terça-feira, 17 de novembro de 2009

"Bolsas sim, propinas não" (marchar pela equidade no superior)

Em dia de marcha pelo ensino superior, recupero o artigo que escrevi na edição do Le Monde diplomatique deste mês, intitulado "Equidade no ensino superior". Os alertas que estão a ser lançados pelas estruturas que convocam a marcha merecem ser ouvidos, e as suas exigências de "uma verdadeira responsabilização do Estado, garantindo o financiamento público do total das despesas de funcionamento das instituições, e de um maior investimento na Acção Social" merecem resposta.

Eis o meu artigo:

Nos últimos vinte anos, o ensino superior em Portugal passou por profundas transformações, do modelo de financiamento ao novo regime jurídico das instituições do ensino superior [1] , passando pela reforma de Bolonha e pelas alterações do estatuto da carreira docente. O início da nova legislatura, até porque combina uma solução de continuidade na pasta do Ensino Superior com uma previsível revitalização do debate político e parlamentar, é um bom momento para a sociedade reflectir criticamente sobre todas estas alterações, para fazer um balanço que tenha em conta os dados empíricos entretanto disponíveis e para ajustar os caminhos futuros de um ensino superior democrático e de qualidade.

Poderá começar-se pelo modelo de financiamento. Há quase duas décadas opuseram-se duas concepções. A primeira correspondia à defesa do contrato social até então em vigor e apoiava-se no texto constitucional, que prevê que o Estado deve assegurar o carácter universal e tendencialmente gratuito do ensino. Afirmava que o ensino superior deve constituir um serviço público cujo funcionamento corrente deve ser financiado pelo orçamento de Estado, de modo a que uma fiscalidade progressiva actue como mecanismo de redistribuição do rendimento e de promoção da justiça social, propiciando a todos, independentemente da origem socioeconómica da família em que se nasceu, condições de maior equidade no acesso ao saber e ao desenvolvimento das competências susceptíveis de propiciar uma sociedade menos desigual. Um regime de bolsas e de apoio social deveria ajudar a superar as situações de exclusão prevalecentes.

A segunda concepção defendia o fim da «gratuitidade» do ensino superior – que supostamente desresponsabilizava o aluno e desvalorizava o grau –, o que devia ser feito através da introdução de propinas, mais ou menos aproximadas do custo real do ensino, segundo as versões, como forma de assegurar o aumento da qualidade das formações e dos diplomas. Esta perspectiva sustentava ainda que o novo modelo de financiamento, através de diferentes escalões de pagamentos e isenções, faria com que os estudantes de maiores rendimentos pagassem propinas mais elevadas, para financiar o ensino dos estudantes mais pobres. A Lei 20/92, de 14 de Agosto, promulgada durante o governo de Aníbal Cavaco Silva no quadro de uma intensa contestação estudantil, fez até questão de sublinhar a ideia de que as propinas não serviriam para desresponsabilizar o Estado e pagar as despesas correntes (salários, etc.), definindo-as como receitas «a afectar, prioritariamente, à prossecução de uma política de acção social e às acções que visem promover o sucesso educativo». Prioritariamente… A cada instituição incumbia a fixação anual do montante das propinas, com base num valor máximo definido pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), e pelo órgão equivalente no ensino politécnico.

Do preço simbólico de 1200 escudos (cerca de 6 euros) antes da nova lei, as propinas passaram a ter um valor médio de 300 euros em 1995 e de 900 euros em 2005. Hoje, quase todos os estabelecimentos públicos, confrontados com um crónico subfinanciamento estatal que põe em causa o normal funcionamento das instituições, aplicam a propina máxima (972,14 euros), uma das mais altas da União Europeia (só dois países praticam valores mais elevados e sete não cobram qualquer montante) [2]. O modelo de financiamento com propinas, além de não ter contribuído para melhorar a qualidade do ensino, promoveu o recurso ao crédito bancário por parte de muitos estudantes que, não podendo agora cumprir com os pagamentos, são forçados a desistir do ensino superior [3].

Poder-se-ia pensar que esta é uma situação nova, mas um estudo de Belmiro Cabrito, professor no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, intitulado «Equidade no Ensino Superior – 1995-2005: Uma Década Perdida?» [4] , veio recentemente demonstrar que, já antes da crise, «o elitismo da universidade portuguesa agravou-se», afastando numa década um terço dos alunos mais pobres (a percentagem passou de 12,5 para 8,5 por cento). O estudo verificou também que «o aumento do número de bolseiros (no privado, sobretudo) não teve efeitos positivos na equidade do ensino universitário», que permanece bastante baixa.

Poderá este ser o caminho de uma modernização assente na formação de competências e na justiça social? Se a prioridade «é desenvolver as políticas sociais, é qualificar os serviços públicos, é reduzir as desigualdades na sociedade portuguesa» [5], então não podemos perder mais décadas.

***
[1] Maria Eduarda Gonçalves, «Que universidade queremos?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Abril de 2008.
[2] Relatório «Education at a Glance» da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), citado em «Propinas são das mais altas da Europa», Diário de Notícias, 9 de Setembro de 2009.
[3] «Crise provoca aumento de desistências no Superior», Diário de Notícias, 13 de Abril de 2009.
[4] Cf. www.fes2009.ul.pt/docs/presentations/belmirocabrito.pdf, notícia sobre o FES2009 em «Propinas afastam um terço dos alunos mais pobres», Diário Económico, 20 de Outubro de 2009.
[5] José Sócrates, «Discurso de tomada de posse do XVIII Governo», 26 de Outubro de 2009.

8 comentários:

Inês disse...

Cara Sandra,

Escrevo na qualidade de contribuinte do estado português.

Como tal, penso que devo de facto contribuir, com o esforço do meu trabalho, para que quem é mais pobre possa tirar um curso superior. Isso não só ajudará essa pessoa como, teoricamente e em alguns casos, criará um país mais próspero. Contudo, não concordo com o facto de pagar a totalidade do curso aos restantes alunos. Se já com uma propina de 900€ se vê a irresponsabilidade que se vê, imagine o que seria se fosse de borla. O ensino secundário tudo bem, agora, o ensino superior deve ser encarado como um investimento. Porque motivo é que eu que ganho 800€ tenho que contribuir para pagar, na íntegra, o curso de um jovem, que muitas vezes leva o curso na "descontra" e passado 6 ou 7 anos vai sair para o mercado e vai ganhar, em alguns casos, 1000€? Não é lógico que ele, o beneficiário (ou os pais), acarrete com os custos de uma formação que lhe vai potenciar ganhos futuros?

Quem, solidariamente, acha que os estudantes deviam pagar menos propinas não poderia criar um fundo cujo dinheiro fosse, posteriormente, distribuído por estudantes ou doado às universidades? Ou tem sempre de ser a "solidariedade hipócrita", tradicional da esquerda, que assenta na lógica do "eu acho que todos devíamos, solidariamente, pagar para isto, mas ou vocês também pagam ou eu então eu não pago".

Melhores Cumprimentos

croky disse...

Cara Inês,

Escrevo na qualidade de um cidadão de uma republica democrática.

Como tal, espanta-me esta "lógica" de café, saloia e desprovida de qualquer justificação. A não ser olhar para o próprio umbigo. Própria de pessoas desprovidas de princípios civilizacionais e mais preocupada com uma suposta distribuição económica de rendimentos que cada vez se mostra menos equitativa.

"Se pensam que a educação é cara, então experimentem a ignorância"

Derek Bok escreveu esta frase que em muito refuta essa sua "lógica". Um acesso livre e gratuito ao ensino superior foi pensado por visionários que acreditavam em verdadeiros princípios democráticos. Sabiam fazer contas a longo prazo, e sabiam que contas feitas, iríamos pagar bem mais se condenássemos ou subtraíssemos "cabeças" no ensino. TODO O ENSINO. Passados mais de 30 anos tudo isto parece esquecido e enfiado num baú. Porquê ?


Para alguns, uma "democracia produtiva" significa produzir mais economicamente. Estão bem enganados ... significa produzir mais justiça, mais liberdade e mais conhecimento. Vai bem mais além de orçamentos anuais, redutores no tempo e na necessidade de evolução civilizacional. Desculpas de mau pagador ... Porquê ?

O Estado quando investe no conhecimento de um cidadão, está também a investir em toda a sociedade e isto não tem nada de "hipócrita".

Se ser desleixado nos estudos é justificação para taxação, vamos também taxar os alunos do secundário e do ciclo. Porquê ? Já agora também taxamos gestores públicos ineficientes e podemos até passar pelos políticos. Até todos parecermos burros a correr atrás de uma cenoura.

Cara Inês, se existe algo de hipócrita nisto tudo é a sua "lógica".

p.s.: Respondo ao "porquê" . A resposta é o capital. Em tempos este sistema conseguiu elevar o desenvolvimento do conhecimento a níveis nunca antes vistos. Hoje é um travão ...

Anónimo disse...

concordo com a Inês. também como contribuinte , e aluno que nunca chumbou ( se eu pude , suponho que os outros também , não é suprahumano não chumbar), penso que ensino totalmente gratuito enquanto houver aproveitamento é o desejável. mas as repetições de cadeiras ou anos devem ser pagas a peso de custo. é o justo para todos.

Anónimo disse...

sorry , a preço de custo..

Jorge Castro disse...

Caro croky,

O ensino NUNCA será gratuito. O que está aqui em causa é quem o paga. O que não faltam nas universidades são alunos das classes médias e médias baixas... Por isso, para estas classes, a propina não é um factor de exclusão. Portanto, se um determinado estudante, vindo destas classes, não está disposto a fazer um esforço para estudar (e mesmo este é uma muito reduzida parcela do custo total), por que motivo deverão estar os contribuintes?? Deverão os "mais ricos" e as empresas assegurar o estudo gratuito aos filhos da classe média para que esta possa alocar o dinheiro à SportTV, ao novo LCD ou às férias no Algarve? É isto a que você chama “justiça”. Veja os indicadores de FBCF… ainda quer taxar mais as empresas (25%), os subsequentes lucros distribuídos (20%) e os subsequentes gastos (20%)? Um dia teremos “justiça”, não teremos é pão na mesa…
A Inês frisa logo no início que o acesso ao ensino superior deve ser facilitado aos mais pobres, isto torna todo o seu discurso obsoleto de "luta de classes" totalmente irrelevante.

croky disse...

"O ensino NUNCA será gratuito. O que está aqui em causa é quem o paga."

Esquece o implícito meu caro. Perdoe o óbvio, mas se não me fiz entender: "Gratuito" para quem o usa.

A questão do capital deveria ser adjacente à questão. Se a educação é uma função fundamental de uma republica e de um estado como o nosso, como podemos condicionar o seu acesso através de barreiras económicas ?

Acha que a falta de meritocracia é a justificação para essa imposição ?

Se a opção é castigar uma possível falta de interesse nos estudos por determinado aluno. Como o avalia ? Com cópias dos cartões do lux ou da factura do bar da AE ?

Que tal problemas verdadeiros na vida desse aluno ? Muitos tem empregos a recibo verde e nem podem invocar um estatuto de trabalhador estudante. Que tal os pais do aluno terem cortes no orçamento ou perderem o emprego. Acha que os SAS das academias tem capacidade para resolver todos os problemas ? O que falta ? ... Porquê ?

Invoque uma razão válida e genuína de avaliar a invariabilidade da realidade humana e a incerteza do nosso comportamento.

Soluções lineares em realidades dinâmicas e complexas ... a questão sempre esteve nos princípios e nunca no dinheiro.

Já agora ... "luta de classes". O quê ? A parte de pedir taxação de idiotice a todos ? Deve-me julgar um ortodoxo marxista ou qq coisa do género. Já me puseram noutras caixas. Se há alguma luta, ela deve ser a minha contra todo o resto lol.

Desde que houve indivíduos a querer tirar, outros a não querer dar e mais alguns quantos a querer mandar, isto nunca foi a mesma coisa. Isto é bem mais do que uma luta de classes meu caro . É controlo através da estupidificação !

croky disse...

"Deverão os "mais ricos" e as empresas assegurar o estudo gratuito aos filhos da classe média para que esta possa alocar o dinheiro à SportTV, ao novo LCD ou às férias no Algarve? É isto a que você chama “justiça”. Veja os indicadores de FBCF… ainda quer taxar mais as empresas (25%), os subsequentes lucros distribuídos (20%) e os subsequentes gastos (20%)? Um dia teremos “justiça”, não teremos é pão na mesa…"

Sabe o que era um tiro no pé ?

Era a "classe média" não fazer nada com esse dinheiro, poupa-lo no banco e você ser um trabalhador da SportTV ou da LG e ser despedido, ou talvez um temporário sazonal em Lagos sem emprego no ano que vem.

O que é mais grave é - como antes explicado - a questão nem passa por aqui pois não existe uma forma objectiva de avaliar os casos.

É o tentar justificar o "inrazoável" com puro empirismo prático. Sem a certeza, como o anúncio da cabovisão do Guilherme Tell: "oops"

Muita insegurança meu caro, mostra muita insegurança...

joaozinho disse...

Lendo os comentários anteriores só posso achar que a maioria deles contêm argumentos completamente demagógicos.
Sendo estudante julgo também saber daquilo que se está a falar e posso-vos garantir que não existe estudante que chumbe porque quer. Adianto também que vivi num país em que os alunos SÃO PAGOS (estranhe-se!) para estudar. Ou seja, estudar é equiparado com trabalhar, porque (admirem-se!) um estudante universitário bole bastante mais que o normal funcionário.Mas a hipocrisia continua a saber tão bem......