Que os problemas de competitividade da economia portuguesa – e da periferia europeia em geral – se explicam em grande parte pela participação numa zona monetária cujas taxas de câmbio externas são fundamentalmente determinadas pelo desempenho de uma grande economia exportadora como a alemã, na ausência de mecanismos fiscais de ajustamento e redução das assimetrias internas, é um facto sobejamente conhecido ainda que insuficientemente apreciado. A ele se têm referido muitos comentadores em inúmeras ocasiões, tanto aqui nos ladrões de bicicletas como noutras paragens.
Bastante menos conhecido, em contrapartida, é o facto do mesmo problema afectar outras periferias bem mais periféricas (passe o pleonasmo) basicamente da mesma maneira. Refiro-me, especificamente, às catorze economias da África Central e Ocidental, com uma população total de qualquer coisa como 80 milhões de pessoas, onde circula o franco CFA (Communauté Financière Africaine). Curiosamente, entre essas economias inclui-se, de 1997 para cá, a Guiné-Bissau. Claro que a situação é formalmente diferente da das periferias da zona euro, pois o franco FCA é uma moeda autónoma, emitida pelo Banco Central dos Estados da África Ocidental. Porém, a sua cotação está indexada ao euro à taxa fixa de 1 euro = 655,957 francos CFA desde a criação da moeda única europeia (antes estava indexado ao franco francês), pelo que os problemas que daí advêm são em boa verdade análogos.
Tendo em conta que a cotação do franco FCA face ao euro não foi alterada desde a entrada em circulação deste último (na verdade, desde 1994, por via da anterior indexação ao franco francês) e que o euro se apreciou cerca de 20% face ao dólar norte-americano (moeda em que se negoceia a generalidade das mercadorias no mercado mundial) desde Janeiro de 1999, a consequência lógica tem sido uma perda de competitividade das exportações destes países, ao longo da última década, proporcional (na medida das respectivas elasticidades) a essa apreciação de 20%. No caso específico da exportação de mercadorias em que os produtores destes países são totalmente incapazes de influenciar os preços mundiais (isto é, em que que são price-takers), o resultado é uma compressão dos rendimentos locais expressos em FCFA: os mesmos 100kgs de castanha de caju, por exemplo, transaccionados a um determinado valor em dólares, correspondem a 20% menos francos CFA do que corresponderiam num cenário de ausência de apreciação face ao dólar.
O efeito é depressivo ao nível da exportação das mercadorias transaccionadas em dólares, mas também constitui, de uma forma mais geral, um constrangimento adicional à competividade das exportações, à diversificação industrial e à acumulação endógena. Na verdade, trata-se de um fenómeno análogo à chamada ‘doença holandesa’ (Dutch disease), que na sua origem designa os efeitos negativos para a competitividade das exportações que decorrem da apreciação da moeda de um país em consequência da exportação em grande escala de recursos naturais. Simplesmente, no caso desta outra ‘doença monetária’ em apreço, o responsável não é o sector mineiro local, mas sim a indústria alemã.
Em face de tudo isto, porque é que os países em causa, e o BCEAO em particular, não decidem simplesmente desvalorizar o franco FCA? Aqui (como sempre, aliás), temos de entrar em conta com questões de economia política. É que a sobrevalorização do franco CFA beneficia alguns grupos e sectores destes países em detrimento de outros: para começar, as importações ficam mais baratas, o que subsidia implicitamente as importações e os consumidores, ao mesmo tempo que constrange a produção local. Por essa via, beneficia a população urbana em detrimento da rural, num exemplo do que M. Lipton designou por ‘viés urbano’ (urban bias). E os grupos que disso beneficiam são frequentemente aqueles que têm mais capacidade de fazer ouvir a sua voz e fazer agir em conformidade. Ao mesmo tempo, não são de todo despiciendas as pressões exercidas pelos países do Norte, nomeadamente através da antiga metrópole (a França), que se fazem sentir tanto através da imposição explícita da paridade como condicionalidade como através da assistência técnica prestada ao funcionamento da zona monetária africana.
A moral da história, em todo o caso, não é que todos perdem com a situação, mas sim que entre os que mais têm perdido se encontram aqueles que estariam em condições de dinamizar a produção local, particularmente de bens transaccionáveis. É deste género de questões – e não simplesmente das dotações ab initio – que dependem as vantagens comparativas dos manuais. E é por este género de questões que, na comunidade CFA como na periferia da zona Euro, faz todo o sentido reavaliar a todo o momento as vantagens e desvantagens de pertencer a uma zona monetária com estas características.
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3 comentários:
Gostei muito desta análise. Especialmente a referência ao facto das vantagens e desvantagens diferenciais da valorização da moeda para a população urbana vs rural.
Cumprimentos e contuinuação de boa escrita
até pode ser
mas sem franco CFA e sem importações de pão para a boca
as pops do sahel vão tirar produção agrícola daonde
e chuva?
ou compram evian para regadio?
sem importações do sul
com um franco CFA ainda mais desvalorizado do que durante as fomes dos anos 80
10 milhões de indigentes castigados pela seca comiam do quê?
argila seca ao sol?
Caro Alexandre
Nunca é demais insistir, face ao grande público, no facto elementar de que a desvalorização é, nalgumas cirscunstâncias, uma boa opção. Estamos todos (esquerda incluída) tão obcecados com os dogmas "sound money" do directório da "UE" que parece termos deixado de compreender o óbvio...
Mais, como isto acontece num contexto de desvalorização do US$... farão sentido "teorias da conspiração" vendo aqui manobrismos destinados a consolidar a posição norte-americana à escala global? Mas o "cavalo de Tróia" ianque, nesse caso, entrou como? E quais o grupos "compradores" europeus aos quais esse "manobrismo" está associado?
Bom post, Alexandre. Fica-se a pensar...
Ah, sim, "doença holandesa" exactamente porquê, pode explicar-me? O primeiro autor a notar que nos países mais ricos circulava proporcionalmente mais moeda e os preços eram sistematicamente mais elevados, pelo que a "paridade de poder de compra" fazia despromover o dito e a competitividade das suas exportações ficava assim lesada, foi, segundo julgo saber, Richard Cantillon, em meados do século XVIII... e a propósito precisamente dos Países Baixos (Essai sur la Nature du Commerce en Général, ligeiramente anterior às obras dos fisiocratas e cerca de 20 anos anterior à Wealth of Nations). É uma espécie de típica "doença de ricos", se me permite... Virá daí a mais recente "Dutch disease"?
Agora sim, Alexandre, faz muito bem em notar que estas "dolarizações", "euroizações"e afins tendem a exportar a tal doença dos ricos para quem não tem dinheiro para se permitir tais luxos. É um lugar-comum, reconheço, mas continua globalmente verdade: quanto mais depressa as periferias deixarem de ouvir a sereia dos respectivos grupos "compradores", tão melhor para elas.
Obrigado e um abraço.
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