quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Poupem-nos


Ontem foi o dia da poupança, uma oportunidade impar para todos os moralismos. A DECO, pela voz de uma das suas responsáveis, prestou-se a um lamentável papel com os conselhos das lancheiras e das marcas brancas. O Jornal de Negócios, por sua vez, fez uma edição gratuita cheia de dicas para poupar e acumular e de publicidade a instituições financeiras mortinhas por captar uma parte dos rendimentos da minoria que tem o privilégio de ter sobras. Como leitor regular do jornal, dispenso bem este tipo de número.

A ideia utópica é mesmo a de transformar o perdulário cidadão, que acede a serviços públicos e à segurança social em regime de repartição, no quadro de um Estado social relativamente frágil no nosso país, como sublinha Mariana Vieira da Silva, num intrépido especulador que poupa e consome serviços financeiros, preparando a sua velhice por capitalização, cuidando da sua saúde com seguro ou enfrentando sabe-se lá que incerteza.

A realidade é a da expropriação financeira dos trabalhadores, que terão parte dos seus rendimentos torrados no casino financeiro ou em serviços de saúde caros e relativamente medíocres. Os EUA mostram o caminho para todas as ineficiências e desperdícios lucrativos, obtidos à custa das assimetrias de informação e de poder que marcam estes sectores, onde uma parte da população até se tem de endividar para pagar por serviços necessários e tudo.

Anda a dar-se corda à ideia, difundida por um estudo encomendado pelas seguradoras, segundo a qual não há nada melhor do que desmantelar o Estado social para promover a poupança. Nem consigo pensar em ilusão que mais agrade ao capital financeiro e que seja melhor receita para aumentar a depressão e a desigualdade, uma combinação tóxica.

O sistema de insegurança social por capitalização só tem desvantagens, não tendo nenhum mecanismo para enfrentar com mais sucesso os problemas com que qualquer sistema de pensões está confrontado – da demografia ao problema central que é o desemprego de massas, a crise permanente, como argumentam João Ferreira do Amaral ou Maria Clara Murteira. De resto, a pequena história dos fundos de pensões da banca é ilustrativa.

O esforço para aumentar a poupança no actual contexto é parte dos paradoxos da depressão em que se assiste a uma quebra da procura, do investimento, que atrofia os rendimentos e mina a prazo a possibilidade da própria poupança, que é o que sobra, isto quando para cada vez mais nem sequer chega para fazer face a todos os encargos.

De resto, os desequilíbrios externos acumulados, a dívida externa, são a expressão da inserção dependente de Portugal nos circuitos económicos e financeiros internacionais liberalizados, no quadro de um euro forte, gerador de estagnação, seguida de recessão e, na melhor das hipóteses, de mais estagnação no futuro, fragilizando financeiramente o país e sendo a expressão do preço que os países que se querem continuar a desenvolver pagam por abdicar de instrumentos de desenvolvimento, da politica cambial ao controlo de capitais. Nenhum problema se resolve aqui sem recuperação de instrumentos de política económica.

Quando não existem instrumentos para combater a crise abunda o moralismo imoral da promoção da poupança, um paternalismo atroz, um pretexto ideológico para dar ainda mais poder ao capital financeiro. Por que é que se insiste em consolidar os mecanismos que foram responsáveis pela crise?

4 comentários:

Anónimo disse...

Também ouvi e fiquei indignado com tanta asneira. Os simplex's, as equivalências e a superficialidade do pseudovoluntarismo é no que dá.
Mas pior do que isso só mesmo a cassete do Camilo Lourenço. Ideias e imagem não mudam há décadas.

Aleixo disse...

"O mundo do faz de conta"

Não há volta a dar!

Até fico com dúvidas se..."funciono bem"!

Mas esta malta anda a gozar com isto?!

Pela prepotência,
arrogância,
autismo,
desprezo,
saque e
roubo,

que uns bandalhos aldrabões eleitos legitimam,

cada dia que passa,

aumentam os incumprimentos...
aumentam os vencidos...
aumentam os desmoralizados...
aumentam os marginalizados...
aumentam os desgraçados...
aumentam os espoliados...

e...vêm falar de poupança!!!

Poupança de quê???

Do ar...

Ricardo Reis disse...

Não vejo qual é o problema de uma representante da DECO dar dicas de poupança para pessoas que viram os seus rendimentos diminuir. Ainda que para a coletividade, a poupança seja negativa, para o consumidor é um mal necessário. Às vezes as pessoas não sabem prioritizar os cortes na despesa, mantendo gastos supérfluos e cortando na qualidade da alimentação, por exemplo. É nestas situações que as dicas de poupança se revelam particularmente importantes.

Não há necessidade de as incluir numa conspiração do capital financeiro para controlar todo o rendimento dos portugueses...

Anónimo disse...

Isto de apostar na capitalização para ultrapassar o Estado social tem os seus problemas.
Olhemos para trás... actualmente estou aposentado e recebo a minha aposentação da CGA, aposentação com tendência a ir para zero...
Bom, mas se eu tivesse capitalizado como é que estaria a minha reforma?
O primeiro desconto que fiz foi ainda antes do 25 de Abril. Se tivesse colocado tudo num fundo "seguro" na bolsa, este tinha ardido com o 25 de Abril e a primeira crise do petróleo.
Depois, nos anos oitenta teria tido muita dificuldade em manter os meus activos com a inflação e o crauling-peg (desvalorização deslizante).
Lá para 1987, nova crise na bolsa voltaria a derreter a minha capitalização.
Bom, lá iria recuperando, partindo provavelmente de valores iguais ou mesmo inferiores aos de 1974 até à crise das dotcom, lá para o fim dos anos noventa.
Passada esta teria tido um estrondo final com a crise actual e, provavelmente seria mais um sem abrigo a alimentar-se na Sopa do Sidónio lá para os lados dos Anjos, em Lisboa.
A minha pergunta é quantos fundos de capitalização de reformas conseguiram manter valores decentes ao fim de 40 ou 50 anos.