segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Do gradualismo em política

A introdução de propinas no ensino superior, no início dos anos noventa, foi durante muito tempo apresentada (e justificada) como tendo apenas em vista o reforço dos recursos necessários à melhoria da qualidade do ensino e da acção social. Não estava portanto em causa - era solenemente assegurado - o financiamento corrente do ensino superior público, responsabilidade inalienável do Estado.

Mais tarde, entra em cena a tese da necessidade de aumento das receitas próprias das instituições. Não se tratava - garantia-se - de que as mesmas servissem para substituir os recursos provenientes do Orçamento de Estado, que deveriam continuar a assegurar o funcionamento do sistema. O que se pretendia era, essencialmente, estimular as relações entre as instituições de ensino superior e o tecido económico e institucional envolvente.

A verdade é que estas ideias românticas foram dando lugar a uma crua realidade: a receita das propinas começou a ser indispensável para garantir o financiamento corrente do sistema (isto é, para pagar despesas como salários, água ou electricidade) e as receitas próprias assumiram um peso cada vez mais expressivo no orçamento das instituições de ensino superior. O que permitiu, obviamente, aliviar o Orçamento de Estado das suas «inalienáveis» responsabilidades. Entre 2005 e 2013, por exemplo, o peso das transferências do OE para as universidades desceu de 72 para 53% e as receitas próprias passaram a significar 29% do total em 2013 (quando em 2005 o seu peso era de cerca de 20%). Se em 2005 as propinas representavam 12% do orçamento privativo das universidades, em 2009 aproximaram-se dos 14% e, na proposta do OE para 2013, atingem já os 18%. Isto é, quase 1/5 do total. Paralelamente, aumenta o peso das receitas próprias no financiamento da acção social: cerca de 24% em 2005 para 60% em 2013.

Estes dados contém uma lição política: a do gradualismo como estratégia para que as ideias façam caminho e se materializem. Trata-se, essencialmente, de «quebrar o gelo» para que - a partir daí - se torne possível fazer avançar um processo de erosão progressiva. Não foi isto que se passou, afinal de contas, de modo mais amplo, com «as gorduras do Estado» que era preciso suprimir, passando para a necessidade de cortes ditados pelas necessidades de ajustamento orçamental (o «fazer o mesmo com menos dinheiro»), para chegarmos finalmente à ideia de «refundação do Estado Social»?

Talvez a esquerda devesse prestar mais atenção ao gradualismo como estratégia de acção política, sem perder de vista o que pretende alcançar (tal como a direita não perde de vista os seus objectivos). Tratar-se-ia por exemplo, no caso das propinas, de propor a fixação de um tecto máximo (5%?) para o peso que estas deveriam assumir no orçamento das instituições. Em vez de se cristalizar – tão orgulhosamente pura como politicamente inócua – na frondosa reivindicação de um «fim imediato das propinas» no ensino superior.

10 comentários:

Anónimo disse...

Borra a pintura toda no último parágrafo. Essa do tecto máximo, Serra, contra a cristalização foi a conversa que permitiu aqui chegar.

Com Guterres, que fixou o valor das propinas ao valor do salário mínimo.

Quer o quê? O Tecto máximo dourado inscrito na constituição?

rui fonseca disse...


Enquanto as universidades públicas estiverem principalmente escoradas no OE, correrão o risco de verem as suas actividades cada vez mais comprometidas.

O ensino universitário público não tem de ser tendencialmente gratuito. Ao Estado deve apenas competir pagar o ensino daqueles que, tendo mérito, não têm capacidades financeiras.

Dos que podem para os que precisam é um lema da direita?

Jorge Bateira disse...

Caro Rui Fonseca

Está equivocado. O lema da esquerda (pós-Blairismo) é: todos iguais (sem co-pagamentos) no momento de beneficiar dos serviços públicos e o financiamento destes por impostos muito progressivos.

A meritocracia é o discurso do social-liberalismo. Sugestão de leitura: Brian Berry (2005) Social Justice Matters; Polity Press.

Jorge Bateira disse...

Corrijo o autor: Brian Barry

Aleixo disse...

Pois...pois...

Este, "como quem não quer a coisa...",

dito como se fosse para manter a "coisa" mas,

"como quem não quer a "coisa"...",

faz desaparecer a "coisa"!!!

(...mais ou menos como o PS!
...diz que é contra mas, faz de conta... que é contra!)

O Poder tornou-se exímio,
na aplicação deste "gradualismo político",

aguardando pelo momento propício,para dar a machadada final!

Com um cinismo atroz(!!!),

ainda tem a lata - com uns argumentos falaciosos - de evocar a justeza e justiça da decisão!

...golden shares,propinas,taxas moderadoras,apois sociais,

privatizações, as que já foram e as que estão calha: ANA,TAP,ÁGUA,SANEAMENTO,etc,etc...

Aleixo

Miguel Ivo Cruz disse...

Já nem me lembrava que tinha sido o Guterres a introduzir as propinas, a memória é curta.
Cobrar uma propina indexada ao ordenado mínimo é garantir que quem ganha ordenado mínimo não vai à universidade a não ser pela caridade que dá pelo nome de acção social. A acção social indexada a complexos e dispendiosos sistemas de burocracia administrativa por sua vez garante que quem ganha mais do que isso não tem acesso , pelo que quem ganhe apenas 2 X a indexação mínima, ou seja quase toda a gente, está completamente fora do sistema.
Mais acrescento que a proposta de 5% do orçamento é apenas mais um número a acrescentar ao gradualismo de que falam neste post.
É claro como o cristal e é aliás uma frondosa evidência :-) a única coisa razoável a reivindicar é o «fim imediato das propinas» no ensino superior.

Nuno Serra disse...

Caro Miguel Ivo Cruz,
A memória é não só curta como pode por vezes ser meio turva: Foi Cavaco Silva e não António Guterres quem introduziu as propinas no ensino superior.
E veja lá quantos salários mínimos já cabem hoje numa propina...

Anónimo disse...

Mais exactamente, eu,Anónimo das 08h15, de ontem, lembro que até foi diamantino durão o ministro que iniciou a coisa, e que a 24 de novembro de 1993 houve uma forte cargas policial contra estudantes, o que agora entram nos 40.

Guterres acalmou a coisa, fixando o tecto máximo do salário mínimo - um valor alto para pagar e não ao alcance de todos. E depois que saiu nunca mais a coisa parou de trepar... Ficou-se com o facto consumado.

João Carlos Graça disse...

Caro Nuno
Caros todos
O interesse do post não está tanto em desencadear uma guerra de lama PS-PSD. Isso equivale a discutir se a culpa do gangsterismo é mais do Al Capone ou do Lucky Luciano...
Ainda vamos talvez ter de assistir a muitos massacres (morais) de São Valentim, antes de chegarmos ao essencial. Que é a norma enunciada acima pelo Jorge Bateira - embora isso sempre tenha sido a norma da esquerda, aquém e além Blair, que aliás nunca foi de esquerda.
Uma observação adicional: estas alterações corresponderam à redução das licenciaturas a 3 anos, isto é, à Bolonhização. Antes as pessoas licenciavam-se em 5 anos e depois é que começavam mestrados. Depois disso passou-se para 4 anos, e depois para 3, de licenciatura fast food (mas super-legítima, claro, dado que o pessoal está manifestamente cada vez mais inteligente, mais culto e mais rápido a absorver informação), complementada por 2 anos extra, agora de mestrado: a pagantes, e a doer (o pagamento, digo, não tanto o estudo, dado que "o pessoal está manifestamente...").
Mas, como o mercado de trabalho está mau, está péssimo, os paizinhos, coitados, lá aceitam pagar aos filhos os 2 anos de mestrado, e vai de derreter algumas poupanças acumuladas nos anos das "vacas gordas" (esperançados, coitados, em dar aos filhotes "uma enxada" melhorzita), o que evidentemente é super-porreiro, pá, para as receitas próprias das universidades, e tem constituído um paliativo muito importante para estas.
Todavia, este mercado muito particular, aliás marcadamente "contraciclo", tem um horizonte de vida previsível assim para o curto, não acham?
E é um bocadichito a modos que especulativo, não é?
Ou seja, e como diria alguém famoso, é um bocado "venda de gato por lebre", pelo menos em matéria de "empregabilidade", não é?
Como forma de espremer algo mais da poupança que tinha ficado do lado de certa "classe média" constitui sem dúvida uma operação interessante. Mas terá, como se diz, bons "fundamentais"...

Nuno Serra disse...

Caríssimo João Carlos Graça,
O sublinhado que faz em relação aos efeitos de Bolonha (criação de um segundo ciclo de estudos, a pagantes) é essencial para perceber, de facto, a importância crescente do peso das propinas no financiamento do ensino superior (como o é o aumento do número de alunos a frequentar doutoramento).
O ponto adicional a esse sublinhado é o de assinalar um recuo objectivo das transferências do Estado (e poderia não ser assim, o que - nesse caso - deixaria apenas remanescente a questão da legitimidade para cobrar propinas e do seu uso para reforçar os recursos do ensino superior).
Mas a estratégia foi, de facto, global. E muito bem armadilhada em termos de estratégia argumentativa.
Um abraço,
Nuno