domingo, 10 de novembro de 2024

A esquerda otanizada


Há uma esquerda, ainda dominante por aqui e por ali, presa mentalmente na geografia ideológica da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou NATO, no acrónimo mais conhecido, em inglês). Por exemplo, já se disse que é impossível a uma mulher ganhar num país tão conservador como os EUA. 

Sim, nem sequer se digna a olhar para sul, para o México, por exemplo, onde a valorosa Claudia Sheinbaum ganhou há tempos de forma esmagadora, com um programa progressista na melhor tradição de nacionalismo económico em relação a setores estratégicos, como a energia, herdando também alguns dos resultados impressionantes de Obrador. E está a implementar o seu programa de forma consequente, com todas as contradições do que pula e avança numa formação social concreta, com tantos constrangimentos, tão longe de Deus e tão perto dos EUA.

E, obviamente, essa esquerda otanizada só olha para a República Popular da China com medo e desprezo ignorantes. Nada quer aprender sobre controlo público de sectores-chave, incluindo a finança e as infraestruturas sociais, sobre planeamento indicativo, com instrumentos impositivos de política industrial, indispensáveis para a enfrentar ameaças existenciais, etc. 

Despreza o Estado nacional, onde se pode formar um consenso político consequente para tais tarefas socioeconómicas. Essa esquerda não alcança a perversidade do militarismo e do federalismo europeus e, no fundo, aceita o neoliberalismo, as guerras de classe sem fim contra os povos. Finge não saber que existe uma linha de cor e recusa-se a fazer a conexão com o imperialismo que a traçou e traça. As vidas palestinianas valem menos neste contexto.

Não é anti-imperialista e por isso não valoriza a ascensão pacifica da China e o efeito de freio e contrapeso aos EUA, parte de uma igualização sem precedentes históricos desde a primeira revolução industrial. É da OTAN, afinal de contas. O resto, a esmagadora maioria do mundo, só lhe interessa para o perverso intervencionismo humanitário.

Em O marxismo ocidental, o saudoso Domenico Losurdo denunciou histórico-filosoficamente uma parte dessa esquerda, a que é pseudo-radical na sombra da OTAN, a que desvaloriza o impulso nacionalista anticolonial até aos dias de hoje. Fê-lo talvez melhor do que qualquer outra pessoa: “na medida em que se satisfaz com a crítica e, aliás, encontra sua razão de ser na crítica, sem pôr-se o problema de formular alternativas possíveis e de construir um bloco histórico alternativo àquele dominante, ele é a ilustração da sabichonice do dever ser; quando, pois, desfruta da distância do poder como uma condição da própria pureza, encarna a bela alma”. 
 
Essa esquerda merece todas as aspas. Lamento, mas tem de ser combatida no plano das ideias para vermos surgir um antifascismo digno desse nome. Sim, sem clarificações e cortes continuaremos no mesmo declínio. Sim, eu posso falar, já mudei de opinião e deixei registo. Outros podem fazer o mesmo agora, se calhar. Estamos todos vivos e queremos todos florescer.

Adenda. Título inspirado num dos últimos livros de António Avelãs Nunes: A Europa Otanizada.

7 comentários:

Anónimo disse...

E no entanto, a esquerda parece dar-se bem com o capitalismo (que não lhes proíbe nada, lhes enche os bolsos e as carteiras), nas democracias liberais( que lhes permite todos os devaneios socialistas, activismos vários, até a "nova ciência do género", tudo o que a esquerda quer e apetece). Onde a esquerda não parece dar-se bem nem ter resultados que justifiquem ser apresentados como exemplos (o capitalismo de estado na china, mantendo o comunismo para esganar as mais elementares liberdades é para rir). É triste ainda não se ter percebido que sem liberdade, económica e ou outra, não vale a pena. Fico a pensar num complexo de inferioridade ou inveja da esquerda.

Anónimo disse...

O ódio á NATO e á Europa revela alguns problemas do autor, sendo o mais evidente o ideológico. É evidente que NINGUÉM quer abandonar a NATO (antes pelo contrário) bem como NINGUÉM quer sair da UE. Muito pelo contrário. O estado, um adquirido civilizacional, quer-se eficiente (trabalhando bem com o mínimo de recursos para não sobrecarregar com impostos), e não ser o empregador do país inteiro. O estado quer-se eficaz, para alcançar os objectivos propostos. Deve regular, e não ser um empecilho burocrático e fiscal na criação de riqueza e emprego. Um país só com pobres é melhor do que um país com tantos ricos quanto possível? O problema do autor é saber o que dizem os portugueses eleições após eleições: socialismo, seja ele qual for, nunca mais.

Lowlander disse...

A mim parece-me que o problema do Anonimo(s?) e ser um exemplo paradigmatico de lumpenintelligentsia.

Carlos disse...

Já adquiri o livro do Avelã Nunes, mas ainda não o li. Mas concordo inteiramente: o ser contra a OTAN e a UE, e tudo o que significa esta Ordem Imperialista dominante, é a marca de água do que é ser esquerda! E, mais uma vez, só o PCP é que a cumpre.

Anónimo disse...

Carlos, por isso o PCP vai desaparecer. Perdeu a capacidade de interpretar o povo no século XXI.

Anónimo disse...

Certo. Cumpre, mas q interessa isso se não consegue adaptar a realidade aos seus desejos? Será por isso q há uns meses Raimundo dizia que as entradas no PC não conseguiam equilibrar as saídas? Em vez de tiradas saudosistas da URSS talvez fosse mais proveitoso reconhecer o carácter imperialista da autocracia Russa e arruma-la no baú onde já arrumou os Estados Unidos, e deixar de ver o mundo a duas cores. A não ser q ache inevitável paises da europa alinharem ou com um ou com outro, reeditando os tempos da guerra fria. Mas parece me que já ninguém está para isso.

Anónimo disse...

João Rodrigues, e essa esquerda otanizada tem nome?
Esquerdas há diversas, para além do PC, até mesmo esquerdas não otanizadas.