sexta-feira, 24 de junho de 2022

Alguns alertas sobre a transição energética


A democracia energética apresenta-se, assim, como uma alternativa aos sistemas energéticos dominantes. Os protagonistas que encabeçam este movimento priorizam o controlo democrático do sector energético, atribuindo um novo significado à própria noção de energia, que passa a ser entendida como um bem público e um direito universal (e não como uma mercadoria).

A propósito deste post, que tive oportunidade de escrever para o Blogue SHIFT, e na sequência do lançamento do aviso do Fundo Ambiental que prevê a alocação de 30 milhões de euros para o autoconsumo coletivo e as comunidades de energia renovável (CER), deixo alguns alertas relativamente à transição energética em geral, e às CER em particular:

1) Os cientistas sociais, onde se incluem os economistas, têm uma responsabilidade acrescida na análise crítica das transições energéticas, elas próprias plurais e assimétricas, discernindo as suas implicações políticas, económicas, sociais e ambientais em diferentes escalas e geografias. Por conseguinte, quando se fala de transição energética, fala-se, inevitavelmente, de democracia e de justiça, de vencedores e de perdedores. A transição energética será sempre para alguém e para algum propósito, pelo que a economia política das energias renováveis nesta periferia energética deve ser escrutinada.

2) Ao contrário do que nos tem sido vendido pela agenda do neoliberalismo verde, a transição energética não se resume à fiscalidade verde, ao comércio de licenças de carbono, à inovação tecnológica e à alteração dos comportamentos individuais. Sim, é urgente transitar para um sistema energético exclusivamente assente em renováveis e reduzir a dependência energética, mas tal implica, igualmente, repensar o modelo de sociedade e economia que essa energia irá alimentar.

3) O programa de financiamento anunciado pelo Governo, inserido no Plano de Recuperação e Resiliência, destina-se ao fomento da produção de energia elétrica a partir de fontes renováveis em regime de autoconsumo coletivo e de CER, englobando intervenções em edifícios residenciais, da administração pública central e de comércio e serviços. Mediante o cumprimento de critérios apertados de elegibilidade, poderá haver lugar a um reembolso parcial das despesas associadas à execução destes projetos. As CER, a tipologia mais inovadora no contexto português, podem ser constituídas por pessoas singulares ou coletivas (por exemplo, grupos de cidadãos, autarquias locais, ou empresas) e têm a faculdade de produzir, consumir, armazenar, comprar e vender energia renovável.
Assim sendo, a partir do momento em que um agregado familiar, uma empresa, ou um grupo de condóminos se tornam, simultaneamente, consumidores e produtores de energia, passam a ser agentes de mercado, isto é, poderão vender os excedentes que produzem à rede ou estabelecer outro tipo de acordos comerciais para fornecimento de eletricidade renovável. As CER podem simplesmente integrar-se no mercado liberalizado e incorporar a mesma lógica de concorrência e maximização dos lucros das restantes empresas comercializadoras privadas, secundarizando objetivos de cariz ambiental e social.

4) A descentralização da produção de energia renovável através das CER é encarada, pelo Governo português, como uma oportunidade para democratizar o sistema energético, reforçar a participação dos cidadãos na transição, empoderar as comunidades e, de caminho, mitigar a pobreza energética. Contudo, tal como ilustrado por este programa de financiamento, as CER, na sua arquitetura atual, são excludentes à partida. Para além de concederem um pretexto para delegar a responsabilidade da transição energética nos indivíduos, minimizando o papel do Estado na provisão de serviços públicos, permanecem quase exclusivamente dependentes de financiamento privado, o que dificultará a sua disseminação e a participação de agregados familiares e de empresas que não tenham meios para investir.
Ao contrário da tarifa social de energia, que alivia, ainda que de forma muito insuficiente, a fatura energética dos agregados familiares com menores rendimentos, este tipo de medida exclui, precisamente, essa fatia da população, ou seja, quem não é proprietário da sua habitação, não tem disponibilidade financeira para fazer o investimento inicial em sistemas de produção de energia elétrica (painéis fotovoltaicos, por exemplo) e/ou não dispõe de literacia energética e digital para formalizar uma candidatura. Este tipo de programa, por mais benigno que seja o seu propósito, jamais substituirá políticas robustas de habitação e de renovação dos edifícios, o que requer, necessariamente, investimento público. Sem reembolsos, sem contrapartidas.

5) Num mercado liberalizado, as CER poderão ser facilmente cooptadas e/ou esmagadas por empresas cada vez mais atraídas e especializadas neste nicho de mercado (veja-se o caso da Energia Unida, um spin-off da Greenvolt). Estas empresas oferecem soluções chave na mão, garantindo os seus lucros e desvirtuando totalmente a ideia de comunidade e de organização coletiva na transição energética. Relembremos, ainda, o quão apelativas as CER se estão a tornar para condomínios e empreendimentos turísticos de luxo (como aqui se referiu), sempre em nome do turismo sustentável (mas só acessível às classes possidentes nacionais e internacionais). Aguardemos a nova moda do pornoriquismo energético.

6) Pese embora as suas limitações, num cenário de remunicipalização das redes de distribuição de energia elétrica em baixa tensão, as CER de iniciativa autárquica, envolvendo entidades públicas e privadas, PMEs e agregados familiares, poderão contribuir para mitigar a pobreza energética, desde que enquadradas em políticas mais amplas de habitação pública e renovação dos edifícios. As autarquias poderão desempenhar um papel fundamental na sinalização de agregados familiares fustigados pela pobreza energética, assim como facilitar e mediar eventuais processos de realojamento temporário ou permanente.
Estes programas não devem ser confundidos com atos de caridade ou de beneficência e, sobretudo, não devem redundar em expulsões, expropriações ou aumentos de rendas. Daí a importância de políticas universais e não de programas de financiamento que apenas reembolsam os proprietários e senhorios.

7) A descentralização da produção de energia renovável, por si só, não é sinónimo de democratização. O controlo democrático dos principais centros electroprodutores e das infraestruturas de transporte e distribuição de energia elétrica renovável implica propriedade pública. Não obstante, a centralização excessiva da produção de energia renovável não é desejável, especialmente se pensarmos nas centrais fotovoltaicas, cujo potencial de expansão no território português é bastante significativo.
Já se verificam, aliás, controvérsias em torno da instalação de mega centrais fotovoltaicas, designadamente no Alentejo (veja-se, por exemplo, os casos do Cercal ou da Amareleja), em que empresas privadas estrangeiras, controladas por fundos abutres, começam a ocupar os terrenos mais propícios à implementação das suas centrais, colhendo os lucros da transição energética. Não nos esqueçamos que a geração de energia, designadamente a solar fotovoltaica, compete com outros usos do solo e atividades económicas. As populações locais são ignoradas e enganadas, às vezes aliciadas e cooptadas, gerando-se conflitos e divisões no seio das comunidades (o mesmo está a acontecer com os projetos de mineração de lítio no Norte do país). No fim, é fácil adivinhar quem beneficia de tudo isto.
A conjugação apropriada entre produção centralizada e descentralizada não é de fácil resolução, até porque está estreitamente articulada com o modelo económico que essa energia irá fomentar. Por mais que se transite para um sistema completamente renovável, as necessidades energéticas de uma economia capitalista avançada continuarão a ser irreconciliáveis com os limites biogeofísicos do planeta. Os sistemas energéticos, baseados no extrativismo e na exploração de combustíveis fósseis, têm alimentado um sistema económico cuja sobrevivência e perpetuação dependem da acumulação contínua de riqueza e lucro, o que, por seu turno, resulta no inevitável agravamento da crise ecológica. Os sistemas energéticos do presente e do futuro deverão, por isso, estar subordinados a um planeamento político cuidadoso (por exemplo, que atividades económicas devem ser expandidas, reduzidas ou suprimidas?) e, obviamente, democrático.

A rejeição e superação do capitalismo começa à escala nacional, mais concretamente, na recuperação do controlo de setores estratégicos – a energia é, certamente, o ponto de partida.

4 comentários:

João Garra disse...

Isto é reflexo dos instrumentos de política climática que têm sido implementados pelo governo PS. Uma Lei de Bases do Clima (aprovada pela Direita e pelo BE?!, voto contra do IL e abstenção do PCP?!) que privilegia os mercados, que pouco fala sobre o reforço dos transportes públicos, pelo contrário reforça o transporte individual incentivando a compra de carros eléctricos e híbridos (que só as elites têm acesso) - Deve ser para justificar as negociatas do Matos Fernandes e do Galamba com os Grupos Económicos de Prospeção e Extração de Lítio. Um Roteiro de Neutralidade Carbónica que não fala objetivamente sobre uma transição justa e democrática, mas que atribui um papel central ao setor privado na transição energética. Há, portanto, um enquadramento político perfeito para o greenwashing que certamente os entusiastas do empreendedorismo irão esmiuçar para obterem financiamento do Estado (via PRR e outros fundos), tal como foi bem explicado neste post.

Anónimo disse...

A transição energética necessária é a que permite igualdade no acesso à energia mas o que se anda a promover é a estigmatização e a expropriação dos que têm menos.

Anónimo disse...

Ao que chegamos:
Borrell visita Teerão em busca de petróleo iraniano para a União Europeia.
Em entrevista à Cadena SER, o político espanhol salientou que, em caso de reativação do acordo, os iranianos "poderiam ter muito mais recursos com a venda de seu petróleo, pois poderão ter participação plena na a exportação, e também seria bom para o mundo ocidental e para os europeus".

Mas, claro, depende da aceitação do patrão americano:
O alto representante de Bruxelas reconheceu que não teve nenhuma garantia dos Estados Unidos ao realizar sua viagem a Teerão, mas assegurou que o restabelecimento do acordo permitirá que os iranianos voltem aos mercados internacionais e vendam o petróleo.

https://actualidad.rt.com/actualidad/433799-borrell-visita-teheran-petroleo-europa


Anónimo disse...

SANÇÕES À RÚSSIA? Bloomberg " Os fluxos de petróleo russo para a Europa começaram a aumentar silenciosamente"" ... DESTINO: Itália, Turquia, Holanda, Roménia, Bulgária..e... Açores.....
para além da China e Índia que o vende depois aos Staites...
https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-06-20/russian-oil-flows-to-europe-have-quietly-started-creeping-up?fbclid=IwAR1bT5BGojgSvVdaoH8A3fvv1pH1OXk-r2BrMkyDNDrmzewyQb1ISF_N5AQ