segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Lula, vai mesmo ficar tudo bem?


Ontem foi um dia bom. A vitória de Lula foi um suspirar de alívio para todos os democratas. Estes dias são de festejo e de esperança, mas, sem querer ser desmancha-prazeres, a verdade é que a magra vitória deixa no ar a existência de profundos riscos para o Brasil, que apresenta lições para o resto do mundo, onde o neo-fascismo do tipo bolsonarista continua a crescer e a ter impacto.

A verdade é que este resultado deixa no ar um conjunto de dificuldades. Lula era, já em 2018, o único capaz de vencer Bolsonaro. Se desta vez o foi, continua a ser o único. Daqui a 4 anos será necessário ganhar outra vez, provavelmente sem Lula que nessa altura terá 81 anos.

Lula adquiriu o seu capital político graças a um período histórico irrepetível. As condições atuais são de grandes riscos e não é possível garantir que, por exemplo, no plano económico, Lula volte a conseguir os resultados positivos que foram possíveis na sua anterior passagem por Brasília. Por fim, os bolsonaristas conseguiram ainda obter maioria no Congresso Federal o que obrigará Lula a difíceis negociações que poderão boicotar muitas iniciativas.

Acresce a isto que o bolsonarismo se apresenta vivo e com uma força retumbante e bem impregnada por todo o país. Como bem sentiu Dilma, o movimento da direita nas ruas não é de somenos importância.

Com isto, o melhor artigo que encontrei sobre o assunto foi este de Ivan Nunes no Público que mostra a necessidade de compreender o bolsonarismo para que este possa ser de facto atacado e expurgado da sociedade brasileira. E nessa situação, o primeiro passo é compreendê-lo nos seus termos e não como o retrato de uma atitude irracional, sem sentido e sem explicação:
Por demasiado tempo, temo-lo tratado [a Bolsonaro] não como fenómeno a ser entendido, mas — na melhor das hipóteses — execrado. Quando confrontados com a amplitude da sua base eleitoral, apelamos para o obscurantismo, assinalando que ele se apoia em forças retrógradas (os famosos “evangélicos”), gente que não obedece à razão e com quem é por isso impossível conversar. Só que, remetendo o problema para motivos que estariam fora do alcance da lógica, a nossa explicação ela própria obscurece mais do que explica. Imaginar que os eleitores — dezenas de milhões de pessoas — agem desta forma simplesmente porque acreditam em coisas bizarras não é, no fim das contas, muito diferente de dizer que estão possuídas pelo demónio. Por um lado, a explicação remete para uma forma de pensamento supostamente anterior às Luzes; por outro, não procurando compreender o que vai na cabeça daqueles de quem fala, torna opaco o fenómeno que pretende elucidar.
Esta atitude que é comum a grande parte da esquerda não é exclusiva do fenómeno bolsonarista, mas é semelhante ao que se passou com o Brexit, com Donald Trump e, diria, em Portugal, com o crescimento do Chega. Concordo então, completamente com o Ivan quando afirma que "o que faz falta é compreender a adesão ao bolsonarismo nos seus próprios termos, como resposta lógica, em certo sentido adequada, às circunstâncias sociais e políticas do momento que vivemos (ênfase meu)."

E continua com algumas dicas sobre esse mesmo tempo que vivemos: "O bolsonarismo é uma ideologia para uma era de precarização do trabalho, de uberização, de “empreendedorismo”, com a concomitante desagregação das formas clássicas de organização dos mais fracos em sindicatos e em partidos. Para quem não acredita que o Governo seja capaz de fazer nada, o facto de o Governo não fazer nada não constitui surpresa."

Fica assim mais clara a incrustação do bolsonarismo e semelhantes neo-fascismos um pouco por todas as sociedades. A verdade é que esta ideologia racista, xenófoba, homofóbica, misógina surge como resposta a problemas reais das pessoas e das sociedades onde outras respostas tardam em surgir ou não chegam de todo. Ou seja, como resposta à pobreza, desemprego, precariedade, falta de perspetivas. São, no fundo, o outro lado da moeda de uma esquerda que vai perdendo grande parte das suas bandeiras, da sua capacidade de marcar agendas, da sua capacidade de luta e ação coletiva.

Lá, como cá, creio que as dificuldades de lidar com as massas seduzidas pela extrema-direita apenas podem ser ultrapassadas com trabalho de base e de médio/longo prazo, ou seja, sem medo do populismo que significa falar e ouvir os comuns, como bem expressa o nome de uma recente iniciativa onde participam membros deste blogue.

De um ponto de vista mais macroeconómico o João Rodrigues também já alinhou o que é necessário, mas que está bem longe desde que em Portugal se elegeu um governo de maioria absoluta:

"É a economia do pleno emprego, da inclusão pelo trabalho com direitos, a da segurança social e dos serviços públicos universais, do reconhecimento que as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas, o que significa desenvolver potencialidades e humanizar contextos."

É, de facto, assim que se combatem fascismos e não com meros slogans e palavras de ordem que grande parte das vezes se tornam vazias.

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