quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Uma crise evitável


Na fase atual, penso que a mensagem mais importante a reter é a de que a crise com que nos deparamos não é uma fatalidade. É uma construção de política económica consciente, baseada em economia política deprimente.

Lê-se no Financial Times:

«Christine Lagarde indicou que uma recessão na zona euro não seria suficiente para impedir que o Banco Central Europeu aumentasse ainda mais as taxas, sublinhando a determinação dos decisores políticos em eliminar a inflação apesar dos riscos para o crescimento.»

Se Lagarde disse que uma "recessão moderada" não é suficiente para "domar a inflação", gostaríamos pelo menos de saber quanta recessão, quanto desemprego e quanto desespero humano é que o BCE considera necessário para reduzir a inflação a 2%.

Dois problemas emergem com isto.

Em primeiro lugar há o problema da falta de legitimidade democrática do BCE, como também o João Ramos de Almeida explicou aqui. Aliás, o poder pós-democrático dos Bancos Centrais modernos está bem espelhado no processo que levou à demissão de Liz Truss no Reino Unido, como também mostrou o Paulo Coimbra aqui.

Neste aspeto, também vale a pena ler Claudia Sahm, uma economista que, sendo convencional, ainda considera mais importantes as pessoas, as suas aspirações e o seu emprego do que metas cegas de inflação:

«A independência da Reserva Federal é dada pelo Congresso, não por Deus. A "independência" da Fed do Congresso e da Casa Branca é considerada sacrossanta na Fed. Não é. E, em tempos de guerra, os três coordenaram-se.»

De facto, é absolutamente necessária a coordenação do Banco Central e do Governo, bem como a noção da necessidade de prosseguir políticas económicas que tenham em conta as pessoas e, para tal, é necessária a submissão do Banco Central ao poder democrático.

O segundo problema está relacionado com a própria teoria macroeconómica convencional sobre a inflação.

É sabido que após o falhanço do monetarismo nos anos 80, duas ideias vieram a dominar a política monetária. A primeira é a da utilização de Regras, como a regra de Taylor, que partem do princípio da existência de uma taxa de juro natural que regula a inflação e o emprego em equilíbrio que se relacionam negativamente de acordo com a curva de Phillips.

Só que essa relação negativa entre desemprego e inflação é posta em causa há décadas. Aliás, sobre isso vale a pena ler mais uma vez Claudia Sahm.


O segundo pilar da teoria convencional sobre a inflação está na ideia de que o que verdadeiramente comanda a inflação são as expetativas de inflação dos agentes económicos. Considera-se a missão do Banco Central é garantir que as expetativas continuam "ancoradas" sob pena de se entrar numa espiral inflacionista incontrolável.

A mim, esta teoria parece ser apenas uma forma de justificar teoricamente que se apliquem na prática os mesmos ditames do monetarismo. Mas com ela que se explica a aparente contradição da própria presidente do BCE entre o que afirma agora e aquilo que afirmava em setembro. Como explicou o Vicente Ferreira, aqui, a presidente do BCE sabe perfeitamente que as causas primárias desta inflação estão completamente noutro lado e dizia: "Se a causa é predominantemente da oferta e dos preços da energia, isso é um trabalho para outros".

Só que a teoria das expetativas da inflação talvez tenha pés de barro, como apresentou o economista Jeremy Rudd do Board of Directors da Reserva Federal num paper de setembro de 2021 e que provocou amplas reações na altura, mas, no entanto, o debate não foi tão longe como seria desejável.

Resumia Rudd a questão:

«Os economistas e decisores políticos económicos acreditam que as expectativas das famílias e empresas em relação à inflação futura são um factor determinante da inflação real. Uma revisão da literatura teórica e empírica relevante sugere que esta crença assenta em bases extremamente instáveis, e defende-se que a sua adesão acriticamente pode facilmente conduzir a graves erros de políticas.»

Perante tudo isto, conclui-se que estamos a ser governados por um poder pós-democrático que provoca uma crise económica de forma consciente sem que nada possamos fazer em relação a isso. Aliás, nem sequer os Governos eleitos podem fazer aquilo para que forem mandatados. E tudo isto, tendo por base uma teoria económica de fundações mais do que duvidosas que urge questionar e ultrapassar.

3 comentários:

Anónimo disse...

O BCE andou mais de 10 anos a baixar a taxa de juro para fazer subir a inflação e não conseguiu. Agora sobe a taxa de juro para baixar a inflação e garante que vai dar resultado.

Lembram-me os feiticeiros que fazem a dança da chuva: Se a fizerem todos os dias, alguma vez hão de acertar. Se não acertarem nunca, não faz mal, apesar de tudo eles é que são os feiticeiros, eles é que sabem.

Anónimo disse...

Independentemente do que se possa pensar sobre as vantagens e desvantagens da independência dos bancos centrais, no caso da zona euro tem sempre um problema: onde está o governo? Não são os governos nacionais. É a Comissão? Ou a conclusão é a saída da zona euro? Nada contra, mas expliquem os custos.

Jose disse...

Juros negativos?
Onde se viu tamanha anormalidade? Sem consequências? ...