros cientificos" ? Ou o futuro antecipado é sempre uma ficção de entre várias possiveis ? Nesta matéria de cenários e de projecções já não ia sendo tempo de todos cultivarmos alguma humildade relativamente à incapacidade de prevermos o futuro com o detalhe decimal que exigimos aos outros ?

Carlos Albuquerque disse...

"Congelar todas as obras públicas! É da sensatez e sentido de responsabilidade destas pessoas que depende o futuro do país. Tenham medo."

Tenho medo é que se aumentem os impostos ou retirem apoios sociais a quem deles precisa para contratar obras desnecessárias com bancos e grandes construtoras, que depois deixam umas migalhas nas mãos de meia dúzia de trabalhadores. Além de que essas obras têm manutenções desproporcionadas à utilidade que têm.

Esse modelo está a ser aplicado há muito tempo em Portugal e só tem aumentado a desigualdade e deixou o país completamente dependente de empréstimos estrangeiros seja para o que for.

Miguel Fabiana disse...

Gostei muito de te ver e ouvir ontem!

Aquela da "montanha pariu um ROC" foi de Mestre!!!

Um Abraço,
Miguel