sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Lata imobiliária


O presidente da APPII, que andou em digressão pelo Brasil e pelos Estados Unidos a promover a compra de casas em Portugal, é o mesmo presidente da APPII que se queixou de a oposição, com exceção da IL, ter chumbado o pedido de Autorização Legislativa da AD para descer o IVA da construção para 6%. E que teve, ainda, o topete de pedir «coragem e sentido de Estado aos políticos nacionais para resolverem o problema da habitação», alegando que, por causa do referido chumbo, «os portugueses vão continuar sem ter uma casa que possam pagar».

Foi em São Paulo que, em outubro, Hugo Santos Ferreira reivindicou o regresso dos regimes de Residentes Não Habituais e Vistos Gold, alegando conhecer brasileiros interessados em viver em Portugal, pessoas «com altíssimo poder aquisitivo, (...) bilionários, para quem o tema segurança e atratividade fiscal é essencial». Isto antes de rumar aos EUA, para reunir com investidores que «querem conhecer as formas de ir para Portugal». Há o risco, em seu entender, de os milionários estrangeiros optarem por outros destinos, sendo necessário «colocar Portugal no mapa».

Como é improvável que Hugo Santos Ferreira, representante do setor imobiliário, desconheça o efeito de arrastamento dos preços das casas gerado pela procura externa, cujo poder aquisitivo supera, em média, o das famílias portuguesas, só por sonsise fingirá não perceber que este é um dos principais fatores que tem contribuído para a subida incessante dos preços, que faz com que os portugueses continuem «sem ter uma casa que possam pagar».

Não é difícil compreender que o imobiliário vive na sua própria bolha e trata da sua vidinha, defendendo a sua atividade e os seus negócios. Mas poupem-nos, por favor, a declarações piedosas que apenas visam ofuscar os interesses em jogo, criando uma ilusão de preocupação com a sociedade em geral e o acesso das famílias a uma casa para viver, em particular. Sobretudo quando, ao mesmo tempo, o setor contribui ativa e significativamente para que a capacidade de aceder à habitação seja uma miragem.

Capitalismo de guerra neoliberal


As coisas estão de tal forma más no capitalismo do Atlântico Norte que um cartaz soviético encerra uma mensagem poderosa e de grande atualidade.

Mark Rutte, o novo secretário-geral da OTAN, tão liberal quanto austeritário, sugeriu esta semana que os Estados gastem menos em funções sociais e mais em funções guerreiras. No tempo da Guerra Fria, tal escolha era mais difícil. Havia medo do socialismo. 

Nada que surpreenda nesta tradição de economia política inscrita numa UE, criada em Maastricht na década de 1990, sempre vassala dos EUA: capitalismo assumidamente de guerra ao Estado social, afinal de contas. Já não havia medo do socialismo.

Entretanto, a UE continua a planear esverdear o investimento no ambientalmente danoso complexo militar-industrial, a sua primeira prioridade, classificando tal desperdício de “sustentável”. É também para esta ofuscação que servem os verdes com bombas ou o social-liberalismo travestido de social-democracia, por exemplo. O anterior secretário-geral da OTAN vinha desta área política, também dita trabalhista na Noruega.

Sim, há uma esquerda otanizada que vai aceitar mais este pretexto para erodir o Estado social, a mesma que aceitou a austeridade em nome da integração europeia que destrói e aliena a sua base social de apoio.

E ainda ontem ficámos a saber pelo Financial Times que os países da UE estão a planear criar “um fundo de defesa” de 500 mil milhões de euros, uma engenharia financeira para dar dinheiro a ganhar aos grandes bancos e à indústria da morte, o capital financeiro na sua forma clássica.

Claramente, a luta anti-imperialista pela paz é hoje uma parte decisiva da luta para superar o capitalismo de guerra neoliberal prenhe de monstros neofascistas.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Debater, debater, debater sempre

 

Genocídio e impunidade, complacência e cumplicidade


Num novo relatório de referência hoje publicado, a Amnistia Internacional encontrou fundamentos suficientes para concluir que «Israel cometeu e continua a cometer genocídio contra os palestinianos na Faixa de Gaza ocupada», desencadeando «o inferno e a destruição contra os palestinianos em Gaza de forma descarada, contínua e com total impunidade».

Para Agnès Callamard, secretária-geral da AI, o relatório «demonstra que Israel levou a cabo atos proibidos pela Convenção sobre o Genocídio, com a intenção específica de destruir os palestinianos em Gaza. Estes atos incluem assassinatos, causar lesões corporais ou mentais graves e infligir deliberadamente aos palestinianos em Gaza condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física. Mês após mês, Israel tem tratado os palestinianos em Gaza como um grupo sub-humano indigno dos direitos humanos e da dignidade, demonstrando a sua intenção de os destruir fisicamente». E acrescenta: «as nossas conclusões condenatórias devem servir de alerta para a comunidade internacional: isto é genocídio. Tem de acabar já».

O alerta deixado por esta organização de defesa dos Direitos Humanos é por isso óbvio e claro: «os Estados que, neste momento, continuam a transferir armas para Israel devem saber que estão a violar a sua obrigação de prevenir o genocídio e correm o risco de se tornarem cúmplices do genocídio. Todos os Estados com influência sobre Israel, em especial os principais fornecedores de armas, como os EUA e a Alemanha, mas também mais Estados-Membros da UE, o Reino Unido e outros, devem agir agora para pôr termo imediato às atrocidades cometidas por Israel contra os palestinianos em Gaza».

Hoje, em Coimbra


No âmbito das Conversas Almedina, organizadas por Carlos Fiolhais, apresentação da obra «Nos 50 anos do 25 de abril - Memórias e reflexões sobre as mudanças da sociedade portuguesa», com a presença de Manuela Martins, Eloy Rodrigues e José Reis. A partir das 18h00, na livraria Almedina Estádio.

Baixar impostos à espera que chova... uma gota?

Um estudo publicado pelo Banco de Portugal esta semana inclui uma análise aos impactos da descida do IRC em 1 ponto percentual, aprovada no contexto do Orçamento do Estado para 2025. No melhor cenário, se as empresas reinvestirem todo o lucro adicional, a redução do IRC aprovada no OE 2025 leva a um crescimento extra de... 0,1% no longo prazo. Se, em vez disso, as empresas optarem por distribuir os ganhos adicionais pelos acionistas, o impacto para a atividade económica torna-se mesmo negativo.

As conclusões do estudo dão força à ideia de que a relação entre a fiscalidade e o crescimento económico é tudo menos linear. Uma revisão de literatura recente, que avaliou dezenas de estudos empíricos publicados, concluiu que os resultados são inconclusivos: não é possível afirmar, com base nos estudos disponíveis, que baixar impostos às empresas estimula o crescimento.

Isso implica colocar a questão: quem beneficia verdadeiramente desta medida? Em Portugal, é preciso ter em conta que os ganhos se concentram nas 0,4% maiores empresas do país, que pagam quase metade da receita atual.


Além da dimensão das empresas beneficiadas, se olharmos para o IRC liquidado por setor, o que vemos é que a maior parte da receita é proveniente de cinco setores: o setor financeiro, o imobiliário, a construção, o alojamento e restauração e o comércio.


Estes dados dizem-nos duas coisas:

1. Uma redução do IRC beneficia de forma desproporcional as grandes empresas;

2. Em termos setoriais, a maior parte dos ganhos concentra-se em setores com pouco potencial para a transformação estrutural da economia portuguesa.

Se já havia poucos motivos para crer que a redução do IRC era a bala de prata para acelerar o crescimento da economia portuguesa, as conclusões do estudo do Banco de Portugal reforçam essa ideia. O que se sabe é que as principais beneficiadas desta medida serão as grandes empresas, sobretudo em setores que não podem queixar-se de falta de lucros nos últimos anos.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Arrastamento

Quem resume a atual crise de habitação a uma mera falta de casas, como sucede no caso da direita política ou entre agentes do setor imobiliário e da construção, tende a negligenciar - ou mesmo negar - o impacto das novas procuras no aumento dos preços. Isto é, não só desvaloriza a transferência de casas para o setor do turismo (sobretudo através do Alojamento Local), como a procura imobiliária por parte de estrangeiros e nacionais, como forma de valorização de rendimentos e poupanças.

Para sustentar esta desvalorização do impacto das novas procuras na formação de preços - que o Banco de Portugal, num estudo recente, chegou a designar por «choque de procuras» - é recorrente o argumento de que estas não são relevantes. No caso da aquisição de imóveis por estrangeiros, por exemplo, assinala-se que o volume de transações é escasso, oscilando apenas, nos últimos anos, entre 5% e 7% do total (mesmo que, no caso do Algarve, essa percentagem tenha atingido os 27% em junho de 2024).

O primeiro equívoco a assinalar diz respeito ao facto de as novas procuras não funcionarem de forma isolada, mas sim em conjunto e segundo uma lógica de incidência territorial cumulativa. Por outro lado, importa considerar que em muitos casos essas novas procuras - como sucede na compra de imóveis por estrangeiros - têm uma maior capacidade aquisitiva, desencadeando naturalmente, por arrastamento, a subida dos preços.


De facto, quando se analisa o valor mediano das transações segundo o domicílio fiscal do comprador (como ilustra o gráfico aqui em cima), constata-se que a diferença por m2, à escala nacional, quase atinge os 700€. Ou seja, a mediana da transação é cerca de 700€ mais elevada no caso de compradores estrangeiros, face ao valor pago por compradores nacionais. Sendo que, não menos importante, esse diferencial tende a ser mais acentuado nas regiões onde os preços das habitações são mais elevados, com destaque para os casos de Lisboa (quase 1.800€ de diferença) e da Grande Lisboa (com a diferença a rondar os 2.000€), mas também no caso do Porto e do Algarve.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

OE 2025: que vida para além das contas certas?

 

Apesar do Orçamento do Estado para 2025 ter acabado por ser viabilizado pelos dois principais partidos (PSD e PS), isso não impediu os protagonistas de sublinhar o que os separa. Uma das frases com que o primeiro-ministro marcou o debate orçamental foi a de que “o equilíbrio das contas não é o fim da nossa política”. Luís Montenegro afirmou que “há vida para além do excedente orçamental”, numa tentativa clara de vincar a diferença face à estratégia dos governos de António Costa.

Este é um assunto que já vem de trás. Há um ano, na discussão do OE 2024, enquanto líder do PSD na oposição, Montenegro disse que o orçamento era “só aparência, […] parece que faz, mas não faz, apresenta objetivos, ideias, mas depois não concretiza nada” e limita-se a “desinvestir, desinvestir, desinvestir”. Montenegro criticou também o governo anterior por ir “à Europa exigir uma coisa que não faz em Portugal” e recorrer ao “maior instrumento de financiamento que tivemos desde que entrámos na União Europeia, o PRR, para suprir as lacunas de investimento público dos últimos oito anos de governos socialistas”.

Há poucas dúvidas de que o investimento público foi a principal vítima da estratégia das contas certas nos últimos anos. No entanto, assim que chegou ao governo, o PSD parece ter abandonado esta prioridade. Na análise que a Comissão publicou com a comparação dos planos de médio-prazo apresentados pelos vários países, Portugal surge na cauda da Europa: é o país que se compromete a financiar o menor nível de investimento público em toda a União Europeia.


A projeção do investimento público para os próximos anos é ainda mais problemática quando olhamos para o ponto de partida. Ao longo da última década, o país registou os níveis mais baixos de investimento público da sua história recente. O investimento público “líquido”, que representa o saldo entre a formação bruta de capital fixo (isto é, o valor investido em obras públicas, equipamentos, I&D, software, etc.) e o consumo de capital fixo (que mede o que se vai perdendo com o desgaste dessas obras públicas e equipamentos), tornou-se negativo neste período. Por outras palavras, o que o Estado investe nem chega para compensar o desgaste das infraestruturas.


Se olharmos para a última década, Portugal foi o segundo país da União Europeia em que o Estado menos investiu em percentagem do PIB (sendo que o único país que regista uma percentagem de investimento público inferior – a Irlanda – tem o PIB manifestamente inflacionado, o que torna a leitura deste indicador menos clara).


Os níveis de investimento público nunca recuperaram verdadeiramente desde o programa de ajustamento da Troika, apesar das sucessivas promessas de investimento que nunca saíram da gaveta. Isso traduziu-se na deterioração da qualidade dos serviços públicos, que têm perdido credibilidade como consequência das opções orçamentais. E os sinais que o atual governo tem dado não são menos preocupantes.

No Serviço Nacional de Saúde, a opção passa por promover ainda mais o recurso aos privados e canalizar o dinheiro público para este negócio com medidas como os vouchers-cirurgia. Em relação aos transportes, depois de décadas a encerrar linhas ferroviárias, o governo anunciou a intenção de… reduzir significativamente o investimento previsto da CP para a alta velocidade, com a justificação de que “é saudável para o mercado [o Estado] não investir tanto em comboios”. Na habitação, temos um dos mais reduzidos parques habitacionais públicos da União Europeia e há falhas significativas na manutenção da pouca habitação social existente, mas a grande bandeira do governo tem sido a descida de impostos.

A verdade é que é difícil perceber que vida é que existe além das contas certas. Como explicou o ministro das Finanças, o “compromisso” do governo é o de “continuar a manter as contas públicas equilibradas e continuar a reduzir a dívida pública”, para que “ninguém duvide do nosso compromisso com o rigor orçamental”. Só que não há uma contradição entre a promoção do investimento público e a sustentabilidade das contas do Estado. A maioria dos estudos sobre o efeito multiplicador – isto é, o impacto que a política orçamental tem no funcionamento da economia – conclui que este é superior a 1: por cada aumento de 1 euro na despesa (e, sobretudo, no investimento) do setor público, o PIB cresce mais do que 1 euro. Ou seja, os benefícios que o investimento gera para a economia não só compensam, como tendem a superar os seus custos iniciais.

O investimento do Estado não se limita a melhorar a qualidade dos serviços públicos. É também um instrumento que permite reorganizar o território e promover mudanças estruturais no país, para lá da lógica do mercado. Por exemplo: um plano abrangente de investimento na ferrovia não serve apenas para melhorar a mobilidade e a qualidade de vida de quem se desloca diariamente para o trabalho, mas também permite promover um desenvolvimento mais equilibrado em termos territoriais, reduzindo a pressão sobre os preços da habitação no centro das grandes cidades, que tem afastado não apenas as pessoas, mas também muitas atividades económicas, enquanto se expandem o turismo e outros serviços de baixo valor acrescentado. Além disso, é uma forma de reduzir as emissões de carbono através da substituição dos automóveis privados, o que diminui a dependência energética do país face ao exterior.

Adiar os investimentos necessários é uma escolha que tem saído cara para a maioria das pessoas. O desinvestimento traduz-se não apenas na perda de qualidade dos serviços públicos, mas também na ausência de uma estratégia de desenvolvimento económico e territorial que não responda apenas aos incentivos do mercado.

O bom pobre de Isabel Jonet


Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida. 

António Lobo Antunes, Os pobrezinhos

No final da história, a atração pela gravura revolucionária, pelo ato de “proteção da nação”, é mais do que compreensível. Foi Constança Cunha e Sá, felizmente regressada, que, a propósito de Isabel Jonet, lembrou Lobo Antunes. 

O capitalismo televisivo sem freios e contrapesos há muito que decidiu prescindir do comentário desta excelente jornalista política. Não encaixa no coro com sotaque de classe dos Bernardos Ferrões. O pessoal é político: o meu filho nasceu em 2011, luz em tempos sombrios; quando a via na televisão, eu dizia, “força Constança, dá-lhes na pança” e ele ria-se muito. 

Entretanto, Isabel Jonet garantiu: “Não ganho um tostão há 25 anos. Sou voluntária. É quase uma missão de vida”. Carina Castro respondeu-lhe bem: “O luxo de ser voluntária como vida e não como entrega solidária, mas subsidiária da vida que se gasta a ganhar a vida. Quanta fortuna será preciso para poder ‘não ganhar um tostão há 25 anos’?”

Aproveito também para relembrar Luísa Semedo, quando denunciou uma das tiradas imorais de Isabel Jonet –“em Portugal há quase um incentivo às pessoas quererem mais apoios sociais e menos responsabilidade na própria vida” –, aproveitando para resumir com fina ironia todo este programa de sociedade liberal até dizer chega

“Dá-nos aqui algumas pistas úteis para caracterizar o que deve ser um bom pobre de família. Deve ser uma pessoa responsável, evidentemente sem dinheiro, mas que poupa naquilo que não tem e sobretudo não o gasta de uma só vez. E para isso precisa de ser formada ao que Isabel Jonet chama de racionalidade económica ou, em linguagem de pobre de família, de magia económica.”

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Javier


Na The Economist, uma coisa é a secção do obituário, que encerra a revista, outra coisa são os editoriais: na mesma semana em que presta um comovente tributo a Celeste Caeiro, esta revista liberal apoia Milei, em linha com o apoio que deu a Pinochet a seu tempo, por exemplo. 

Reconhece-se que a taxa de pobreza aumentou de 40% para 54% durante este ano de presidência do argentino, mas os pobres são o preço a pagar pelo fabrico de ricos no liberalismo realmente existente. Na periferia, são também o preço a pagar pela pilhagem internacional dos recursos nacionais ou não fosse esta revista uma das mais clássicas encarnações, desde a sua fundação, do imperialismo de comércio livre.

Os liberais até dizer chega, sem surpresa, identificam-se com Milei. 

domingo, 1 de dezembro de 2024

Celeste


Celeste Caeiro na The Economist, “uma trabalhadora cujo gesto nomeou uma revolução”.
 

Primeiro


Ao contrário do que aconteceu num dia ao calhas de novembro, hoje não há sessão solene: as direitas e certas esquerdas não valorizam a independência nacional ou não a tivessem hipotecado materialmente a nossa soberania à UE realmente existente.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Fiabilidade dos números ou manobra de evasão?

Volksvargas, A vida e a morte de uma aldrabice em três actos

1. Em mais uma surpreendente notícia veiculada através do Expresso, o ministro da Educação Fernando Alexandre vem agora dizer que, por falta de fiabilidade dos dados, afinal não é possível aferir o objetivo a que se propôs em junho: no final do 1º período, a «redução em pelo menos 90% do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo em relação a 2023/24» (Plano +Aulas +Sucesso, página 12). Isto é, uma redução relativamente aos alunos que, em dezembro do ano passado, não tinham aulas a pelo menos uma disciplina.

2. Sejamos claros: o problema começa aqui, o problema está aqui e sempre esteve aqui. Na forma como o governo fixou a fórmula de cálculo do seu objetivo, que num erro grosseiro e inaceitável manipulação de dados compara o que não é comparável. Fernando Alexandre não pode, seriamente, ponderar o universo de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo, com o total de alunos sem aulas a uma disciplina num dado momento (e que inclui, portanto, os alunos que começaram o ano letivo com todos os professores). O erro da fórmula é, nestes termos, alheio à fiabilidade dos dados. Mesmo com dados fiáveis a fórmula continua a ser errada.

3. Mas o argumento tem um outro problema, não menos grave. Se é legítimo duvidar da capacidade dos serviços para apurar, passo a passo, o número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo, já não colhe a dúvida relativamente à capacidade de saber, a cada momento, quantos alunos estão sem aulas a uma ou mais disciplinas. Duvidar disso seria duvidar dos horários não preenchidos que as escolas comunicam regularmente ao ministério da Educação, e que permitem estimar o número de alunos sem aulas, independentemente de estes se encontrarem, ou não, nessa situação desde o início do ano letivo.

4. Aqui entramos numa dimensão ainda mais problemática. Foi o próprio ministério da Educação que referiu, ao Expresso da semana passada, a existência de um total de 41 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina. Estando ou não nessa situação desde o início do ano letivo, a verdade é que é este o universo que importa considerar para aferir a melhoria da situação face a 2023. E o que nos dizem as estimativas, como a da Fenprof (cerca de 31 mil alunos no final de novembro do ano passado), é que o universo global de alunos sem aulas a todas as disciplinas se agravou.

5. Face ao total de alunos que chegou ao final do 1º período do ano passado sem aulas a pelo menos uma disciplina (os tais cerca de 21 mil), isto significa que o ministério da Educação tem agora menos de um mês para se aproximar desse valor, objetivo que se afigura pouco exequível. Por isso - e não pela questão relativa ao grau de fiabilidade dos números - é legítimo supor que o ministro Fernando Alexandre, ao desqualificar os dados (e o trabalho da DGEstE), está na verdade apenas a tentar não ser confrontado pela realidade, que o obrigaria a reconhecer o fracasso das medidas adotadas. Se assim não é, espera-se que pelo menos compare a situação do total de alunos sem aulas no final de dezembro deste ano com a situação no ano anterior. Para que não suceda, a uma aldrabice descarada, uma desculpa esfarrapada.

Poucochinho


António Costa foi, é e será sempre tão poucochinho. É um desperdício da experiência. O seu principal problema é o problema da elite do poder e foi diagnosticado por um socialista com outra estatura político-ideológica, histórico-filosófica, José Medeiros Ferreira: foi, é e será bom aluno de maus mestres, cada dia piores. Bem que pode alardear princípios, já que estes são negados pela vassalagem permanente ao imperialismo, em linha com Lagarde e von der Leyen, de resto. É a UE realmente existente, afinal de contas.

Liberdade de escolha? Para quem?


Não se iludam, a alegada liberdade de escolha, na saúde e na educação, financiada com recursos públicos, acaba sempre por ser sempre a liberdade de escolha dos privados que prestam o serviço, e não dos utentes e dos alunos, como a direita tenta fazer crer. A recusa desta lógica, centrada nos lucros e não nas pessoas, é aquilo a que recorrentemente chamam de «preconceito ideológico». Está bem, abelha.

Solidariedade com a Palestina


Respetivamente, na embaixada israelita, na praça da Palestina e na Estação Nova.

Divisão


Na divisão internacional do trabalho jornalístico financeiro, não cabe ao Financial Times estes tão flagrantes preparos ideológicos antidemocráticos. Isso é para os ecos periféricos. Na realidade, têm de saber que, tal como na Grécia, só há crise da dívida que não é soberana se o tão supranacional quanto pós-democrático BCE quiser. O banco central controla as taxas de juro dos títulos denominados na moeda que emite.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Cada dia piores

Senhoras e senhores, meninas e meninos, a elite europeísta em toda a sua decadência. 

Lê-se a entrevista ao Financial Times e acredita-se: afinal de contas, estamos a falar de uma antiga advogada de negócios transatlântica, que foi colocada no FMI, depois de ter passado dubiamente pelas finanças de um governo francês de direita. É responsável, enquanto Presidente do BCE, por um ganho extraordinário oferecido à banca, à boleia de perversas subidas das taxas de juro.

Lagarde defende agora que a UE deve ir aos EUA, de “livro de cheques na mão”, comprar ainda mais armas e gás caro, tudo em nome da globalização transatlântica, tudo em nome de uma cada vez mais acentuada submissão ao sistema imperialista comandado pelos EUA. 

Tal preparo está no ADN da UE, tal como o austeritarismo e o seu euro, meio de fazer convergir os Estados sociais nacionais europeus com o plutocrático modelo norte-americano, à custa do investimento e da prosperidade partilhada. 

Trata-se de um processo já com décadas, autêntico jogo de soma negativa, mas em que uma minoria social ganha e muito. A social-democracia foi destruída nesse processo de integração assimétrica, note-se, tendo a sombra que resta ainda agora apoiado esmagadoramente uma Comissão Europeia onde a extrema-direita está bem presente.
 
Por cá, a elite nacional é “boa aluna de maus mestres”, cada dia piores, cada dia mais desajustados à realidade da economia política internacional.

E ainda isto, como se explica?

Vê-se e não se acredita. Na página 7 da Nota Explicativa que o ministério da Saúde enviou ao Parlamento, no âmbito da discussão do OE para 2025, consta uma tabela sobre a evolução das consultas nos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Ao contrário do que se possa pensar, não se trata de um lapso, dado que uma segunda tabela, na página seguinte, é contruída da mesma forma.

Como a hipótese da iliteracia se torna pouco plausível (e inadmissível), tudo indica que a tutela pretendeu, à força toda, poder dizer que o número de consultas aumentou com a entrada em funções do novo governo. Para tal, procedeu à comparação do valor acumulado entre janeiro e abril (4 meses) com o valor acumulado (também desde janeiro) até setembro. Sugerindo assim, ao calcular a variação entre os dois valores, que houve um aumento de consultas entre o primeiro quadrimestre e o segundo (sendo que este último «quadrimestre» tem, segundo o governo, 5 meses).


Não surpreende assim que, nos termos da tabela, o aumento de consultas nos CSP, com a AD no governo, tenha sido estonteante. Segundo o ministério da Saúde, esse aumento, entre abril e setembro, mais que duplicou, atingindo um valor a rondar os 116%. Aliás, na verdade, quando feitas as contas desta forma - com ambos os valores acumulados desde janeiro - bastaria ter sido realizada apenas uma consulta entre maio e setembro para que a variação fosse positiva. Espantoso, não é?

Ora, o que se constata quando se corrigem os cálculos - comparando o número de consultas realizadas entre janeiro e abril com o número de consultas realizadas de maio a agosto (e não setembro, para que a comparação se faça por iguais períodos de quatro meses), lá se vai o aumento esfusiante das consultas realizadas desde a entrada em funções do novo governo. Pelo contrário, o que emerge é uma redução, em cerca de 6%, do total de consultas entre maio e agosto, face ao total de consultas entre janeiro e abril.


Este não é o primeiro exercício de contabilidade criativa do governo. Em junho, o atual ministério da Educação inflacionou o número de alunos que começou o ano letivo anterior sem aulas a pelo menos uma disciplina, de modo a criar a ilusão de que o atual ano letivo teria já começado com um valor inferior. E como se não bastasse, para ficcionar ter atingido a meta a que se propôs (diminuição em 90% dos alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano), ponderou os alunos nessa situação com o total de alunos sem aulas em dezembro do ano passado. Isto é, comparando indevidamente dois universos distintos.

O padrão começa, portanto, a tornar-se cada vez mais claro. Em vez de responder efetivamente aos problemas, que são estruturais e complexos, o governo prefere inventar e manipular números, para criar junto da opinião pública a falsa ilusão de que os mesmos estão a ser ultrapassados, por obra e graça do executivo. Até que as ilusões se desfaçam.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Nos ombros de gigantes


A correta relação entre investimento e poupança escapa à sabedoria convencional, mas não escapou à melhor tradição keynesiana. Há tantas relações que escapam a tantos economistas convencionais sem memória, vivendo num eterno e tão ilusório presente...

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Os números que Marques Mendes não mostrou

Saindo em socorro do governo, na habitual missa de domingo sem contraditório, Luís Marques Mendes exibiu um gráfico (ver aqui, ao terceiro minuto), em que cautelosamente apenas apresentou a evolução do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo. Isto é, desvalorizando - tal como o governo - os alunos que, tendo começado o ano com todos os professores, se encontram sem aulas a pelo menos uma disciplina (e que representam, neste momento, cerca de 94% do total de alunos sem aulas, como se assinalou aqui).

Optando por construir o gráfico apenas com a evolução do universo de alunos sem aulas desde o início do ano letivo, Marques Mendes não se coibiu, porém, de incluir na infografia a informação relativa ao total de alunos sem aulas em dezembro de 2023 (cerca de 21 mil), a partir da qual, indevidamente, o governo chegou à dita redução, em 90%, do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo. Ou seja, à semelhança do governo, o comentador da SIC não resistiu à tentação, conveniente, de misturar «alhos com bugalhos».


Comparando o que é comparável, isto é, o total de alunos sem aulas, por um lado, e o número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo, por outro, Marques Mendes teria chegado a conclusões distintas daquelas a que chegou. E poderia assim reconhecer que o problema da falta de professores se agravou em termos homólogos. De facto, como mostram os gráficos aqui em cima, o total de alunos sem aulas é hoje de cerca de 41 mil (21 mil em dezembro de 2023), sendo idêntico o número de alunos sem aulas a uma disciplina desde o início do ano (6% do total) e que, por isso mesmo, não permite neste âmbito falar de uma melhoria da situação face a 2023).

Não é a primeira vez, como sabemos, que Marques Mendes faz eco das narrativas do governo nesta matéria. Há cerca de dois meses caucionou igualmente o exercício de contabilidade criativa do ministério da Educação, através do qual a tutela inflacionou o número de alunos sem aulas no arranque do ano letivo em 2023 (de cerca de 72 mil para 324 mil), de modo a criar a perceção de que o ano letivo em curso tinha já começado de modo mais favorável. Só que não, como se procurou demonstrar aqui e se poligrafou aqui.

Combates pela história


[P]rocurarei responder à controversa questão dos dias de hoje sobre a natureza, as origens e os perigos da nova extrema‐direita europeia emergente, recorrendo ao método de historiar o fenómeno contextualizadamente e resumidamente, partindo da interpretação dos factos e das fontes que eles carregam.

Isso significa, do ponto de vista da metodologia, o contrário do que alguma literatura sobre o assunto tem feito, ao cindir previamente, de acordo com a subjetividade criativa de cada autor, a realidade complexa do campo da extrema‐direita em taxonomias classificativas substancialmente arbitrárias e que rompem a unidade essencial do objeto e das suas variantes, tornando‐o historicamente ilegível e fracionado. Fazem‐no, frequentemente, com o propósito ideológico de repescar para a boa causa a fatia da direita radical que consideram «útil» ou «respeitável» — de alguma forma, repetindo para o estudo da nova extrema-direita o que certa politologia se tem entretido a fazer com a análise do fascismo canónico: retalhá‐lo e anulá‐lo como época e como fenómeno global entre as duas guerras mundiais quase até ao seu «cancelamento» como realidade histórica, ou à sua redução ao caso isolado da Itália mussoliniana, onde nasceram o nome e a «coisa».

Fernando Rosas, Direitas velhas, direitas novas, Lisboa, Tinta da China, 2024, p. 12.

Ontem, foi um dia muito triste, dado o espetáculo deplorável de desmemória histórica promovido pelas direitas velhas e pelas que parecem novas, cada vez mais extremadas, com a participação de certa esquerda, cada vez mais desorientada. Felizmente, houve quem tivesse resistido, quem tivesse dito não. Haja esperança.

Ontem, ao fim da tarde, passei pela Almedina do Estádio e deparei-me, no escaparate globalmente deprimente do ensaísmo, com uma exceção, o mais recente livro de Fernando Rosas, um historiador que leio desde os anos 1990, um intelectual público marxista sempre combativo, com uma escrita de exemplar clareza. Li de pé a introdução e continuei a ler em casa, bem sentado. Tudo começa pela metodologia, realmente.

Ao contrário da inventona do marxismo cultural, a verdade é que são raros os intelectuais de cultura marxista em Portugal. Esta falta sente-se por todo o lado, sobretudo quando a realidade insiste em ter um viés tão brutalmente marxista. Afinal, o capitalismo sem freios e contrapesos está sempre prenhe do fascismo.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Descarada aldrabice

Na passada quinta-feira, através do Expresso, o ministro da Educação Fernando Alexandre assegurou que o governo tinha alcançado, graças às suas medidas, o principal objetivo fixado no «Plano +Aulas +Sucesso». Isto é, a redução em 90% dos alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo, com apenas 2.338 alunos a permanecer, à presente data, nessa circunstância (antecipando até em um mês, nesses termos, a meta fixada).

Leitão Amaro, ministro da Presidência, exultou com a boa nova, afirmando tratar-se de «um dia histórico», alcançado por «um governo que enfrentou um problema [e] o resolve», qualificando a alegada queda como «um dos melhores resultados, uma das melhores novidades que os portugueses tiveram». Dando sinais de estar mais ciente do embuste, Luís Montenegro apressou-se a desvalorizar a «discussão sobre números», acrescentando que o governo os utiliza «apenas para poder aferir se as decisões estão a ter bom ou mau resultado».


Sucede, porém, que a suposta redução em 90% do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo, face ao ano letivo anterior, suscita várias questões, que comprometem, de forma séria e factual, a alegada façanha:

a) Ao tomar como referência, para aferir o cumprimento do objetivo, o total de alunos sem aulas no final do 1º período em 2023 (20.887 alunos) - e não, apenas, os alunos sem aulas desde o início do ano letivo (cerca de 2.000) - o governo compara o que não é comparável. Os alunos sem aulas a uma disciplina desde o início do ano letivo, em dezembro de 2023, representam apenas 10% de todos os alunos que, nesse momento, não tinham aulas a uma disciplina.

b) Ao focar-se apenas nos alunos sem aulas desde o início do ano letivo, o governo descurou o universo de alunos que, por diversas razões (baixas médicas, licenças de paternidade dos docentes, etc.) estiveram sem aulas a pelo menos uma disciplina, por períodos de tempo muito variáveis. Como mostra o gráfico aqui em cima, este universo foi assumindo um peso cada vez maior, passando de cerca de 38% do total de alunos sem aulas a 10 de outubro (26 mil alunos), para 94% do total (39 mil alunos), a 20 de novembro.

c) Regista-se, além disso, a partir de 6 de novembro, uma inversão na tendência de redução do valor global de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina. Se nessa data o total de alunos (incluindo, portanto, os que estavam sem aulas desde o início do ano letivo e os restantes) era de 37 mil, atinge-se a 20 de novembro um valor já próximo dos 42 mil (agravamento de 12,5%). O que, de acordo com a estimativa da Fenprof, traduz um aumento de cerca de 10 mil alunos face ao período homólogo de 2023 (27 de novembro).

d) Os cerca de 41 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina significam, ainda, que o governo tem cerca de um mês para se aproximar do valor registado no final do 1º período do ano letivo anterior. Isto é, os quase 21 mil alunos registados em dezembro de 2023 e que o governo tomou, indevidamente, como referência para a alegada redução de 90%. Ou seja, o governo tem cerca de um mês para reduzir para metade (em cerca de 20 mil), o número de alunos que estão neste momento sem aulas a pelo menos uma disciplina.

Resulta daqui, portanto, neste momento, um agravar da situação face ao ano anterior, ao contrário do feito histórico que Leitão Amaro propagandeia. E tem razão o Primeiro-ministro: se os números não devem servir para alimentar «querelas», mas antes para aferir «se as decisões estão a ter bom ou mau resultado», fica hoje claro que as medidas do governo, face ao objetivo traçado, fracassaram. Afinal, não bastava mudar de governo para que os problemas se resolvessem, ao contrário do que Luís Montenegro assegurava há cerca de um ano.

domingo, 24 de novembro de 2024

Generosidade


O domingo estava luminoso no passado fim de semana, ao contrário do céu de chumbo de hoje. Descemos as escadas, “não olhes ainda”, fomos em direção ao Rossio e subimos. Lá estava o painel de azulejos, formando um cravo, com a incisiva palavra “cumprir” inscrita.

Miguel Januário “transformou o mural num objeto artístico, numa modelação de cores que valoriza cada um dos azulejos, emergindo o cravo com toda a naturalidade e harmonia”, explicaram-me. 


Teve o contributo de 924 cidadãos, cada um com o seu azulejo, aquilo deve ter parecido uma orquestra e quem disse o contrário foi tolo: “eles têm um protagonismo individual que é democrático e que eleva o mural, criando um sujeito coletivo”, explicaram-me ainda. 

A liberdade individual genuína começa e acaba na ação coletiva. Que bela e generosa a oferta dos comunistas à cidade de Lisboa pelos 50 anos de abril.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Um parágrafo, dois gráficos, algumas palavras.


O parágrafo é da autoria de Domenico Losurdo, em A luta de classes - uma história política e filosófica, editado, em 2015, pela Boitempo no Brasil. Já devia ter sido editado em Portugal, mas, como acontece com o melhor marxismo contemporâneo, não o foi.

Os dois gráficos são da insuspeita revista liberal. Todas as semanas populariza uma ideologia que se quer global, mas que é cada vez mais parcial, com cada vez menor poder explicativo e prescritivo. A República Popular da China representa 90% do investimento na cadeia de valor ligada às energias limpas; investimento que é em parte feito, e totalmente guiado, pelo Estado, como é óbvio. 

A mensagem é clara e é para a decadente esquerda ocidental, para uma certa “teoria crítica” que abandonou a promessa iluminista de crítica radical e de emancipação: parem de alinhar com o imperialismo e olhem para o mundo com olhos de ver, aproveitando para reparar nas várias modernizações necessárias. 

O pessoal é político: no dia a seguir à vitória de Trump, almocei com o meu filho luminoso na esplanada com sombra de um restaurante vegetariano. Parecia verão. Assim que chegou disse com o otimismo que o caracteriza: a China é mesmo o futuro, tenho de ler sobre a China. 

Antes disso, eu tinha desabafado, em modo de provocação, com um amigo: apesar de tudo o que me afasta do modelo político chinês em abstrato, reconhecendo em concreto que o contexto histórico da República Popular é tudo menos geopoliticamente distendido, hoje consegui dormir melhor, porque me apaziguou pensar nos quase cem milhões de militantes do Partido Comunista Chinês e nos dois milhões de soldados do Exército de Libertação Popular. 

Não escolhemos as circunstâncias em que escolhemos o que nos dá segurança.

Dois pesos e uma impunidade total


«Senhora presidente, o mundo não devia habituar-se à morte de palestinianos. A ver morrer crianças palestinianas à fome. A ver mães carregar os seus filhos de um lado para o outro, deslocados à força. Não devia habituar-se a ver jornalistas serem assassinados, nem trabalhadores humanitários a serem mortos.
A ver palestinianos serem detidos, sequestrados, carregados em camiões para serem torturados, abusados sexualmente e violados. O facto de sermos palestinianos não torna isso menos chocante, nem menos ultrajante. Talvez para alguns nós tenhamos a nacionalidade errada, a fé errada, a cor de pele errada. Mas nós somos humanos! E devíamos ser tratados como tal. Existe uma Carta das Nações Unidas para Israel que é diferente da carta que todos aqui têm? Digam-nos!
Existe uma lei internacional para eles e uma lei internacional para nós? Têm eles o direito de matar e o único direito que nós temos é o de morrer?
»

Da intervenção de Majed Bamya, Vice-embaixador palestiniano na ONU, no dia em que os Estados Unidos vetaram mais uma resolução que apelava a um cessar-fogo imediato em Gaza. Isto é, os Estados Unidos ainda sob a administração de Joe Biden, que de forma consistentemente trágica, além de ceder armas, pouco ou nada mais fez, ao longo do último ano, que verter mediáticas lágrimas de crocodilo.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Fascismo e antifascismo


Recordar é viver: um trol de extrema-direita, encerrado numa bolha reacionária estrangeira, usou a expressão “wokismo” nas cerimónias do 25 de abril e alguém o apanhou bem na RTP, com uma magnífica gralha. 

Agora, as extrema-direitas, IL-Chega, hifenizados por desejo de um certo capital, conseguiram transformar, com o decisivo contributo do PSD, uma mentira histórica numa cerimónia sem cravos vermelhos, num dia de novembro ao calhas. Quem fez abril, quem distribuiu cravos vermelhos, não estará lá, os comunistas não estarão lá, outros democratas não estarão lá. 

Razão têm os que, fiéis à melhor tradição marxista, identificam naqueles dois partidos de extrema-direita as expressões políticas da burguesia mais reacionária, a que quer confrontar o regime democrático de matriz constitucional antifascista. 

Perante este confronto, não há mesmo terceiras vias.

Obsessões que resistem a factos: João Marôco e o alegado «retrocesso educativo» de Portugal


Trazendo à memória o ex-ministro Nuno Crato e a sua peregrina tese da «década perdida» na educação – que corresponde justamente ao período em que o nosso país alcançou os progressos mais notáveis na aferição internacional PISA –, João Marôco insistiu recentemente, no Público de 4 de novembro, na ideia de que Portugal regista um «retrocesso educativo que ninguém quer ver».
O recente debate sobre a disciplina de Cidadania foi o pretexto para o regresso a esta tese, com João Marôco a lamentar que a relevância concedida a esse debate não permita que se discuta aquilo que, em seu entender, realmente importa: o recuo, «sem precedentes, nas literacias de leitura, matemática e ciências dos alunos, evidenciado no último PISA».
Sucede, porém, que a ideia de um recuo de Portugal no PISA de 2022, que em termos comparativos caracterize o nosso país como um caso isolado de fracasso – por não acompanhar uma tendência internacional generalizada – carece de fundamento. De facto, a descida verificada face ao PISA de 2018 está em linha com o decréscimo de resultados registado à escala da OCDE e da UE, refletindo assim, em idêntico grau, o impacto da pandemia nas aprendizagens. Ou seja, sem que as diferenças observadas sejam estatisticamente relevantes, como a própria OCDE e o Iave cuidaram oportunamente de assinalar.
(...) Em suma, o que a evolução dos resultados de Portugal neste exercício internacional de aferição das literacias demonstra é, portanto, algo muito claro. Depois de uma aproximação progressiva à OCDE em todos os domínios, conseguida com diferentes governos, passa-se a uma situação em que os alunos portugueses acompanham a evolução de valores à escala da organização.

O resto do artigo pode ser lido no Público de ontem.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Choque de procuras

Contrariando a narrativa dominante e que persiste, de que a atual crise de habitação resulta simplesmente de um problema de falta de casas (bastando construir para que tudo se resolva), o Banco de Portugal tem sido uma das poucas instituições a assinalar a importância do surgimento das novas procuras na subida vertiginosa dos preços (ver por exemplo aqui ou aqui).

Nesta linha, foi recentemente divulgado um novo estudo, em que se procede a uma comparação entre Portugal e Espanha, constatando-se que as semelhanças entre os dois países, em termos de trajetória macroeconómica, não se refletem na evolução do preço das casas. De facto, desde 2013, «os preços da habitação em termos reais cresceram mais de 80% em Portugal e menos de 30% em Espanha».

Dando nota que os preços das casas em Portugal estão sobrevalorizados desde 2017, os autores do estudo concluem que «o crescimento dos preços em Portugal tem sido impulsionado maioritariamente por forças da procura, com a oferta a ser ineficaz em contrabalançar essas pressões, ao contrário do que sucede em Espanha».


A expressão «choque de procuras», sugerida no estudo, é particularmente feliz para descrever o essencial da génese e natureza da crise de habitação, contribuindo para refutar a tese simplista e ilusória da falta de casas, que tende a ignorar, desde logo, a relação entre população e alojamentos. Aliás, deste ponto de vista, tudo indica que Portugal até construiu mais ao longo da última década do que o nosso país vizinho, como ilustra o gráfico aqui em cima. Em média, entre 2010 e 2023, foram licenciados 1,8 fogos por mil habitantes em Portugal e apenas 1,5 em Espanha.

Ora, se a crise de habitação decorresse simplesmente da falta de construção, como dominantemente se afirma (ao arrepio do que nos dizem as comparações internacionais), os preços das casas em Espanha teriam até subido mais que em Portugal. Porque, de facto, como assinalam os autores do estudo, «o crescimento dos preços é marcadamente guiado pelas forças da procura», sendo a oferta «incapaz de contrabalançar este efeito» e contribuindo até, «em alguns períodos, ainda que de forma ligeira, para o crescimento dos preços».

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Teses


Estas duas passagens, tão claras e justas, das teses que estão em discussão no PCP, no quadro do seu XXII Congresso (13, 14 e 15 de dezembro), são duas das principais razões para o meu apoio a um partido que é condição necessária, mas naturalmente não suficiente, para uma alternativa digna desse nome neste país. Não sou militante, mas ainda assim fui convidado, com outros independentes de Coimbra, para trocar umas ideias sobre este documento. Vamos a isso, então. 
 

Apresentação e debate


A hipótese de que se parte neste livro é a seguinte: nos capitalismos contemporâneos alteraram-se significativamente os equilíbrios que conhecemos noutras épocas entre público e privado, entre interesse comum e interesses individuais, e produziu-se um desequilíbrio a favor de poderes de mercado e de esferas particulares desses poderes, mas isso não quer dizer que tudo assente no mercado e muito menos no poder individual de cada um que nele participe. Pelo contrário, formaram-se novos poderes, que se tornaram dominantes, e a sociedade carece de um nível de concertação capaz de lhes contrapor o interesse comum, a sustentabilidade da vida coletiva e objetivos estratégicos de organização que estão para lá de cada esfera; nisto consiste o exercício do que deve ser designado planeamento.

Licínia Simão, José Reis e eu estaremos a apresentar e a debater este livro na próxima quinta-feira, dia 21 de novembro, às 17h, na sala Keynes (ora bem) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Aparecei.

Pela minha parte falarei do capítulo que para aí escrevi sobre a história da economia política internacional em torno do planeamento no capitalismo. Deixo aqui os dois primeiros parágrafos, com referências omitidas:

Num livro já clássico sobre o “capitalismo moderno”, o britânico Andrew Shonfield argumentou que “o planeamento económico é a expressão mais característica do novo capitalismo”. Pelo mesmo diapasão alinhava Max Milikan, também nos anos 1960, num volume sobre “planeamento económico nacional”, da Índia à França, editado pelo influente National Bureau of Economic Research (NBER) dos Estados Unidos da América (EUA). Falando de uma “moda entre os economistas”, constatava então que um volume destes seria “inconcebível há trinta e cinco anos, há vinte e cinco anos seria sobre a União Soviética, há dez sobre o planeamento em países em vias de desenvolvimento e nos últimos dez sobre qualquer economia nacional”. 

O passado é feito de formas de economia política – de ideias e interesses cristalizados em instituições – distantes. Passadas cerca de quatro décadas de “desplaneamento”, há quem diagnostique atualmente “o grande regresso do planeamento”, dadas as lições extraídas da pandemia, a tendência para a desglobalização, os choques geopolíticos ou a crise ecológica e climática. A necessidade não garante, por si só, o regresso. Seja como for, neste contexto, pode ser útil revisitar brevemente algumas das práticas e das justificações subjacentes ao planeamento, muitas vezes dito indicativo, no quadro de uma “economia concertada”, sublinhando o contexto internacional que o favoreceu, mas também, ainda que de forma mais breve, as razões internacionais para a sua crise a partir dos anos 1980.  

Sábado, workshop Causa Pública sobre a crise de habitação


«A crise na habitação está hoje na ordem do dia em diferentes países como um dos problemas políticos que emergiram depois da crise financeira de 2008. Mas em Portugal a situação é pior do que na esmagadora maioria das economias desenvolvidas. A crise habitacional é hoje um dos mais graves problemas que a sociedade portuguesa enfrenta.
A Causa Pública tem vindo a trabalhar sobre a questão da habitação, sob a coordenação de Guilherme Rodrigues. No dia 23 de novembro iremos realizar um workshop em que apresentamos o primeiro de um conjunto de três relatórios dedicados a este tema.
Pretende-se apresentar o diagnóstico da crise habitacional portuguesa, discutir os seus custos sociais, mas também o seu impacto económico – que é muito relevante e que tende geralmente a ser ignorado no debate público. Finalmente, depois de anos em que foram lançados diferentes pacotes legislativos, queremos começar a debater políticas públicas que respondam efetivamente ao problema
».

Com a participação de Alexandre Abreu e João Pereira dos Santos, num debate moderado por Ana Drago, sobre o estudo que será apresentado por Guilherme Rodrigues. Sábado, 23 de novembro, a partir das 14h30, no SPGL (Lisboa). A participação é gratuita, devendo as inscrições ser feitas por email: iniciativas@causapublica.org.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Haja luz e esperança


«Estive na primeira reunião de líderes do G20, convocada em Washington no contexto da crise financeira de 2008. Dezesseis anos depois, constato com tristeza que o mundo está pior.
Temos o maior número de conflitos armados desde a Segunda Guerra Mundial e a maior quantidade de deslocamentos forçados já registrada. Os fenómenos climáticos extremos mostram seus efeitos devastadores em todos os cantos do planeta. As desigualdades sociais, raciais e de género se aprofundam, na esteira de uma pandemia que ceifou mais de 15 milhões de vidas.
Segundo a FAO, em 2024, convivemos com um contingente de 733 milhões de pessoas ainda subnutridas. É como se as populações do Brasil, México, Alemanha, Reino Unido, África do Sul e Canadá, somadas, estivessem passando fome. São mulheres, homens e crianças, cujo direito à vida e à educação, ao desenvolvimento e à alimentação são diariamente violados. Em um mundo que produz quase 6 bilhões de toneladas de alimentos por ano, isso é inadmissível. Em um mundo cujos gastos militares chegam a 2,4 trilhões de dólares, isso é inaceitável.
A fome e a pobreza não são resultado da escassez ou de fenômenos naturais. A fome, como dizia o cientista e geógrafo brasileiro Josué de Castro, “a fome é a expressão biológica dos males sociais”. É produto de decisões políticas, que perpetuam a exclusão de grande parte da humanidade.
O G20 representa 85% dos 110 trilhões de dólares do PIB mundial. Também responde por 75% dos 32 trilhões de dólares do comércio de bens e serviços e dois terços dos 8 bilhões de habitantes do planeta. Compete aos que estão aqui em volta desta mesa a inadiável tarefa de acabar com essa chaga que envergonha a humanidade.
Por isso, colocamos como objetivo central da presidência brasileira no G20 o lançamento de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Este será o nosso maior legado. Não se trata apenas de fazer justiça. Essa é uma condição imprescindível para construir sociedades mais prósperas e um mundo de paz
».

Do discurso de abertura proferido por Lula da Silva, no início da Cimeira do G20, no Rio de Janeiro.