sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Notas de MMT para uma política orçamental funcional

Em 1930, Keynes escrevia que, relativamente às questões monetárias, os Estados soberanos reivindicam para si não só a prerrogativa de decidir qual é o dicionário em vigor no seu espaço nacional, mas também a de escrever e reescrever os termos desse dicionário. 


Na mesma linha, em 1947, o economista Abba Lerner, um conhecedor e, em certa medida, continuador de Keynes, afirmava que "o dinheiro é uma criatura do Estado". 

No ano anterior, em 1946, Bearsdley Ruml, ao tempo presidente do Banco da Reserva Federal de Nova Iorque afiançava o seguinte: com o fim do regime monetário conhecido como padrão-ouro e, assim, com o fim da convertibilidade da moeda em ouro, um Estado soberano não necessita nem de mercados financeiros privados, nem de impostos para financiar a sua atividade. 

E, mesmo num cenário em que esse Estado monetariamente soberano decida autoexcluir-se da possibilidade de se financiar diretamente no seu banco central, ainda assim, esse Estado continua a poder aceder àquela fonte de financiamento por via indireta e, no processo, a determinar a taxa de juro em que incorre. 

Isto mesmo é o que explica, em 1947, Marriner Eccles, presidente da Reserva Federal dos EUA entre 1936 e 1948, e um acérrimo opositor da proibição de financiamento direto da Reserva ao Estado Federal, proibição que, nos EUA, depois de vários avanços e recuos durante todo o século XX, apenas se estabilizou em 1981

“(...) se o Tesouro tiver de financiar um défice pesado, o Sistema de Reserva [a Reserva Federal dos EUA] cria condições no mercado monetário para permitir que o empréstimo seja feito, de modo que, de facto, o Sistema de Reserva financia indiretamente o Tesouro através do mercado monetário, e foi assim que as taxas de juro se estabilizaram como estabilizaram durante a guerra, e como terão de continuar a ser [estabilizadas] no futuro. Portanto, é uma ilusão pensar que eliminar ou restringir o privilégio do empréstimo direto [ao Estado] reduz o montante do financiamento do défice. Ou que o mercado controla a taxa de juro.”
 
 

Tudo isto tinha já sido previamente compreendido por Lerner. Em 1943, num artigo dedicado à teoria das finanças públicas, Lerner apresenta uma nova teoria orçamental, que denomina Finanças Funcionais onde afirma: "A ideia central é que a política orçamental do governo, as suas despesas e impostos, a sua contracção e reembolso de empréstimos, a sua emissão de dinheiro novo, e a sua retirada de dinheiro [de circulação], tudo isto deve ser concretizado tendo em vista apenas os resultados destas acções sobre a economia e não de acordo com qualquer doutrina tradicional estabelecida sobre o que é sólido ou infundado". 

Lerner prossegue, delineando os dois princípios fundamentais das suas finanças funcionais, a saber: 

"A primeira responsabilidade financeira do governo (uma vez que ninguém mais pode assumir essa responsabilidade) é manter a taxa total de despesa no país em bens e serviços nem maior nem menor do que aquela que, aos preços actuais, compraria todos os bens que é possível produzir". Ou seja, quando a despesa é demasiado elevada, o governo deve reduzir a despesa e aumentar os impostos; quando a despesa é demasiado baixa, o governo deve aumentar a despesa e baixar os impostos. "Um corolário interessante é que a tributação nunca deve ser feita apenas porque o governo precisa de fazer pagamentos em dinheiro... A tributação só deve ser imposta quando é desejável que os contribuintes tenham menos dinheiro para gastar".

Se o governo não deve utilizar os impostos para "fazer pagamentos em dinheiro", então como é que estes devem ser feitos? De acordo com Lerner, o governo não deve recorrer à contracção de empréstimos para financiar despesa: "A segunda lei das Finanças Funcionais é que o governo só deve pedir dinheiro emprestado se for desejável que o público tenha menos dinheiro e mais obrigações públicas, que estes são os efeitos do Estado pedir emprestado". Ou seja, o objectivo dos impostos e obrigações não é o de financiar despesas, uma vez que cada um serve um objectivo diferente (os impostos diminuem a riqueza financeira privada considerada excessiva enquanto as obrigações não diminuem aquela riqueza, mas removem liquidez de circulação, oferecem ao setor privado uma alternativa ao dinheiro que gera rendimento e tem como efeito abrandar o ritmo do investimento e do consumo). Em vez disso, o Estado deve satisfazer as suas necessidades "imprimindo dinheiro novo" sempre que o primeiro e segundo princípios de finanças funcionais ditarem que nem os impostos nem a venda de obrigações são necessários. Ou seja, a escolha de deixar, ou não, base monetária (reservas) no sistema, ou drená-la através da venda de obrigações, depende do que for necessário à economia no seu conjunto de nível de taxa de juro e é, assim, uma escolha de política monetária e não de política orçamental. 

Em resumo, Lerner argumentou que “[a]s Finanças funcionais rejeitam completamente as doutrinas tradicionais de 'finanças sólidas/sãs' e o princípio de tentar equilibrar o orçamento durante um ano solar ou qualquer outro período arbitrário. Em seu lugar prescrevem: primeiro, o ajustamento da despesa total (por todos na economia, incluindo o Estado) a fim de eliminar tanto o desemprego como a inflação, utilizando a despesa pública quando a despesa total é demasiado baixa e a tributação quando a despesa total é demasiado elevada; em segundo lugar, o ajustamento das quantidades de dinheiro e de obrigações do Tesouro detidas pelo público em geral, através de contracção de empréstimos pelo Estado ou reembolso da dívida pública, a fim de se atingir a taxa de juro que possibilita o nível de investimento desejável; e em terceiro lugar, a impressão, acumulação ou destruição de dinheiro, conforme necessário para levar a cabo as duas primeiras partes do programa.” 

Toda uma visão alternativa da questão orçamental, que hoje recebe cada vez mais atenção. Peter Bofinger, por exemplo, acredita que as regras do Euro deviam ser reformadas tendo em consideração este corpo teórico de amplas e proveitosas aplicações práticas, corpo este que, contemporaneamente, tem como herdeira a corrente económica publicamente conhecida como MMT (Modern Monetary Theory). 

Pessoalmente, há muito que partilho da posição maioritária neste blogue, posição que vê no euro uma fábrica de divergência, uma distopia irreformável. No Euro, sem soberania monetária, a política orçamental que nos é permitida ficará sempre aquém do interesse do país, ou seja, aquém da possibilidade de um orçamento que, contribuindo para o equilíbrio do comércio externo, visa assegurar internamente o pleno emprego e a estabilidade de preços. 

Numa economia monetária de produção enquadrada por um Estado monetariamente soberano e não endividado em moeda estrangeira, as contas públicas não estão sujeitas a restrições financeiras, mas apenas à restrição imposta pela quantidade de recursos reais mobilizáveis. 

Como afirmou, Keynes, “tudo o que podemos fazer, podemos pagar”. O que é o mesmo que afirmar, no léxico do economista institucionalista John Fagg Foster, que "o que é tecnicamente possível também é financeiramente possível". 

Para melhor compreender as razões para os neoliberais se oporem ao entendimento acima e para sacudir o pesado véu que estes impuserem sobre os verdadeiros constrangimentos orçamentais, pode ser muito esclarecedor atender à análise de Grégoire Chamayou em The Ungovernable Society, sobretudo o capítulo 24, dedicado às fontes do liberalismo autoritário. O parágrafo que se segue é tributário desta leitura. 

Para Hayek, a "democracia ilimitada" desliza inexoravelmente para um "Estado totalitário" sendo necessário, por isso, impor-lhe limites. Desta ideia de Hayek de "democracia limitada", ideia que assenta no preconceito reacionário, que data pelo menos da Revolução Francesa, segundo o qual da Democracia resulta necessariamente o governo da ralé, decorre a sua proposta de ordem constitucional, ordem esta, em grande medida incrustada nas instituições que sustentam a zona euro, onde "qualquer intervenção no mercado para corrigir a distribuição de rendimentos se tornará impossível". Friedman, explicita a sua desconfiança na democracia de forma distinta, mas complementar: as “razões pelas quais um orçamento equilibrado é importante são principalmente políticas e não económicas”. E que razões políticas serão estas? No meu entendimento, as mesmas de Hayek, ou seja, a necessidade de preservar a tal ordem espontânea que emerge dos mercados da intervenção legitimada pela deliberação popular. 

Não o esqueçamos: segundo os neoliberais um orçamento quer-se equilibrado por razões políticas, para amputar a Democracia da capacidade de redistribuir. 

De acordo com o Fundo Monetário Internacional, contabilizando o período que medeia Janeiro de 2020 e Junho de 2021, nas economias avançadas, acrescendo à despesa gerada por estabilizadores automáticos, o conjunto da despesa orçamental adicional e das receitas renunciadas efetivamente realizadas, ou assumidas, com a finalidade de combater os efeitos económicos recessivos associados ao confinamento imposto pela pandemia COVID-19, representava em média um esforço orçamental discricionário de 17,3% do PIB de 2020; um esforço que nas economias emergentes se ficou pelos 4,1% e nos países pobres por 2%. 

Comparativamente, submetendo-se à lógica anti-democrática acima referida e à sua teia de falsas impossibilidades, Portugal investiu naquelas medidas 5,6% do PIB de 2020, ou seja uma despesa que representa pouco mais de metade da média mundial (9,7%) e um terço daquela realizada pelas economias avançadas (17,3%), em que nos integramos, tendo ficado o nosso país, neste capítulo, mais próximo dos países pobres (2%) ou das economias emergentes (4,1%). Repara-se que, do conjunto das 38 economias consideradas avançadas pelo FMI, só seis (Suécia, Eslováquia, Luxemburgo, Finlândia, Dinamarca e Coreia do Sul), investiram nesta rúbrica de despesa discricionária adicional e receitas renunciadas menos do que Portugal. 

Esta supostamente prudente política orçamental terá os custos que as previsões da OCDE, concretizando-se, já enunciam: se, contando a partir do pico da queda (segundo trimestre de 2020), a economia mundial tomada como um todo necessitará de 12 meses para recuperar da perda incorrida, em Portugal este período será de 27 meses. Não menos importante: trinta meses depois do pico da queda, o PIB real mundial estará 7% maior, o dos EUA 6%, o da zona euro uns medíocres 2% e Portugal, ainda pior, 1%. 

É esta estagnação anunciada, e não um orçamento fortemente expansionista, como se impunha, que coloca em causa, não só a sustentabilidade da dívida pública (que depende de taxas de crescimento superiores à taxa de juro), mas, também, a viabilidade da protecção social pública e, consequentemente, a coesão social e política do país. 

Repetindo-me, a falácia da necessidade de orçamentos equilibrados, da lógica ‘de onde vem o dinheiro’, e o tabu da independência da política monetária devem dar lugar à ação articulada de tesouros nacionais e bancos centrais mandatados com o duplo objetivo do pleno emprego e da estabilidade de preços. E o Tesouro Público deve, a cada momento, poder decidir se se financia nos mercados financeiros privados ou diretamente no banco central e, assim, se a esse financiamento corresponde, ou não, dívida pública. E os governos devem responder por estas opções em eleições. 

A meu ver, um orçamento que não supera a falácia, não quebra o tabu, é um orçamento que insiste na distópica subordinação da sociedade à economia, que mina a Democracia.
 

8 comentários:

Jose disse...

O saque estatal mais despudorado, é o sonho húmido de quem se dispensa de riscos revolucionários.

José M. Sousa disse...

O Jose exibe orgulhosamente a sua ignorância.

Paulo Coimbra disse...

Está enganado, José. O que defendo, na linha de Lerner e como este explica, aplica-se tanto a economias de mercado como a economias socialistas. Trata-se, por isso, não da indisponibilidade para correr riscos, mas para cometer erros induzidos pela adesão à lenga-lenga neoliberal.

Jaime Santos disse...

O Peter Bofinger também escreveu, em artigo na Social Europe, que a MMT pode ser aplicada por um Estado que dispuser de uma Economia com dimensão suficiente para tal. Referia-se, imagino, ou à Alemanha ou à própria UE.

Não me parece que Portugal, num cenário de saída do Euro e mesmo da UE, já que não existe nos tratados a possibilidade de uma coisa sem a outra (cujas consequências e as medidas para a sua mitigação a Esquerda nunca é capaz de assumir como programa político, até o PCP fala apenas em estudar a saída do Euro) tivesse outro remédio que não depender, como sempre dependeu, do crédito estrangeiro para obter moeda forte, aquela que paga todas aquelas coisas de que não dispomos, ou que não podemos ou sabemos fazer...

Ou seja, estas propostas não fariam mais do que reeditar os ciclos de endividamento e de austeridade e recessão que presenciamos no passado. Eu lembro-me da inflação alta nos anos 80 e com franqueza, não quero voltar para lá.

E, já agora, eu queria um exemplo, um só, de políticas desenvolvimentistas que tenham funcionado nos últimos 40 anos. Não funcionaram no Portugal de Abril (Soares teve que recorrer ao FMI), não funcionaram na França de Mitterrand (que teve que chamar Delors) e nem vale a pena falar dos tristes resultados em países em desenvolvimento. A Venezuela era um país corrupto e desigual antes de Chavéz e hoje é um país corrupto, desigual, falido e violento...

O problema desta crítica ao pensamento neoliberal é que ela recupera a filosofia que ele substituiu, não por malícia de uma Thatcher ou de um Reagan, mas por falência da mesma...

Sinceramente, explique-me, em face destes lindos resultados empíricos, porque deveremos acreditar que tudo isto irá funcionar? Porque é moralmente certo? Lamento, mas isso não chega...

Mas componham um programa político que inclua um regresso à soberania monetária e, como bem disse o autor deste texto, apresentem-se a eleições com ele, porventura depois da Esquerda deixar cair o Governo do PS. Se se diz disponível para correr riscos, pôr as cartas na mesa deve ser logo o primeiro.

Não falem do que deveria ser, expliquem antes como chegar lá... Até o Professor Louçã, no seu livro com Ferreira do Amaral, se revelou incapaz do exercício de imaginação que é explicar como se sai do Euro, assumiu apenas que graças a um qualquer Deus ex Machina, o País tinha saído ou sido empurrado para fora da moeda única.

E a todos os que me disserem que onde há uma vontade há um caminho eu responderei que a razão vence sempre o seu combate contra a vontade. Nem que seja sobre ruínas...

Mas parece que a uma certa Esquerda as ruínas agradam (já vi isso escrito neste espaço onde se dizia que os trabalhadores seriam sempre capazes de reconstruir um novo mundo), está imbuída do espírito daqueles que dizem de que é preciso destruir primeiro para construir a sociedade perfeita depois... Todos sabemos no que isso costuma redundar...

Sim, há alternativas. O que não há é almoços de graça, e o dono do restaurante também não aceita dinheiro impresso que não vale nada para pagar a refeição...

Paulo Coimbra disse...

Jaime Santos,

"Não me parece que Portugal, num cenário de saída do Euro e mesmo da UE [...] tivesse outro remédio que não depender, como sempre dependeu, do crédito estrangeiro para obter moeda forte".

Contrariado, agora tenho de dar-lhe razão.

Num cenário apocalíptico como esse que descreve, aquele em que recuperamos a soberania monetária, recolhi uns números, fiz umas contas e cheguei à conclusão que, calhando, deixávamos de ser credores do estrangeiro num valor de 2,3% do nosso PIB e passávamos dever externamente, tipo, deixa cá ver, especulemos, digamos, sei lá, 107,6%?

É só conferir aqui: https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2021/07/neomercantilismo-alemao-vivo-e-de-boa.html

De facto, se há alternativa, como diz, essa alternativa não pode, de todo em todo, passar por este nível de endividamento externo. Concordamos que seria extremamente irresponsável.

E é isto. No que me diz respeito, é uma alegria estar de acordo com os nossos leitores mais exigentes.

Anónimo disse...

"Para Hayek, a "democracia ilimitada" desliza inexoravelmente para um "Estado totalitário" sendo necessário, por isso, impor-lhe limites"

Quantos dos nossos concidadãos pensam exactamente o mesmo? E quantos não têm coragem de o dizer?

A Economia e a Finança não são a realidade e o bem estar social a desejada utopia, as coisas não são nem podem ser separadas. Portugal é um país amputado, amputado da capacidade de pensar e de ser livre, o marasmo em que vivemos é o resultado de anos e anos de mediocridade, as pessoas querem pouco e parecem querer cada vez menos, já só pensam o que lhes é permitido.


Jose disse...

Paulo, «a lenga-lenga neo-liberal» resolve-se com regulamentos e leis implementadas por serviços públicos honestos e eficientes.

Por cá, tudo se resolve à força de taxas e impostos, que das leis e da implementação de regulamentos, para além de incorporarem baldas sem fim, há que esperar anos de incerteza.
Mas tudo isso, que é o essencial do que seja 'governação', ninguém quer saber; tudo é foguetório de 'direitos e garantias'.

Anónimo disse...

Ah, Ah, Ah, gostei da ironia do comentário das 21:15 de 15 de outubro (que remete para o post de 9 de julho de 2021). A evolução do endividamento externo, um dos mais graves problemas do país, e que em grande medida sintetiza todas as debilidades nacionais, diz tudo. O euro só veio agravar as nossas capacidades e possibilidades de desenvolvimento. Deixou o país mais dependente e, também por isso, ao contrário do que sugere o senso comum do comentador atrevido, mais desprotegido.