quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

De longe os míopes vêm melhor do que ao perto



O New York Times que não é propriamente um caso de visão clara, podendo mesmo ser considerado míope, parece ver de longe o que os nossos míopes não vêm de perto:

Portugal, ao contrário da Grécia, é uma nação devedora que fez tudo o que a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional lhe pediram em troca de um resgate financeiro. E, no entanto, mesmo pela medida mais ampla da capacidade de um país pagar as suas dívidas, Portugal está a fundar-se cada vez mais no buraco”.

É claro que a Grécia não fez tão pouco como o NYT pensa e que em Portugal, se formos a ver, tanto há atrasos e fintas como saltos além tróica. Mas o que importa é o reconhecimento de que, independentemente do nível de cumprimento, o “resgate” nos está a empurrar, tanto gregos como portugueses, para o "buraco".

Desculpem-me os míopes a sério. Mas até dói ver que só agora os míopes de longe vêm isto. E ainda dói mais ver os míopes de perto a andar em frente de olhos fechados.

Solidariedade e sensatez

«Nós não temos uma situação parecida com a da Grécia», assegura Passos Coelho. O importante é evitar os «efeitos de contágio nefastos», adverte Luís Montenegro. «Portugal não é a Grécia», sentencia Paulo Portas, sacudindo a peçonha. «Ninguém faz comparações entre Portugal e a Grécia», diz Miguel Relvas, em meio tom de intimação.

E enquanto as preces são cerzidas umas às outras, para que em uníssono formem uma oração mais poderosa, alguém tenta sondar mais de perto as divindades, para que, caso o exorcismo falhe (não vá o diabo tecê-las), se garanta alguma ajuda lá do alto. A ladaínha, seja como for, não deve parar: «Portugal não é a Grécia, Portugal não é a Grécia, Portugal não é a Grécia».

É no meio deste pânico, em que se crê poder esconjurar o naufrágio renegando o passageiro mais exposto, que alguém com a decência e a lucidez que se impõem lembra o facto de, apesar das diferenças, todos se encontrarem no mesmo barco. De passagem por Lisboa, a ministra irlandesa dos Assuntos Europeus, Lucinda Creighton, sublinha que «seria errado tentarmos demarcar-nos da Grécia ou de outro país que esteja a atravessar dificuldades», invocando assim um dever de solidariedade que decorre, desde logo, da circunstância de os três países estarem nas melhores condições para demonstrar uma «grande compreensão em relação às dificuldades que enfrentam».

E quanto à possibilidade de saída da Grécia da Zona Euro, Creighton é lapidar: «não podemos tolerar essa eventualidade. (...) Temos de ser solidários com a Grécia e mantê-la no euro. Não há alternativa.» À dignidade e sensatez de uma ministra «cautelosamente confiante» contrapõe-se pois o fanatismo medroso dos que se orgulham, irresponsavelmente, de desbravar os mares que ficam «para além da troika».

(A imagem corresponde, como está bem de ver, a mais uma genial criação da Gui Castro Felga).

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

As ambiguidades de quem já vê o barco a afundar


Num artigo no Público do passado domingo ("As novidades da semana"), Paulo Trigo Pereira (PTP) voltou à ladaínha de que "a dívida actual resulta de sucessivos erros do passado" cometidos por governos de maioria absoluta e também por "oposições quando essa maioria não existe." Até parece que o nosso crescimento medíocre, desde que entrámos no euro com uma taxa de câmbio sobrevalorizada, a abertura da UE ao comércio com países de baixos salários, a adesão dos países do Leste, uma política de inovação errada, e as crises internacionais, não tiveram quaisquer efeitos nos défices e na dívida. Num golpe de retórica populista (em sintonia com o ordoliberalismo germânico), lança a culpa da nossa crise sobre políticos capturados pelos interesses de corporações. Para PTP, pouco importa que as ideias de Mancur Olson já tenham sido objecto de crítica académica fundamentada e convincente. De facto, em Portugal há economistas académicos que se sentem realizados ao participarem activamente na propaganda dos media.

No mesmo artigo, PTP também reconheceu que a dívida pública, em percentagem do PIB, já entrou na fase de aceleração. Aliás, ficou surpreendido por o Eurostat ter anunciado que em Setembro de 2011 a dívida já seria de 111%, muito acima da previsão do Ministério das Finanças de 101% do Produto. Diz PTP: "Ou seja, em apenas cinco meses a previsão da dívida aumentou 17.000 milhões, 10% do PIB, e isto não pode ser explicado pelo défice, cujo objectivo nominal foi alcançado. É um desvio de previsão colossal."

Entretanto, não escreve uma linha sobre as razões que explicam este "desvio de previsão". Sabemos que o governo teve de reconhecer dívida adicional, com destaque para a Madeira e o BPN. Mas esperar-se-ia que PTP também reconhecesse que a política económica iniciada em 2011 teve um efeito recessivo, muito acima do esperado pelo governo. Com um denominador em queda, o quociente (Dívida Pública/PIB) disparou. Mas esta explicação ficou omissa no artigo.

É difícil, para um economista do pensamento dominante, assumir com todas as letras que a austeridade não é expansionista, bem pelo contrário. Mas, nem que não seja para conter danos futuros sobre a reputação, lá acabou por assumir que o barco está a afundar. O artigo acaba a reconhecer que, sem crescimento económico, a dívida poderá subir para 125% em 2013. Não sendo possível "voltar aos mercados em 2013 em condições normais", PTP espera que a Alemanha (em linha com a confidência do seu ministro das finanças) se disponha a continuar a financiar Portugal sem medidas adicionais de austeridade e com alguma suavização das condições do pagamento ("a versão moderada de um novo resgate"). Evidentemente, só "depois de mostrar o trabalho de casa feito."

Mas não diz o que é isso do "trabalho de casa" que temos de fazer até meados de 2013. Se estiver a pensar nas reformas estruturais e nas privatizações, devia saber que não há evidência histórica dos efeitos benéficos destas medidas sobre o crescimento económico. Devia ler Ha-Joon Chang e conhecer melhor as políticas desenvolvimentistas dos tigres asiáticos. Se estiver a pensar no cumprimento das metas para o défice acordadas com a troyka, então esqueceu que já tinha reconhecido que a recessão se prolongará pelo menos até 2013. Com o PIB em queda, o peso do défice subirá e o governo será pressionado para tomar medidas de austeridade adicionais na expectativa de se aproximar da meta acordada. Para ser consistente, PTP teria de admitir que a economia portuguesa e europeia não permitirão ao governo fazer figura de bom aluno do ordoliberalismo.

PTP acaba por abrir uma última porta de saída que tem sido tabu nos nossos media: "um perdão parcial da dívida de cerca de 20%. Porque sem crescimento não há saída da crise". Ainda assim, permanece na ambiguidade. Como é que um corte de 20% torna a nossa dívida pública sustentável? Para o discurso ser credível, convinha mostrar as contas num novo artigo, acompanhadas dos pressupostos. Outra pergunta: qual é a fonte do crescimento que faria a economia portuguesa renascer após esse exíguo perdão da dívida? PTP nada diz sobre este ponto crucial.

Para eliminar as ambiguidades da sua posição, era bom que PTP se explicasse melhor.

Dia dos namorados


«não levantarás falso testemunho» (Dt. 5: 1-21)

Como referimos aqui, o reitor da Universidade Católica (UCP) entendeu, recentemente, aconselhar o governo a proceder a um «corajoso aumento das propinas para o nível de custo real», argumentando que não se podia empurrar «para as costas do Estado a obrigação quase exclusiva de financiar a universidade». O discurso em que se insere esta proposta contém todavia outras passagens, que também merecem destaque.

Segundo Braga da Cruz «o Estado não pode continuar a discriminar os estudantes portugueses que escolhem universidades privadas» e que por isso não têm direito a bolsas, criticando que esse apoio «seja negado a portugueses, por não frequentarem o ensino não estatal, para ser dado a estudantes estrangeiros, apenas por frequentarem universidades estatais». Nada mais falso: não só o Estado concede bolsas a cerca de 60% dos alunos do ensino superior privado que a elas se candidatam (70% no caso do ensino superior público), como a despesa média anual por bolseiro é mais elevada (uma diferença de cerca de 400€ em 2008, o último ano com informação disponível).

Mas o reitor da Católica sugere ainda que a alteração do actual modelo de financiamento do ensino superior assente no alargamento do «sistema de bolsas de mérito ao ensino não estatal, que permite aos melhores alunos optar livremente pelas instituições onde pretendem estudar». Ora, sucede que a dita «liberdade de escolha» da instituição que um aluno pretende frequentar é algo que caracteriza desde sempre o acesso ao ensino superior, acrescendo o facto de as bolsas de mérito atribuídas pela DGES (e de que a UCP já usufrui) terem a singular característica de beneficiar «estudantes com aproveitamento excepcional, independentemente dos seus rendimentos» (sublinhado meu). O alargamento destas bolsas de mérito permitiria portanto suportar, às custas do Estado, as práticas de aliciamento dos melhores alunos (independentemente da sua condição sócio-económica), que a UCP leva legitimamente a cabo e que explicam, em larga medida, os bons resultados desta instituição, que não deixa por mãos alheias a selecção da «créme de la créme».

Torna-se portanto clara a verdadeira pretensão do reitor da Universidade Católica: reforçar, por um lado, a tranferência de fundos públicos para o ensino privado em geral e para a sua instituição em particular e, por outro, pressionar no sentido da mercadorização total do ensino superior público (com a referida elevação do valor das propinas para o custo real), de modo a evitar a «concorrência desleal» que implicitamente se infere das palavras de Braga da Cruz. Tudo isto num contexto de aumento do número de alunos que desistem da frequência do ensino superior e em que o financiamento público da acção social sofre cortes violentos (que a tutela tentou, aliás, justificar através de uma manobra infantil de ilusionismo orçamental). O que revela bem como os interesses privados da educação não têm qualquer pudor em surfar as ondas de choque da austeridade.

Um apelo da Grécia



Apelamos às forces e aos indivíduos que partilham estas ideias, para convergirem numa ampla frente de acção Europeia, o mais cedo possível…” (Mikis Theodorakis e Manolis Glezos).

Do Reino Unido Tony Benn e outros responderam.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

É cada vez mais urgente desarmar os mercados

Em 1997, o nosso jornal popularizou a ideia de uma taxa sobre as transacções financeiras [num editorial de Ignacio Ramonet]. Nessa altura, estas correspondiam a quinze vezes a produção anual mundial. Actualmente, correspondem a quase setenta vezes essa produção. Há quinze anos, não se falava de créditos subprime e ninguém imaginava uma crise da dívida soberana na Europa. A maior parte dos socialistas europeus, enfeitiçados pelo primeiro-ministro britânico Tony Blair, só falava em «inovação financeira». Nos Estados Unidos, o presidente Bill Clinton preparava-se para encorajar os bancos de depósitos a especular com o dinheiro dos clientes. E Nicolas Sarkozy mostrava-se seduzidíssimo pelo modelo norte-americano e sonhava com créditos subprime à francesa...

Um editorial de Serge Halimi, Depois de Tobin, a não perder.

Pieguices

Recupero um trabalho de Ana Rita Faria num Público da semana passada: “As sucessivas dietas de austeridade, o desemprego-recorde e a recessão económica estão a fazer com que cada vez mais famílias deixem de conseguir cumprir com as suas obrigações financeiras. No ano passado, entraram em incumprimento mais 34.600 famílias - o equivalente a 95 novos casos por dia. O total de devedores particulares com crédito vencido supera o meio milhão de pessoas e nem os empréstimos à habitação escaparam à onda de incumprimentos. Um sinal de que a crise está a atingir em força os portugueses.” Hoje é Raquel Correia, também no Público, que nos informa que os pedidos de ajuda de famílias sobreendividadas à DECO quase duplicaram em Janeiro de 2012, face a ao mesmo mês de 2011.

Desculpem estar a maçar-vos com estas pieguices familiares num país com taxas de incumprimento de crédito das mais baixas a nível europeu até à crise, mas sempre aproveito para repetir o óbvio: os moralistas imorais, os que apelam à poupança ao mesmo tempo que cortam rendimentos, esquecem-se que o Estado não se pode comportar como uma família, cortando despesas em épocas de crise, sem onerar as famílias realmente existentes através da deterioração dos serviços públicos e da protecção social, do desemprego, da quebra de rendimentos e, claro, da insolvência. A austeridade é uma máquina de destruição da família por esse país fora. Isto e um quadro legal que atribui demasiados direitos aos credores e obrigações aos devedores geram o verdadeiro risco moral. O silêncio da direita, que tem sempre os “valores da família” na ponta da língua, é ensurdecedor.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Somos todos gregos

A austeridade da troika destrói literalmente a saúde dos gregos, uma crise humanitária que se regista sempre que privatização, destruição dos serviços públicos de saúde e aprofundamento da injustiça social se combinam. O desemprego triplica em três anos, atingindo mais de 20%, com o sector público contribuir com cada vez força para este problema. A fome e a desnutrição infantil regressam. Exige-se um corte de mais de 20% no salário mínimo, o que só aumentará a pobreza laboral e deprimirá ainda mais a procura. Destrói-se a contratação colectiva e garantem-se anos a fio de perda generalizada do poder de compra.

Para uma certa opinião tudo isto, que é o que importa, são danos colaterais, porque os interesses dos credores devem ter sempre prioridade na definição das políticas, custe o que custar. Tem a palavra a jornalista Eva Gaspar do Negócios: “Nesta fase do drama grego, dar estatuto prioritário aos credores não é roubar mais soberania da Grécia. É pedir mais responsabilidade a quem a vai governando. É pôr as coisas em pratos mais limpos.” A combinação de incompetência e de ideologia produz resultados desatrosos. Ponham antes os olhos nesse farol da esquerda que é o Financial Times e em Wolfgang Munchau, que ocupa aí o lugar que Eva Gaspar ocupa no Negócios, comentando questões europeias. Um mundo de diferença: a austeridade europeia é um fracasso total, o incumprimento é inevitável e depois dele o fundo de resgate tem de ser aumentado e usado para reconstruir a economia dentro do euro, caso contrário a saída da Grécia da Zona Euro tornar-se-á politicamente inevitável. E, claro, diz Munchau, Portugal está na mesma desoladora situação.

Enfim, saímos dos limites fixados pelos jornais económicos e leiamos um excelente artigo de Stathis Kouvelakis na New Left Review sobre a crise do capitalismo na Grécia e sobre os impasses estratégicos da esquerda grega. A esquerda grega que não alinha com o PASOK, com mais de 40% dos votos nas intenções de voto, está destinada a desempenhar um papel cada vez mais importante. A Grécia ainda pode mostrar o caminho ao resto da Europa. Haja esperança.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Lucidez

O editorial da Sandra Monteiro, no Le Monde Diplomatique deste mês, é obrigatório. Em dia de uma das maiores manifestações em Portugal, vale a pena reflectir sobre como o espaço mediático está dominado pelo pensamento único.

A versão portuguesa do Le Monde Diplomatique é um pólo de resistência intelectual único no nosso país para quem quer pensar o mundo e o país para além da espuma do telejornal. O número deste mês é, como se diz em "estrangeiro", "alimento para a reflexão".

As origens monetárias da pós-democracia

Esta semana ficámos a saber que os empréstimos do BCE, com prazos cada vez mais longos e taxas de juro cada vez mais baixas, à banca nacional totalizam cerca de 47 mil milhões de euros, mais 13% do que no mesmo período de 2011. Para além disso, o colateral que um BCE com cada vez mais dívida pública periférica em carteira aceita, como contrapartida dos empréstimos à banca, é cada vez mais duvidoso. O economista Paul De Grauwe, uma das referências convencionais dos estudos sobre economia da integração monetária europeia, contrasta, em artigo no Expresso da semana passada, esta generosidade do BCE para com os bancos com a sua atitude face aos Estados: “O BCE está na verdade a dizer à banca: tomem lá este dinheiro; não fazemos perguntas”.

Por sua vez, os Estados sem soberania monetária estão entalados entre as forças desestabilizadoras da especulação, cujos principais mecanismos De Grauwe identificou em artigo académico, e intervenções do BCE, mas apenas no mercado secundário, ou empréstimos da troika com demasiadas perguntas e exigências contraproducentes. Esta diferença de tratamento foi ainda esta semana confirmada por Draghi, que recorre a todos os truques para evitar o que considera ser um pecaminoso financiamento directo a um Estado. Esta diferença está inscrita nos tratados, na ideologia do euro e do banco central “independente” do poder de que deve sempre depender, o democrático.

Este arranjo exprime a total captura do BCE e de todas as operações monetárias pelos interesses do capital financeiro, de que fala Joseph Stiglitz. É isto que está na base do que De Grauwe também denuncia: os mesmos bancos irresponsáveis que geraram a crise podem determinar o essencial da política económica, dificultando qualquer estabilização. Os termos de uma recapitalização indispensável e a transferência de custos para o público também aí estão para nos indicar que vivemos mesmo num regime fundado no comando do capital financeiro.

Quem furtou a moeda à soberania democrática sabia bem o que estava a fazer. Um tal de Vítor Gaspar foi dos que esteve em Maastricht, onde tudo se trancou, a “negociar” em nome de Cavaco. Faz agora vinte anos. Quem é que ainda quer celebrar o nascimento da pós-democracia?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Amanhã enchemos o Terreiro do Paço

Os "mercados financeiros"

Com toda a turbulência em torno da crise do euro, as notícias acerca da manipulação das taxas de juro inter-bancárias de referência têm passado por debaixo do radar. Estas taxas (Euribor, Libor, Tibor, etc...) são referência para um conjunto imenso de activos financeiros. No caso da Libor (a taxa britânica) estima-se que 350 biliões de dólares de activos estejam indexados. As famílias portuguesas também conhecem esta realidade pois os seus empréstimos à habitação estão normalmente indexados à Euribor.

Estas taxas são calculadas através de uma média ponderada do que é reportado pelos principais bancos de cada praça financeira. Ora, aparentemente, seis grandes bancos (UBS, JPMorgan,Citigroup, Barclays, Deustche Bank, RBS e ICAP) articularam-se para manipular os valores de referência em seu proveito. Dois aspectos impressionam nesta história. O primeiro está na forma como uma mão-cheia de instituições consegue manipular os preços, mostrando assim como a ideia de mercados competitivos não passa de uma ficção dos manuais de economia. O segundo diz respeito ao facto destas operações, algumas delas de 2008, terem passado ao lado dos reguladores públicos. Não tivesse havido uma denúncia e nada se descobriria.

Nos passos da Grécia


Com eleições dentro de dois meses, os partidos que apoiam o governo grego estão encurralados. Para evitar a bancarrota já em Março, aceitam as condições que lhes são impostas. Mas sabem que o acordo é rejeitado pela população e que serão penalizados nas eleições. As sondagens apontam para uma pesadíssima derrota dos socialistas e uma vitória magra da direita. Porém, falta saber até que ponto a fúria dos eleitores é (ou não) canalizada para uma votação nos partidos da esquerda do protesto a um nível tal que ponha em causa a estabilidade do apoio parlamentar de que o novo governo precisa. Em breve os gregos vão ter a última palavra: suportam o aprofundamento do desastre sem fim à vista ou vencem o medo de deixar o euro. E veremos se os partidos que se batem contra a austeridade estarão à altura do drama que o seu país vive.

O drama da Grécia diz-nos respeito. Por muita propaganda que o governo faça, a verdade é que, no essencial, Portugal também é a Grécia. No comentário que passa nas televisões já se admite que Portugal vai ter de recorrer a novo financiamento em 2013. A razão invocada é quase sempre o efeito de contágio da situação grega. Quer dizer, os mercados financeiros teriam deixado de acreditar que a Grécia é caso único e passaram a incorporar nos preços das suas transacções um futuro corte nos seus créditos. Mas a questão é muito mais complexa.

Por muito que os economistas da ortodoxia ocultem o fundo da questão quando chamados a comentar nas televisões, a verdade é que a falta de competitividade da economia portuguesa no seio da zona euro, a política recessiva entretanto imposta e a consequente dinâmica da dívida pública, no seu conjunto, criaram um problema que não é resolúvel com sucessivas injecções de liquidez. Portugal tem um problema de insolvência (pública e privada) de que só sairá com uma restruturação drástica da dívida pública e dos seus bancos, acompanhada de uma estratégia de desenvolvimento económico que não é compatível com a integração numa zona monetária liderada pela Alemanha. O afundamento da nossa economia ao longo do corrente ano vai tornar claro que um novo pacote de financiamento, mesmo sem as condições cruéis que agora foram impostas à Grécia, apenas permitirá reciclar dívida velha e financiar o défice, mantendo-se o país na depressão. Entretanto, as ditas reformas estruturais vão passar ao lado do problema, ou vão mesmo agravá-lo produzindo retracção do consumo e aumento do desemprego.

Quando o fracasso da estratégia de empobrecimento tiver sido assimilado pela maioria dos portugueses, e com a aproximação das negociações para o segundo pacote financeiro, em 2013, não faltarão vozes a clamar por um governo de salvação nacional com o apoio do Partido Socialista. Para a Alemanha, esse apoio seria uma garantia adicional de que a reengenharia ordoliberal do país seria de difícil reversão. Que o país fique arrasado social, económica e financeiramente e que grande parte da população jovem tenha de emigrar, isso é coisa que não preocupa a Alemanha. Tal como na Grécia, haverá sempre alguém em Bruxelas ou Berlim para nos lembrar que a saída do euro é a alternativa para quem não aceita a punição. O pior é que os partidos da esquerda portuguesa continuam tolhidos por uma dupla ilusão: com eleições em França, e com a luta social na Europa, haverá condições para uma reforma da UE que crie um “euro bom”; com transferências orçamentais da Europa rica, no quadro de uma outra União, Portugal teria condições para se desenvolver. Enquanto estas ilusões se mantiverem, não haverá luz ao fundo do túnel para os portugueses. Pela simples razão de que não será possível construir uma solução política alternativa, portadora de regeneração e de esperança. Algo de que os gregos, aliás, também carecem.

(Artigo no jornal i de ontem)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

É uma injustiça


Quando o bom aluno tem negativa, a culpa nunca é do professor. O mais certo é o bom aluno ser acusado de ter andado a copiar o tempo todo e ser mandado para a fila dos cábulas.

Os dedinhos apontados a Portugal nos últimos dias são prenuncio do fim das carícias aos bem comportados. Nas últimas semanas, a mensagem nos jornais de todo o mundo tem sido: Portugal prepara-te és o próximo a abater de vez. A isto junta-se agora o dedinho espetado dos professores: olha pra Madeira, olha pra eles a vender a outros o que devia ser pra nós.

Na realidade, trata-se de preparar a opinião pública para o que se vai tornar claro nos próximos meses: com o aprofundamento da recessão as receitas fiscais não crescerão como previsto, podendo mesmo afundar-se, apesar do aumento das taxas de imposto. As metas do défice tornar-se-ão inatingíveis aos olhos de todos. Nessa circunstância, de quem vai ser a culpa? Certamente, não dos professores. Adivinho o que vai dizer a troika: aumentaram a carga fiscal mas descuraram as “reformas estruturais” donde iria brotar o crescimento, do que é que estavam à espera? Nessa altura não vale a pena choramingar. É uma injustiça, não é?

Grécia


Há pelo menos um aspecto em que a Grécia não é Portugal. A maioria dos gregos já compreendeu que a austeridade imposta pelos credores não resolve nenhum problema – o défice e a dívida incluídos – e conduz ao colapso, não só económico e social, como do próprio Estado. A Grécia não cumpriu tudo o que lhe era exigido? Cumpriu mais do que se diz, e o que faria, se tivesse cumprido tudo. O que está a ser exigido à Grécia é o suicídio como país. Os gregos dizem basta, e basta é a palavra adequada.

A maioria dos gregos, a acreditar nas sondagens, parece inclinar-se para um “não aos sacrifícios sem sentido”. O “não” neste momento significaria uma moratória unilateral ao serviço da dívida, um Estado a funcionar nos estreitos limites das receitas fiscais, o pouco dinheiro que existe ao serviço das necessidades básicas do povo grego, não dos credores. Isto não implica uma declaração de saída unilateral da Grécia da zona euro ou da UE. À UE caberia descobrir o que fazer nesta eventualidade. Parece-me que a maioria dos gregos tem razão ao preferir a luta digna pela existência, ao suicídio colectivo. O governo e o parlamento gregos, que deixaram já de ser representativos, estão a encenar resistência e protesto. No final irão provavelmente capitular e a Grécia encontrar-se-á de novo à beira da bancarrota dentro de alguns meses só que dessa vez num quadro de colapso social completo.

José M. Castro Caldas, A Grécia aqui tão perto, no Público de hoje.

Alemão, socialista e presidente do Parlamento Europeu

O presidente do Parlamento Europeu, o alemão Martin Schulz, criticou o facto de Portugal estar a pedir investimentos angolanos, considerando que, assim, “o futuro de Portugal é o declínio”.

E pensava eu que o nosso declínio se tinha iniciado com a adesão ao euro, à vista na famosa divergência do PIB por habitante. E agravado dramaticamente com a austeridade que nos foi imposta com os PEC e o Memorando.

Se alguém ainda tem ilusões sobre a saída da crise europeia com uma Alemanha pós-Merkel, em 2013, deveria estar mais atento ao que dizem os dirigentes do SPD e Verdes, de que Schulz é apenas um exemplo menos sofisticado.

O Editorial do Público deu a resposta:

O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, não gostou de ver Passos Coelho a pedir a Angola para investir mais em Portugal. No seu entendimento, Portugal (e a Europa) só poderá esperar "o declínio", se não "compreender" que só haverá futuro "no quadro da União Europeia".

Deixemos de parte a discussão sobre se Schulz tem ou não tem legitimidade para aprovar ou censurar as opções de política externa deste ou daquele país - como deputado europeu é normal que ele diga o que pensa sobre os negócios estrangeiros de qualquer estado-membro.

Concentremo-nos por isso na pertinência das suas críticas. Perguntando, por exemplo, que caminhos tem Portugal para crescer no continente da austeridade em que se transformou a UE? Ou inquirindo sobre que preocupação tem revelado o Governo alemão em expandir o consumo interno (o que aumentaria as suas importações) e ou em equilibrar o seu gigantesco superávite comercial.

O que resulta destas dupla resposta negativa é que o caminho europeu para a saída da crise está congelado. A UE continuará a ser o nosso principal parceiro económico, mas está na hora de realinhar as prioridades estratégicas e regressar a África ou à Ásia. Esta repartição de prioridades pode não ser do agrado da potência que começou a olhar a Europa do Sul como outrora os Estados Unidos olhavam a América Latina: como o quintal das traseiras. Mas só saltando o muro Portugal poderá evitar o triste destino que o mesmo Schulz traçou para a Grécia, quando, na semana passada, lembrou Atenas que "os que dão muito dinheiro para a reabilitação do país terão um papel fundamental nas decisões sobre como ele será usado".

«não cobiçarás» (Dt. 5: 1-21)

Os interesses privados do ensino, nos quais a Igreja Católica pontua com especial relevo, parecem ter sido subitamente ungidos por um sentimento de compaixão relativamente ao esforço financeiro do Estado português para com a educação dos seus cidadãos. Há dois dias, ouvimos o clamor de Rodrigo Queiroz e Melo, director executivo da AEEPC, sobre o «aumento substancial dos custos públicos» que poderá advir da fuga de alunos de colégios e escolas privadas, suscitada pelas crescentes dificuldades dos pais em pagar as mensalidades destas instituições.

Na semana passada, tinha sido a vez de o Reitor da Universidade Católica, Manuel Braga da Cruz, dizer que «a sociedade, as empresas, as famílias e os estudantes têm responsabilidades inalienáveis», não podendo empurrar «para as costas do Estado a obrigação quase exclusiva de financiar a universidade». Traduzindo por miúdos, Braga da Cruz defendeu, nos 45 anos da Universidade Católica, «um corajoso aumento das propinas para o nível de custo real» (como fez recentemente o Reino Unido), ao mesmo tempo que reivindicava uma alteração da lei de financiamento do ensino superior, por forma a permitir o «alargamento de um sistema de bolsas de mérito ao ensino não estatal», possibilitando assim «aos melhores alunos optar livremente pelas instituições onde pretendem estudar».

Estes testemunhos revelam, em conjunto, as duas faces do ataque predador dos interesses privados sobre os sistemas públicos de educação: exigindo por um lado a crescente transfega de verbas do Estado para o ensino particular (com o sacrifício, pois claro, do financiamento do ensino público) e procurando - por outro lado - reduzir a esfera da educação pública, ao reivindicar que a mesma se transfigure e abdique dos princípios e objectivos que lhe são intrínsecos (a democratização do ensino), subordinando-se consequentemente às lógicas de mercado (o lucro, o elitismo e a meritocracia, que em regra não é mais do que premiar quem já nasce premiado). Uma coisa torna-se demasiado evidente: seja pela exigência de ajudas directas, seja pela pressão para que o sistema público de educação «encolha», estes falsos arautos do liberalismo e da livre concorrência não conseguem (sobre)viver sem o Estado que cobiçam e a que se encostam, atraiçoando hipocritamente os próprios princípios que defendem.

Conversas sobre o senso comum (II)

«Na televisão como nas conversas de café, no que se diz no metro ou no autocarro, no que ouvimos na escola ou no trabalho, há um conjunto de ideias a partir das quais se discute mas que raramente são discutidas em si mesmas.»

Prossegue o ciclo de debates, em Coimbra, Beja e no Porto, a partir de ideias de senso comum que se difundem e que é preciso desconstruir. Uma iniciativa da CULTRA (Cooperativa Culturas do Trabalho e do Socialismo).

«A EDUCAÇÃO DE ONTEM É MELHOR QUE A DE HOJE?»
Com Rosário Gama e José Soeiro.
(Coimbra, 9 de Fevereiro, 21.00h, Galeria Santa Clara)

«ANDÁMOS A VIVER ACIMA DAS NOSSAS POSSIBILIDADES?»
Com Adelino Fortunato (economista, docente na FEUC) e Nuno Serra (doutorando da FEUC e co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas). Moderação de Constantino Piçarra.
(Beja, 9 de Fevereiro, 21.30h, Biblioteca Municipal)

«GERIR O ESTADO É COMO GERIR UMA CASA?»
Com Ricardo Coelho (economista) e Catarina Martins (actriz, deputada). Moderação de Adriano Campos.
(Porto, 10 de Fevereiro, 21.30h, Cooperativa Gesto)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Não resulta, mesmo que se queira com muita força...


As receitas públicas na Grécia caíram 7% em relação a Janeiro de 2011, contra uma expectativa de aumento de 9%. É o problema da "austeridade expansionista": é mentira. Uma mentira que continua a ser vendida às economia periféricas com consequências desastrosas para quem lá vive. O Gráfico acima compara as estimativas do FMI para a Grécia para 2011-2013. A azul as previsões iniciais, a vermelho as mais recentes (5ª revisão). O FMI enganou-se em tudo, e não foi por pouco. A austeridade agravou a recessão, inviabilizando qualquer esforço de consolidação orçamental.

Mas estas alterações mostram outra coisa: o problema não tem nada a ver com qualquer resistência do Governo grego aos cortes na despesa. Estes, aliás, são cada vez maiores a cada previsão que passa, muito por força dos pacotes adicionais que foram sendo impostos. A verdadeira razão é o fracasso de uma política absurda que falha, mesmo quando avaliada pelos seus critérios.

Depois da maior crise financeira desde a Grande Depressão...

...o poder político deixou tudo basicamente na mesma na esfera financeira. Depois admirem-se que surjam produtos derivados como este.

Deixar de lucrar com a tragédia grega

Segundo o Financial Times, o BCE prepara-se para abdicar da sua posição de manter os seus títulos de dívida gregos até à maturidade. O BCE abdica de uma estratégia que traria enormes lucros à instituição europeia, que comprou os títulos no mercado secundário com enorme desconto: títulos com um valor nominal, de por exemplo, 100, teriam sido comprados a 70 e seriam reembolsados no seu valor original, mais juros. Uma operação que já aqui tinha apelidado de obscena e que parece agora comprometida.

Os contornos desta cedência do BCE não são ainda claros, mas mostram a vantagem de se estabelecer uma estratégia de tensão com a União Europeia. Tivesse sido o governo grego mais troikista do que a troika e não estaria prestes a conseguir uma redução da dívida detida pelo BCE que pode chegar aos 11 mil milhões de euros (o equivalente a mais de três privatizações da EDP). É suficiente? Longe disso. A economia e o povo grego estão de rastos devido à austeridade e só uma ruptura com as actuais políticas pode inverter a actual trajectória.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Prioridades

Enquanto se aguarda o acordo grego a mais uma ronda de crueldade social - descida de 20% do salário mínimo, redução de 15% de complementos de pensão, despedimento de 150 mil funcionários públicos até 2014, etc-, o duo Merkozy arranjou forma de prevenir um incumprimento da Grécia, que afectaria o sistema financeiro europeu, sem aligeirar a pressão. Aparentemente, a troika irá disponibilizar os fundos necessários ao pagamento dos credores gregos directamente, sem interferência de Atenas. Os restantes fundos, que cobrem o défice orçamental e, portanto, pagam salários, pensões, saúde e educação, ficarão cativos até que o governo grego ceda às condições impostas.

Ou somos todos gregos hoje, ou ver-nos-emos gregos amanhã.

Já nem os «cheques-ensino à paisana» lhes chegam

Como noticiava ontem o Público, prossegue em pleno ano lectivo a debandada de alunos dos colégios e escolas privadas, em resultado das crescentes dificuldades dos pais para pagar as respectivas mensalidades. Procurando conter a «fuga», algumas destas instituições até já optaram por reduzir a oferta de actividades extracurriculares ou o valor das propinas, chegando mesmo a criar «pacotes anticrise» (reduzindo o valor global da mensalidade, mais alimentação e inscrição numa actividade extracurricular, de 500€ para 480€).

Se tudo isto é revelador dos «ajustamentos» práticos a que o «empobrecimento» austeritário obriga, já as declarações do director executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEPC), Rodrigo Queiroz e Melo (na foto), são de facto extraordinárias. Como Saulo que se vê subitamente encandeado por uma luz imensa, Queiroz e Melo diz ser necessário «garantir às famílias com maiores dificuldades o apoio para a permanência dos filhos no ensino privado, em defesa do seu percurso educativo, mas também para evitar um aumento substancial dos custos públicos» pois, prossegue o director executivo da AEEPC, «aumentar os custos do Orçamento do Estado e fechar escolas privadas quando as famílias estavam satisfeitas é uma equação em que toda a gente perde» (sublinhados meus).

Notável, não é? O mesmo Queiroz e Melo que, há pouco mais de um mês, se mostrava tão surpreendido com a generosa e inexplicada oferta de 12 milhões de euros adicionais do ministro Nuno Crato aos estabelecimentos de ensino privado, como indiferente ao fecho de estabelecimentos públicos sem qualquer fundamento pedagógico e aos brutais cortes no sistema público consagrados no OE de 2012 (cerca de 18% face ao ano anterior).

Que se passa, senhor director executivo? Já esturraram o dinheiro todo ou é mesmo só mais uma demonstração de alarve despudor?

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Não há alternativa

Em Janeiro de 2011, o Jorge Bateira fez aqui umas contas sobre a bola de neve da dívida pública portuguesa e chegou à conclusão que “a ‘ajuda’ da UE/FMI não trava a dinâmica da dívida em que estamos lançados (…) no actual quadro institucional, o Estado Português já é insolvente.” Passado um ano, a dívida pública portuguesa atinge os 110% do PIB (68,9% em 2008), graças sobretudo às múltiplas crises e à incapacidade europeia em lhes dar outra resposta que não seja uma austeridade contraproducente. Nada de garantir, por exemplo, financiamento a taxas de juro idênticas às que são garantidas aos bancos pela acção de um verdadeiro Banco Central, emissão de euro-obrigações e reforço do BEI, passos para uma recuperação económica, condição necessária para diminuir o fardo da dívida. Sabemos a resposta à questão que se pode colocar neste contexto: por que é que o governo não usa a dívida e a sua inevitável reestruturação, desde já, como arma negocial em Bruxelas? Até porque Merkozy, falando na Grécia, afirmou que “deixar que um país com 9 milhões de pessoas entre em bancarrota não é uma opção”, o que só que dizer que o centro não tem interesse num incumprimento. Expulsar alguém do euro nem se fala. Está tudo demasiado interligado pela finança. Por isso, as ameaças do centro parecem pouco credíveis. Surge logo outra questão: quando é que um país será capaz de dizer ponham-se finos?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Da bancarrotocracia

A divulgação dos prejuízos registados pelos principais bancos ainda privados deu-nos mais uma oportunidade para confirmar que vivemos numa bancarrotocracia, o regime em que a política está ao serviço de um sistema financeiro incapaz e predador, mas bem protegido, um regime em que os reguladores são regulados. Dou então a palavra ao governador de um Banco que não é de Portugal: “Os bancos portugueses são vítimas da crise da dívida”. Todo um programa de serviço aos bancos. Os bancos foram apenas vítimas da sua própria ganância e miopia, já que andaram muito tempo a intermediar entre um BCE cada vez mais generoso, que lhes garante acesso a crédito a taxas de juro quase nulas, e os Estados periféricos com taxas de juro cada vez mais elevadas e deles totalmente dependentes, devido a esta construção monetária, e assim progressivamente insolventes. Por exemplo, metade dos prejuízos do BCP devem-se a aventuras na Grécia. Apesar dos juros cada vez mais elevados, Ulrich do BPI julgava que estava a comprar activos sem risco a Estados sem soberania monetária. Vítimas, sem dúvida.

No contexto português, merece ainda destaque a transferência de fundos de pensões, que os especialistas garantem ser um bom negócio a prazo para os bancos, mas que pesa contabilisticamente nos resultados deste ano. É impressionante como, com a cumplicidade de demasiados jornalistas e de Carlos Costa, os bancos usaram este truque para tentar simular um sacrifício comovente. A verdade é que os bancos se livraram de pesados encargos, têm créditos fiscais e têm o Estado a usar metade dos fundos transferidos para pagar antecipadamente parte dos empréstimos que os bancos concederam ao sector público, sem exigir mais contrapartidas para esta generosidade contratual do que um sentido apelo à concessão de crédito à economia.

Se juntarem a isto uma recapitalização sem controlo democrático desse bem público que é o crédito, canalizado durante demasiado tempo pelos bancos para a economia da construção com cumplicidade fiscal do Estado, temos um retrato mais completo da bancarrotocracia. De resto, é o que já aqui dissemos: os bancos em rápida desalavancagem terão também de lidar com cada vez mais insolvências, obra de uma austeridade aditivada pela qual os banqueiros passaram horas a falar com Judite de Sousa. A dinâmica foi exposta pelo Nuno Teles há um ano:

“Esta desalavancagem do sistema financeiro terá como efeito previsível uma contracção do crédito à economia com os efeitos recessivos associados. Corremos assim o risco de estarmos perante uma pescadinha de rabo na boca: os bancos emprestam menos para melhorar a sua posição, com menos crédito o investimento e o consumo diminuem, com uma contracção do produto o crédito malparado aumenta, enfraquecendo os bancos…”

Profecias que se auto-realizam

A propósito da vaga de frio polar que percorre o país, uma história que circula na net desde o início da crise e que ajuda a compreender a lógica de funcionamento do mercado de acções:

«Era outono e os índios de uma reserva americana perguntaram ao novo chefe se o inverno iria ser muito rigoroso ou se, pelo contrário, seria mais ameno. Tratando-se de um chefe índio da era moderna, era-lhe difícil interpretar os sinais que permitissem prever o tempo. Mas, para não correr riscos, foi dizendo que sim, que deveriam estar preparados e cortar a lenha suficiente para aguentar um inverno frio.
Como era um líder prático e preocupado, alguns dias depois dirigiu-se a uma cabine telefónica pública, ligou para o serviço meteorológico e perguntou: "O próximo inverno vai ser frio?" - "Sim, parece este inverno vai ser frio...", respondeu o meteorologista de serviço. O chefe voltou para junto do seu povo e mandou que cortassem mais lenha.
Uma semana mais tarde, voltou a ligar para o serviço meteorológico: "Vai ser um inverno muito frio?" - "Sim", responderam novamente do outro lado... «O inverno vai ser mesmo muito frio." Mais uma vez o chefe voltou para o seu povo e mandou apanhar uma quantidade reforçada de lenha, sublinhando que mesmo as mais pequenas cavacas deviam ser aproveitadas.
Duas semanas mais tarde voltou a ligar para o serviço meteorológico: "Vocês têm a certeza que este inverno vai ser mesmo muito frio?" - "Absolutamente!", responderam do outro lado da linha, "Vai ser um dos Invernos mais frios de sempre." "Como podem ter tanto a certeza disso?...", perguntou o chefe. O meteorologista respondeu: "Porque os índios estão a arrecadar lenha que nem uns doidos."»

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Ajuda

Depois de ter fugazmente passado pelo FMI, o antigo funcionário da Goldman Sachs – “gigantesca lula-vampiro enrolada na cara da humanidade, com o seu tubo de sucção alimentar incansavelmente fossando em busca de tudo o que lhe cheire a dinheiro” – vem ajudar as várias lulas-vampiro a acabar de sugar o país: António Borges vai liderar equipa que supervisiona as privatizações.

Transportes Públicos: Mitos e realidades


A «simpatia» que a opção austeritária continua a colher junto de uma parte significativa da opinião pública deve muito a um conjunto de mitos sobre a «ineficiência do Estado gordo», a que se associa a noção da «insustentabilidade das políticas sociais públicas». Já aqui fizemos referência, por exemplo, à fraude que constitui o discurso da direita contra o RSI e que o Nuno Oliveira arrasou com esta excelente infografia.

Um outro mito, amplamente difundido nos dias que correm, alimenta-se da ideia de que os resultados negativos das empresas de transportes públicos se deve a má gestão, ao excesso de trabalhadores, à irracionalidade e sobreposição de linhas e horários ou aos baixos custos das tarifas para os utentes. Isto é, os argumentos subjacentes às recentes medidas governamentais, que anunciam a transfiguração e destruição da política pública de transportes.

Merece por isso ser lido na íntegra o excelente artigo de Frederico Pinheiro, no qual se demonstra que a questão central não é a da insustentabilidade operacional do sector, mas sim a da insustentabilidade dos juros que recaem sobre a dívida (e que explicam 76% do prejuízo registado em 2010, sendo apenas os restantes 24% imputáveis a resultados operacionais).

É esta a verdadeira «bomba-relógio», que não se desactiva pela redução do número de trabalhadores (que já diminuíu 37% em dez anos), nem pelo aumento de tarifas ou supressão de linhas e horários. Mas sim, como acrescenta Frederico Pinheiro, através de um conjunto de medidas que não só vão ao cerne da verdadeira questão como assumem, devidamente, os transportes enquanto bem público para a economia e para a sociedade no seu todo.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Primeira linha

O Espírito Santo tem assessorado as empresas públicas chinesas que têm vindo comprar empresas estratégicas rentáveis em Portugal, como a EDP e a REN. Sabe tudo sobre privatizações e sobre outros bons negócios com o Estado português. Reconfortado pelas comissões, um dos seus representantes teve um arrebatamento patriótico ao garantir que Portugal não é a Grécia porque atrai investidores de “primeira linha”, onde se inclui também uma empresa estatal de Oman que adquiriu 15% da REN. A China também tem ido às compras à Grécia, claro. Agora, empresas públicas de “primeira linha” é coisa que ninguém, pelo menos entre os grupos capitalistas “portugueses”, reconstruídos graças à generosidade do Estado, e entre os economistas que para eles ideologicamente trabalham, diria ser possível neste mundo há uns meses atrás. De resto, Portugal está hoje onde a Grécia estava há quantos meses atrás?

A cereja em cima do bolo

«Os loucos que investiram $260 biliões em energias renováveis em 2011 [que quintuplica o valor do investimento em 2004] provavelmente não tiveram o privilégio de partilhar a erudição desinteressada de empresários e gestores da craveira de Patrick Monteiro de Barros e Miral Amaral. Estes ilustres defensores do nuclear voltam à carga mal farejam a fragilidade política que permite bons negócios privados e públicas ruínas. A coberto da troika querem agora liquidar o cluster nacional de energias renováveis, que ao contrário da quimera nuclear, potencia o sistema científico-tecnológico nacional, gera emprego e riqueza locais, e potencia exportações de energia e de bens e serviços associados. A questão que se impõe é a seguinte: será que Patrick Monteiro de Barros, Mira Amaral e Pedro Sampaio Nunes tem memória curta ou motivos fortes para defenderem com tanta insistência uma tecnologia que perde terreno em toda a linha e nas várias geografias para as energias renováveis?»

De um dos três posts de Tiago Julião Neves, a ler no Jugular, a propósito do manifesto que pretende discutir a introdução da energia nuclear em Portugal. A cedência a este lobbie, onde pontuam destacadas figuras da direita (de Mira Amaral a José Ribeiro e Castro), seria a cereja em cima do bolo para um governo que gosta de chafurdar no mais irresponsável e retrógrado experimentalismo.

O que (re)lança o desemprego?

Álvaro Santos Pereira está cada vez mais ousado nas metáforas: o “tsunami do desemprego foi lançado antes de virmos para o governo”. O desemprego sem precedentes foi lançado pela grande recessão, tendo sido decisivamente relançado por estas políticas de austeridade, cujos efeitos se fizeram sentir numa economia já há muito estagnada, graças a um euro disfuncional. Já agora, lembram-se das fantasias gordurosas de Santos Pereira sobre a austeridade antes das eleições? Eu também: “o ajustamento tem de ser feito à custa do emagrecimento do Estado e não à custa dos contribuintes e dos funcionários públicos.” Pouco importa. Lembremos sobretudo que a taxa de desemprego mais do que triplicou desde o início do milénio e que com esta política económica pré-keynesiana a taxa de desemprego não pára de aumentar, muito ajudada por acordos laborais de oportunidade, feitos para facilitar os despedimentos. Neste contexto, Santos Pereira repete a mesma inane conversa europeia de sempre, mas num contexto de regressão de direitos e de capacidades muito mais grave: “reestruturação da economia”, “formação” e cada vez mais vagas “políticas activas de emprego” para “accionar” com muita determinação, claro. Esta conversa, com tradução em diversas alterações liberais no código de trabalho, fracassadas Agendas de Lisboa e suas decadentes sequelas nos últimos anos, não contribuiu, bem pelo contrário, para a criação de emprego e hoje serve apenas para fazer passar a intensa política recessiva e regressiva de desvalorização do salário, directo e indirecto, a variável de um ajustamento medíocre nesta configuração do euro. Isto quando sabemos que é sobretudo a procura que determina o emprego e logo que é a sua compressão com escala europeia, mas com especial incidência nas periferias, que gera desemprego.

Conversas sobre o senso comum (I)

«Na televisão como nas conversas de café, no que se diz no metro ou no autocarro, no que ouvimos na escola ou no trabalho, há um conjunto de ideias a partir das quais se discute mas que raramente são discutidas em si mesmas.»

Ciclo de debates a partir de ideias de senso comum que se difundem e que vale a pena desconstruir, numa iniciativa da CULTRA (Cooperativa Culturas do Trabalho e do Socialismo). As duas primeiras conversas têm lugar, hoje e amanhã, respectivamente em Coimbra e no Porto:

«COMO (NÃO) PAGAR A DÍVIDA?»
Com Mariana Mortágua (economista) e José Castro Caldas (economista, investigador do Centro de Estudos Sociais e co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas).
(Coimbra, 2 de Fevereiro, 21.30h, Galeria Santa Clara)

«O RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO É UM SUBSÍDIO À PREGUIÇA?»
Com Ana Cristina Pereira (jornalista do Público) e Paulo Pedroso (ex-ministro, autor da lei do Rendimento Mínimo Garantido). Moderação de Ricardo Sá Ferreira. Antes do debate será projectado o Documentário «Desamarras», de João Carlos Louçã, Nuno Moniz e Ricardo Sá Ferreira.
(Porto, 3 de Fevereiro, 21.00h, Cooperativa Gesto)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Nem todos estão perdidos em Bruxelas

Ao ver um directório governando a Europa, retirando-nos quaisquer condições de crescimento económico, e a insistência alemã em destruir a soberania dos endividados, talvez cheguemos à conclusão de que teremos de regressar aos três "D" do 25 de Abril. Democracia, desenvolvimento e descolonização. Só que desta vez os descolonizados seremos nós.

Rui Tavares, Público.

Portugal está a perder muito mais do que a sua autonomia financeira com o pedido de resgate. O País está a abdicar de ter qualquer objectivo na política europeia que não seja o de ouvir a satisfação de Berlim com o esforço que está a ser feito em Lisboa.

Luís Rego, Diário Económico.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

"É um Professor Doutor, meu Deus!!" (II)


O Alexandre Abreu defendeu hoje a sua tese de Doutoramento com enorme sucesso. Parabéns!

A extraordinária flacidez de um democrata



Via Shyznogud, a comparação (no Público) das reacções de Jean-Claude Juncker, Nicolas Sarkosy e Passos Coelho à proposta alemã de envio de um «comissário do orçamento» para a Grécia (que configura mais propriamente, sem eufemismos, a patente de um «governador colonial», como bem refere José Vítor Malheiros no seu artigo de hoje).

Esta demonstração da «fibra» que tece as convicções democratas de Passos Coelho corresponde razoavelmente (salvaguardadas as devidas diferenças e proporções), ao modo como a Igreja Católica continua a posicionar-se perante a questão da pena de morte: «o ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de comprovadas cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à pena de morte (...), [mas] se os meios incruentos bastarem (...) a autoridade deve limitar-se ao seu uso».

A derrocada da austeridade


Não é verdade que aprendemos imenso acerca da gestão da economia nos últimos 80 anos? Sim, aprendemos – mas, na Grã-Bretanha e noutros lados, a elite política decidiu atirar pela janela esse conhecimento duramente adquirido e, em vez disso, basear-se em ideológicos e convenientes desejos que tomaram por realidade.

A Grã-Bretanha em particular, era tida como um caso exemplar de “austeridade expansionista”, a noção de que em vez de se aumentar a despesa pública para lutar contra as recessões, devia-se cortar na despesa – e isso conduziria a um crescimento económico mais rápido. “Aqueles que argumentam que reduzir o nosso défice e promover o crescimento são de certo modo alternativas estão errados”, declarou David Cameron, o Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha. “Não podemos deixar de lado o primeiro para promover o segundo”.

E bem podemos estar a ser conduzidos para um mau caminho pela Europa Continental onde as políticas de austeridade estão a produzir o mesmo efeito que na Grã-Bretanha, com muitos sinais que apontam para uma recessão este ano.


O que causa mais fúria nesta tragédia é que ela era absolutamente desnecessária. Há meio século, qualquer economista – ou mesmo qualquer aluno de licenciatura que tivesse lido o manual de Paul Samuelson “Economia” – podia dizer que enfrentar uma depressão com austeridade é uma má ideia. Mas os decisores políticos, os formatadores de opinião e, lamento dizê-lo, muitos economistas decidiram esquecer, em larga medida por razões políticas, o que tinham aprendido. E milhões de trabalhadores estão a pagar o preço dessa amnésia deliberada.


Do artigo de Paul Krugman no New York Times

A crise europeia vista do Barreiro


Se a gripe não mo impedir, estarei amanhã no Barreiro para participar em mais uma iniciativa da Assembleia Popular Barreirense.

A cabeça do capitalismo transnacional

"Todos os dias, empresas internacionais como as nossas constatam a importância da moeda única no Mercado Único, que trouxe crescimento económico e criação de emprego à Europa." Perante este e outros dislates interesseiros no Público de ontem, dignos de Merkel e do europeísmo feliz, da autoria de Paulo Azevedo (Sonae) e Leif Johansson (Ericsson), que têm em comum o facto de se apresentarem como membros da influente European Round Table of Industrialists (ERT), João Pinto e Castro pergunta: “onde têm eles a cabeça?”

O livro de Bastiaan van Apeldoorn, de 2002, ajuda a explicar a cabeça da classe capitalista transnacional na Europa e o papel da ERT como uma das principais expressões organizadas da sua força ideológica e política, em especial em Bruxelas e em todos os outros espaços onde a democracia limitada ou inexistente só deixa lugar aos principais poderes capitais que apostaram tudo neste mercado único feito para favorecer todas as corridas para o fundo. Os destinos de uma integração europeia marcada pela incrustração do neoliberalismo, integrando e diluindo a social-democracia no seu projecto hegemónico, têm de ter em conta as estratégias de classes e suas facções, a ideologia como força material, na linha da economia política internacional crítica assente em Gramsci. A famigerada Agenda de Lisboa, com a sua retórica da competitividade centrada na oferta, não pode escapar ao escrutínio crítico.

Apesar de tudo, o artigo do Público ilustra simbolicamente como este grupo é internamente heterogéneo, o que só demonstra a necessidade de considerar o “nacional” quando se pensa no que está para lá dele: o capitalismo de supermercado da semiperiferia, em expansão para a periferia, e o capitalismo industrial e tecnológico do centro, expressões do tal desenvolvimento desigual.

De resto, na boa linha dos efeitos perversos da acção colectiva, esta hegemonia das facções mais extrovertidas do capital europeu pode bem significar, pela derrota que impôs às classes trabalhadoras europeias, que os interesses do capitalismo europeu são prejudicados a prazo. É que se o trabalho é um custo, também é uma fonte de procura; se a moeda forte serve bem a expansão internacional, a moeda sem Estado, pode bem destruir as bases políticas onde o capital tem sempre de assentar...

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Nós e eles

Do Público de hoje:

"A Grécia vai ser hoje colocada pelos países da União Europeia (UE) perante uma escolha difícil: ou aplica de uma vez por todas as reformas estruturais exigidas em troca de assistência financeira ou entra em incumprimento da dívida, podendo, em última análise, ter de sair do euro." (pag. 2)

"Deu uma entrevista como chefe de Estado, mas não pôde deixar de lado a pele de candidato e apresentou uma medida populista, a taxa Tobin." (pag. 15)

O editorial do jornal ataca Arménio Carlos por ter usado palavras como "vergonha", "ridículas" e "terrorismo social" para classificar as ideias deste governo. Ora, ridículo e vergonhoso é fazer um lead de uma notícia em que se diz que a taxa Tobin é populista, sem mais. E terrorismo social é falar da tragédia grega como se fosse uma questão de falta de vontade.

Fiem-se nas virgens e não cresçam


Até há bem pouco tempo, as orações iam todas, direitinhas, para a Nossa Senhora dos Mercados. Com uma austeridade rigorosa e abnegada - diziam-nos - eles comover-se-iam e recuperaríamos a sua confiança. Ainda recentemente, depois da assinatura do acordo de «consternação social», o ministro Álvaro renovava a sua fé nos poderes da penitência e o ministro Gaspar, em êxtase místico, garantia ter já encontrado o «Ponto V», de viragem. E até a pitonisa lusa do FMI, Estela Barbot, viu no dito acordo um sinal positivo aos mercados.

O problema, porém, é que não há meio de os mercados darem igual sinal de retorno. Desde o início da crise, como mostra o gráfico, a sua irritação não pára de aumentar. Nem mesmo depois (ou talvez também por isso) da promessa solene de Carlos Moedas, feita ainda antes das eleições: «com as reformas que o PSD vai implementar, eu digo-lhe que ainda vão subir o rating, não sei se nos próximos 6 meses, se nos próximos 12 meses, ainda não se sabe quando haverá um novo Governo». Se tinha dito «taxas de juro», em vez de rating, Moedas acertava em cheio.

Perante a ingratidão dos mercados, as preces do governo começaram a virar-se para Nossa Senhora Merkel. Portando-nos bem, cumprindo tudo direitinho, com sacrifícios a horas e suplícios a triplicar, para lá do que foi pedido, o reforço da ajuda não falhará, está garantido. Só é pena é que também esta santa já tenha começado a dar sinais de pouca fé, em Davos. Perante a proposta de reforço atempado da contribuição para o fundo de resgate, a chanceler tratou de lançar um aviso à navegação: «não queremos uma situação em que prometemos e no final não podemos cumprir».

domingo, 29 de janeiro de 2012

A reestruturação grega


As negociações entre os credores privados e o governo grego sobre o “perdão” da dívida grega parecem estar prestes a ser concluídas. Todavia, falta ainda saber o grau de adesão dos credores ao acordo, essencial para que seja bem sucedido.

De qualquer forma, os números avançados parecem relevantes. Um corte no valor nominal da dívida de 50%, que somado às novas maturidades e taxas de juro, se converte em 70% em valor presente líquido. Perante tais notícias, aparece logo quem ache que uma negociação deste género seria o desejável para Portugal (nem sequer precisávamos de um corte tão grande). Mas, como em tudo na vida, tudo se joga nos detalhes.

O primeiro ponto a ter em conta é que esta negociação é feita em moldes bem diferentes daqueles que podiam ter sido feitos há dois anos, quando a esmagadora maioria dos credores gregos eram privados (sobretudo banca europeia). Hoje, quase metade da dívida grega é detida por instituições públicas (FMI, ESEF e Banco Central Europeu), embora com diferenças entre elas. Da parte privada da dívida, metade desta é detida pelo sistema financeiro grego, que se substituiu à banca europeia com o desenrolar da crise, e à volta de um quarto parece pertencer a hedge funds que andam a fazer um jogo perigoso. Conclusão: os grandes credores da Grécia, banca europeia, deixaram de o ser e, portanto, têm perdas potenciais diminuídas.

O segundo ponto relaciona-se com os potenciais riscos de contágio. Houve sempre grande preocupação sobre o impacto de um incumprimento grego nos mercados de Credit Default Swaps (seguros sobre a dívida, onde o comprador do CDS se compromete a pagar as perdas em caso de incumprimento). Contudo, ao longo dos últimos dois anos este mercado praticamente desapareceu. As transferências líquidas no caso de um default seriam muito reduzidas (ver gráfico). O abrupto colapso deste mercado é, para mim, um mistério(1). Por outro lado, com as necessidades de financiamento da banca europeia cobertas pelos empréstimos a três anos concedidos pelo BCE, os riscos de pânico nos mercados de crédito, com consequente colapso de alguns bancos devido a um default grego, parecem estar cobertos.


O terceiro ponto diz respeito às condições impostas nesta negociação ao Estado grego, nascidas do seu claro enfraquecimento negocial decorrente dos pontos acima assinalados e de uma depressão económica com mais de três anos. O regime legal dos novos títulos é alterado, passando a reger-se pela lei britânica e não grega (os credores ficam mais protegidos) e o Estado grego vê-se obrigado a recapitalizar a sua banca através de um empréstimo da troika (na prática, os credores privados são substituídos por credores oficiais). Por isso se chega ao ridículo número de 120% do PIB de dívida para… 2020. Isto com pressupostos muito optimistas sobre a evolução macroeconómica do país e com novas doses de austeridade e de pilhagem de activos.

Em suma, este acordo não é mais do que um novo adiar do inevitável default grego. No entanto, com o passar do tempo a posição do país vai-se tornando mais frágil e os custos maiores. Como assinala Costas Lapavitsas, em artigo publicado no The Guardian na semana passada, é tempo de acabar com esta charada europeia e a Grécia declarar um default na dívida, soberano e democrático, não poupando os credores oficiais e conduzindo o processo de forma transparente através de uma auditoria cidadã.

E Portugal? Portugal tem tido a vantagem, pouco aproveitada, de ver o seu futuro numa bola de cristal chamada Grécia. Neste momento, temos as taxas de juro gregas de há nove meses. No entanto, entre as certezas do Governo e a desinformação dos media parece que estamos condenados a arrastarmo-nos na lama até o mesmo destino trágico.

(1) É compreensível que, de há dois anos a esta parte, se tenha deixado de emitir CDS. No entanto, é difícil entender que a esmagadora maioria destes títulos tenha vencido entretanto.

Attacar a crise

Como o tempo passa e a crise só se aprofunda

Recupero um texto com sugestões irrealistas, que escrevi em Julho de 2010, quando a crise era considerada nacional por Cavaco e por outros economistas dos poderes capitais:

O Banco Central Europeu declarou que há países "sem margem de manobra orçamental", onde se incluiria Portugal. As declarações do BCE são performativas, ou seja, ajudam a criar a desgraçada realidade que aparentemente se limitam a descrever. É que o BCE, apesar de não ter qualquer controlo democrático, tem poder monetário. Numa altura de crise, e enquanto o desemprego permanecer nestes níveis não há razão para usar outro termo, as políticas de austeridade à escala europeia, assentes no corte da despesa pública, já estão a causar os resultados previstos: aumentam os riscos de depressão, de crise no sistema financeiro e, de forma só aparentemente paradoxal, nas próprias finanças públicas. A reabilitação da crença na auto-regeneração dos mercados tem custos sociais elevados.

Neste contexto, o BCE, que já usou relutantemente o seu poder monetário ao intervir nos mercados secundários de dívida pública, deveria comportar-se como um verdadeiro banco central e financiar directamente os Estados em dificuldades, que assim teriam margem de manobra para levar a cabo uma política de investimento gerador de emprego. Em vez disso, o BCE compra dívida pública aos bancos, que assim têm o seu negócio garantido, impedindo que uma restruturação da dívida dos países periféricos, arma negocial importante, ameace o sistema financeiro do centro. O BCE está proibido pelos tratados europeus, que o bloco central irresponsavelmente assinou, de financiar as dívidas dos Estados. Esta separação por decreto das políticas orçamentais e monetárias, a pretexto do combate a uma inflação inexistente, pode ser fatal para o projecto de integração europeu num contexto deflacionário.

O problema da obsessão com regras liberais no campo da política económica é fazer tábua rasa das tendências destrutivas do capitalismo - que só podem ser contrariadas com o uso dos poderes públicos -, transformando essas tendências em oportunidades para destruir o Estado social e as regras laborais que garantem uma economia minimamente civilizada. Obviamente, estas questões nunca são mencionadas por Cavaco Silva, sempre ufano a mostrar as suas credenciais de economista, com argumentos de autoridade que empobrecem o debate democrático. Isto quando foram precisamente economistas como Cavaco, os que reduzem quem trabalha a um "factor" descartável, que criaram as regras europeias geradoras de declínio socioeconómico no país. É a política com "p" pequeno. A política com "p" grande vê para lá das estruturas existentes, questionando-as e inspirando a sua reforma para criar novas realidades, mas a partir de uma ideia de subordinação da economia ao poder político democrático que a deve orientar para fins decentes; é a política que introduz a questão europeia no debate político. Esta é hoje a questão nacional mais importante.