sábado, 30 de outubro de 2021

Política económica em tempo de pandemia à esquerda? Não exactamente

Na discussão da proposta de Orçamento do Estado para 2022, elaborada pelo Governo e rejeitada pelos partidos da oposição, no meu modo de ver, há muita espuma a passar por mar.  Para contrariar esse caminho, sendo necessário olhar o atual cenário macroeconómico, também não pode deixar de se analisar a resposta do Governo no contexto mais geral da resposta à crise, que se iniciou no ano passado. É esse o propósito destas linhas que, de resto, complementam o que já foi dito aqui.

De acordo com o Fundo Monetário Internacional, contabilizando o período que medeia Janeiro de 2020 e Junho de 2021, nas economias avançadas, o conjunto da despesa orçamental adicional e das receitas renunciadas (ambas as componentes, concretizadas ou assumidas), acrescendo à despesa gerada por estabilizadores automáticos, mas distinta desta, representava, em média, um esforço orçamental discricionário de 17,3% do PIB de 2020; um esforço que nas economias emergentes se ficou pelos 4,1% e nos países pobres por 2%.


No que a Portugal diz respeito, a despesa pública adicional em apreço, representou 5,6% do PIB de 2020, ou seja, uma despesa que representa pouco mais de metade da média mundial (9,7%) e um terço daquela realizada pelas economias avançadas, em que nos integramos, tendo ficado o nosso país, neste capítulo, mais próximo dos países pobres, ou das economias emergentes.

Repare-se que, do conjunto das 38 economias consideradas avançadas pelo FMI, só seis (Suécia, Eslováquia, Luxemburgo, Finlândia, Dinamarca e Coreia do Sul), investiram menos que Portugal nesta rubrica de despesa adicional e receitas renunciadas.

Esta supostamente prudente política orçamental terá os custos que as previsões da OCDE, concretizando-se, já enunciam: se, contando a partir do pico da queda (segundo trimestre de 2020), a economia mundial tomada como um todo necessitará de 12 meses para recuperar da perda incorrida, em Portugal este período será de 27 meses.

Não menos importante: trinta meses depois do pico da queda, no fim de 2022, portanto, o PIB real mundial estará 7% maior, o dos EUA 6%, o da zona euro uns medíocres 2% e Portugal, ainda pior, 1%.


Recordemos que a União Europeia, que durante e após a crise da zona euro tinha sido o epítome da austeridade, quando teve necessidade de fazer face à crise provocada pelo coronavírus, estava ainda atolada na memória acrimoniosa do doloroso ajustamento da irlanda e dos países da sua periferia sul.

No entanto, sendo verdade que, se no início de 2020, o enviesado princípio geral a que continuavam submetidas as finanças públicas nacionais era o do equilíbrio orçamental permanente, também não o é menos que, ainda antes do confinamento das economias europeias, o BCE, ao contrário do que aconteceu até 2012, obrigado pela necessidade de proteger a integridade da zona euro, já mantinha, sobretudo a partir de 2015, uma presença decisiva no mercado de obrigações soberanas, determinando taxas de juro, assegurando a sustentabilidade das diversas dívidas nacionais e permitindo assim algum alívio nas políticas orçamentais.

Contudo, se o imbricado quadro europeu acima descrito não impediu uma resposta orçamental à crise, este acabou por determinar, pelo menos em grande medida, a preponderância das garantias e dos empréstimos, ou seja, das medidas de suporte à liquidez, em detrimento de medidas de política orçamental que criam imediata e irreversivelmente despesa pública adicional, que conta para o défice e para a dívida, mas tem maior capacidade de deter a curto prazo a queda das economias.

Repare-se que, no período que temos vindo a tratar, se aquela componente de suporte à liquidez representa nos EUA apenas 9% do conjunto das medidas orçamentais discricionárias, na Itália, na Alemanha, na Espanha e em Portugal, por exemplo, aquela componente representa, respetivamente 76%, 67%, 65% e 50%.

Sobretudo no que à periferia sul da UE diz respeito, do meu ponto de vista, para além da disfuncionalidade sistémica da zona euro, duas circunstâncias em particular ajudam a explicar as diferentes opções, acima referidas, assumidas nos dois lados do Atlântico.

A primeira delas é a insuficiência de fundos disponibilizados a nível supranacional que caracteriza a resposta orçamental da UE. Recorde-se que as transferências orçamentais não reembolsáveis disponibilizadas aos Estados-membros , os fundos a que, desajustada e propagandisticamente, a opinião esmagadoramente publicada tem chamado “bazuca”, quantificadas em percentagem do PIB da UE em 2019, representam apenas 0,92% em 2021 e 2022 e 0,56% em 2023 e 2024. No que a Portugal diz respeito, a parte daqueles fundos que nos calhou em sorte, significa que o país receberá durante quatro anos, de 2021 a 2024, um valor igual a 1,83% do seu PIB de 2019 a utilizar com aprovação prévia da UE e sujeito à condicionalidade da adesão a objetivos de política económica conformes com a ideia de reforma económica que as instituições europeias têm para a periferia, ou seja, o ideário neoliberal.

A segunda resulta das orientações de política que de forma mais ou menos encapotada a UE foi produzindo. De facto, embora as regras orçamentais que limitam o nível de défice e de dívida tivessem sido suspensas, as instituições que, efetivamente, importam na UE e na zona Euro, desincentivaram, para dizer o mínimo, qualquer hipotético ativismo orçamental que os países da periferia sul pudessem ter a veleidade de equacionar.

A título de exemplo, entre muitos outros possíveis, recordemos que apenas em Novembro de 2020 a Comissão Europeia confirmou que a suspensão das regras orçamentais se mantinha em 2021, tendo a decisão de estender aquela suspensão ao ano de 2022 ficado para a uma avaliação a ter lugar na primavera seguinte. Um quadro de permanente incerteza que, seguramente, não incentiva governos indisponíveis para questionar as falidas regras do mal chamado Pacto de Estabilidade e Crescimento a realizar a necessária despesa.

Mas, perguntar-se-á, pese embora a circunstância acima, se os Estados da zona Euro, embora não podendo financiar-se diretamente no BCE, não enfrentam problemas de liquidez porque podem ali financiar-se indiretamente, e se os juros estão tão baixos, por que razão não prosseguiram uma política orçamental expansionista, capaz de suportar a economia neste período de crise económica e social sem precedentes, como foi recomendado pelas organizações internacionais e economistas convencionais, as mesmas insuspeitas entidades e economistas que na crise anterior advogavam a austeridade?

No que aos países mais envidados da preferia da zona Euro diz respeito, na minha perspectiva, a explicação reside, em larga medida, no facto de Estados monetariamente não soberanos, por desenho institucional, incapazes de impor a sua vontade ao seu banco central e, por escolha política, sem o desejo de romper com a ficção da sua independência, terem um receio fundado que a história se repita, e que, uma vez ultrapassada a crise de saúde pública, o BCE, estatuariamente obrigado ao objetivo da estabilidade dos preços e desobrigado de quaisquer objetivos para o nível de emprego, os deixe novamente expostos aos ataques especulativos dos mercados.

Repare-se que, para além daquela parte dos discursos que tem feito as manchetes, que anunciam a emergência de um alegadamente novo consenso económico e onde sobressaem os alertas para os limites da política monetária e a apologia de políticas orçamentais expansionistas, prestando o mínimo de atenção não é possível deixar de tropeçar em toda a espécie de avisos de sinal contrário.

Atente-se, por exemplo, no mais recente relatório publicado pelo BCE sobre o cenário macroeconómico da zona euro. Por um lado, analisando as propostas orçamentais dos países pertencentes à moeda única, este relatório conclui que a consolidação orçamental pode “exacerbar a atual situação económica”; contudo, por outro lado, não deixa de avisar que “níveis de dívida mais elevados implicam que os governos estão mais expostos a um aperto abrupto das condições de financiamento”. Para bom entendedor, meia palavra bastaria. E, contudo, o que temos não são só meias palavras, mas também avisos explícitos.

A título de exemplo do que acima afirmo, considere-se o relatório do BCE de Maio de 2020. Por exemplo, quando ali se afirma que a "pandemia representa um desafio a médio prazo para a sustentabilidade das finanças públicas"; ou, quando prevendo que a dívida pública se aproxime dos 200 por cento do PIB na Grécia, dos 160 por cento na Itália e dos 130 por cento em Portugal e de pouco menos de 120 por cento em França e Espanha, afirma: "O aumento associado dos níveis da dívida pública poderá também desencadear uma reavaliação do risco soberano pelos participantes no mercado e reacender as pressões sobre os soberanos mais vulneráveis".

Repare-se também que esta posição do BCE é assumida já depois das declarações incendiárias de Lagarde de Março anterior, declarações estas que obrigaram a instituição monetária a vir a público jurar que não está hoje, com Lagarde, menos comprometida com o futuro do Euro do que estava no passado, com Mario Draghi.

Ou seja, se o BCE disse, em Março, que estava “totalmente empenhado em evitar qualquer fragmentação" nos mercados obrigacionistas e, em Maio, que o aumento da dívida pública pode levar os mercados a “uma reavaliação do risco soberano” e a “pressões sobre os soberanos mais vulneráveis”, o que esperar da política orçamental desses soberanos?

Para finalizar, perguntar-me-ão, então e a Grécia? Por um lado, quem decide sabe, como toda a gente, da destruição a que economia grega foi recentemente submetida e da consequente necessidade imperiosa de uma política orçamental expansionista que, na sua ausência, geraria um caos social e político capaz de reacender os velhos antagonismos com a União Europeia e o euro. Por outro lado, a Grécia tem um governo que direita que obedece voluntariamente. Obedece, por exemplo, quando faz o trabalho sujo da União Europeia no que à emigração diz respeito. E por isso a Grécia é premiada e pode o que o resto do sul não pode. Até para o sul não poder generalizar e afirmar a óbvia clivagem que nunca cessa de se aprofundar na União Europeia.

Crise após após crise, fica sempre mais claro: nos constrangimentos do Euro, uma política orçamental de esquerda, ou é impossível, ou uma pequena folga apenas é tolerada se for necessária para impedir a desintegração e o caos, cuidando que aquela não deixa de beneficiar os do costume e que os mecanismos compensatórios que asseguram o consentimento a esta economia política - como, por exemplo, um quadro legal que desequilibra as relações de trabalho e empodera o capital -  não são fragilizados.

E então para o futuro que acelerou e parece ter-se antecipado, o que defender?  A meu ver, formulações pode haver muitas, mas, esta abaixo, económica e precisa, serve bem.

Devemos ser a favor da “disciplina” e do “rigor” orçamentais: de forma disciplinada e rigorosa, a política orçamental deve ser a necessária para garantir o pleno emprego. Nem mais, nem menos. O único equilíbrio que interessa é o externo para não se ficar na dependência de estranhos. Sim, precisamos de muitos e bons instrumentos de política.

* O texto acima é parte de uma análise mais alargada a publicar no próximo número da revista Manifesto.

3 comentários:

Paulo Coimbra disse...

Mensagem para Jaime Santos:

Acerca daquela parte do seu comentário onde afirmava, "Não acredito em déficits eternos que obrigam a crescimento eterno, não acredito numa Magic Money Tree, MMT", a minha resposta é que, acerca do que acredita, ou não acredita, da sua fé, nada devo, ou posso fazer. Fé é fé e aqui trata-se de economia política. Contudo, no plano secular, relativamente à origem do dinheiro, posso repetir o que por aqui tem sido sistematicamente afirmado:

https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2021/10/como-e-criado-o-dinheiro.html

O restante do seu comentário, contudo, foi novamente considerado spam. Como já lhe disse, não lhe publicarei textos de pura propaganda, que não respondem aos argumentos que aqui tento trazer com outros argumentos e antes se limitam ao insulto mais ou menos velado, à profissão de fé do 'não acredito' e à inevitável conclusão que não há alternativa.

Anónimo disse...

Se Portugal foi um dos países da Europa que mais cresceu este ano (segundo?), qual é a validez desse argumento?!
Já agora, se se aumentasse o investimento público para o dobro, como vocês desejariam, onde iriam cortar os quase 5% desse investimento extra? Em défice? É que isto não é só dizer que se aumenta e já está.
Mais. Vocês querem mais investimento em que áreas? Mais rotundas inúteis, estádios de futebol vazios, centros interpretativos às moscas, autoestradas vazias, etc?
Se é para isso, eu prefiro que o dinheiro público seja usado para aumentar salários e não ter que ver uma população empobrecida a viver ao lado de infraestruturas de luxo, inúteis, e que eu acho vergonhosas.

Luís

Anónimo disse...

Caro Paulo Coimbra, discordo quase em absoluto da crítica, a meu ver ignorante, impertinente, desnecessariamente provocadora e, ultimamente, muito repetitiva, do Jaime Santos, mas considero-o um homem inteligente, que costumo ler (ao contrário de outros seus interlocutores, que nunca leio). Não posso pronunciar-me sobre os comentários que apagou, dado que não os conheço, mas, também lhe digo, que me custa a crer que sejam mais ofensivos ou insolentes que muitos dos que têm sido publicados.

Uma grande latitude de tolerância ao comentário e à crítica fica bem a qualquer democrata e enriquece o blog. Além de que as suas respostas a esse contraditório, a que evidentemente não é obrigado a dar troco, permitem conhecer e compreender melhor a sua própria argumentação. Apelo à sua reconsideração.